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10 de janeiro de 2014

SUS GENOCIDA

 

Genocídio na Saúde Pública do Brasil

 
Ruth de Aquino
 
"Aqui, olha, deixam a gente na musiquinha", disse a recepcionista do Hospital Barra d"Or, no Rio de Janeiro, apontando para o telefone em viva voz. Ela tentava, sem sucesso, autorização do Bradesco Saúde para Hélio Araújo ser atendido na emergência. Hélio tem 91 anos e é meu pai. Sofreu uma queda em casa, e um armário caiu por cima dele. Esperava na cadeira de rodas, a mão enfaixada, pingando sangue no lobby do hospital. Não sabíamos se havia fratura da mão ou um dano no crânio. Meus pais pagam R$ 2.440 por mês ao plano de saúde. A mesma seguradora desde 1978.

"Não autorizaram emergência, só internação. Também não autorizaram tomografia cerebral. Estou tentando o raio-X", disse a recepcionista. "Então pago tudo particular, depois abro um processo", disse eu. Só assim ele foi atendido, "no particular", após horas de incerteza. Ficamos no hospital das 20 horas às 4 horas da manhã. Na saída, surpresa: não foi preciso pagar nada. Mas a recepcionista teve de insistir horas, houve discussão e estresse.

E o caso de um paciente de elite, que enfrenta os maus-tratos comuns dos planos.

O buraco é bem mais embaixo na saúde pública do Brasil. Sinto náuseas ao ver multidões de pacientes, de crianças a idosos, dormindo em filas diante dos hospitais, com senhas só para "agendar a consulta", e não para atendimento. As senhas acabam.

As pessoas choram. Estão vulneráveis, doentes, frágeis, sentem-se humilhadas, escorraçadas. Gosto de cachorros, mas acho que a sociedade tem se escandalizado mais com o tratamento dispensado a cães do que a seres humanos.

O estado deprimente e indigno de nossa Saúde é o maior atestado de que a ideologia política de um governo não garante o respeito aos direitos básicos escritos na Constituição brasileira. Temos uma década de governo "de esquerda" - já que o PT se considera um partido do povo. O que existe diante dos hospitais é a fila da vergonha. Nossas emergências e nossos postos de saúde estão em colapso.

No Rio, há 12.500 pacientes à espera de cirurgia em hospitais federais. Alguns esperam há sete anos. Os dados são da semana passada, levantados pela Defensoria Pública da União. Os defensores decidiram processar o Ministério da Saúde. Querem um cronograma oficial de cirurgias no prazo máximo de dois meses. Exigem que o ministério pague uma indenização coletiva aos pacientes, de R$ 1,2 bilhão.

Os doentes morrem na fila da cirurgia. Cirurgias vasculares, cardíacas, neurológicas, ortopédicas, urológicas, oftalmológicas e torácicas. Os médicos se descabelam por falta de tudo. Sem parafusos e placas, idosos não podem ser operados num dos maiores hospitais do Rio. Uns pedem material emprestado a outros. De nada adianta. A precariedade é o artigo mais em alta nos hospitais federais, estaduais e municipais. O jogo de empurra entre as esferas de governo é conhecido. União, Estados e municípios se mostram incompetentes e venais na oferta de serviço de Saúde. Levam pacientes à histeria, pelo sentimento continuado de impotência.
 
O programa Globo repórter da última sexta-feira 13, chamado "Emergência médica", equivale a um filme de terror. Só que é tudo verdade. Durante 40 dias, primeiro com câmeras escondidas, depois oficialmente, uma equipe de repórteres e cinegrafistas voltou aos mesmos hospitais e postos de saúde da família denunciados há quase três anos pela TV Globo, para ver o que mudara. Nada. Em Belém ou no entorno de Brasília, não importa, a calamidade na Saúde rima com crueldade.

Pacientes dividem a mesma maca, quando não estão no chão. Um médico de macacão atende pacientes coletivamente, como se estivéssemos em guerra. Em março de 2011, em Belém, uma menina, Ruth, morreu na frente da câmera dos jornalistas. Tinha vindo de uma ilha, com uma leishmaniose que virou pneumonia. Não resistiu à falta de estrutura dos hospitais. Médicos diziam que nada poderiam fazer, não havia material nem esperança. Os jornalistas voltaram agora à casa da família de Ruth. Os parentes nunca receberam indenização. Ninguém é culpado jamais.

Faltam roupas para operar no centro cirúrgico. Faltam leitos. Faltam médicos, anestesistas, enfermeiros. Falta salário. Faltam remédios. Falta vergonha.

Minha empregada, Lindinalva Souza, estimulada pelas campanhas do governo de prevenção de câncer nos seios, foi à Clínica da Família em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, pedir uma mamografia. Faz quatro meses. "Quando tiver uma vaga, a gente te chama", disse a agente de saúde. "Por enquanto, só estamos atendendo diabéticos, hipertensos e grávidas." Que resposta é essa?

E, assim, brasileiros e brasileiras anônimos somem para sempre no corredor da morte, ignorados pelos governos, que gastam nossos impostos com sei lá o quê.

 
Ruth de Aquino é colunista de ÉPOCA

  
  
   
 
 
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