REPASSO DA MANEIRA COMO RECEBI.
ESSE É O NOSSO BRASIL.
As filhas de servidores que ficam solteiras para ter direito a pensão do Estado
As pensões a filhas solteiras de funcionários públicos consomem por ano R$ 4,35 bilhões do contribuinte – e muitas já se casaram, tiveram filhos, mas ainda recebem os benefícios
RAPHAEL GOMIDE
FELICIDADE
O casamento de Márcia
Brandão Couto. Ela se manteve solteira no civil para seguir recebendo R$
43 mil por mês do Estado (Foto: Arq. pessoal)
Era
um sábado nublado. No dia 10 de novembro de 1990, a dentista Márcia
Machado Brandão Couto cobriu-se de véu, grinalda e vestido de noiva
branco com mangas bufantes para se unir a João Batista Vasconcelos. A
celebração ocorreu na igreja Nossa Senhora do Brasil, no bucólico bairro
carioca da Urca. A recepção, num clube próximo dali, reuniu 200
convidados. No ano seguinte, o casal teve seu primeiro filho. O segundo
menino nasceu em 1993. Para os convidados do casamento, sua família e a
Igreja Católica, Márcia era desde então uma mulher casada. Para o Estado
do Rio de Janeiro,
não. Até hoje, Márcia Machado Brandão Couto recebe do Estado duas
pensões como “filha solteira maior”, no total de R$ 43 mil mensais. Um
dos benefícios é pago pela Rioprevidência, o órgão previdenciário
fluminense. O outro vem do Fundo Especial do Tribunal de Justiça. A
razão dos pagamentos? Márcia é filha do desembargador José Erasmo Couto,
que morreu oito anos antes da festa de casamento na Urca.
Os vultosos benefícios de Márcia chegaram a ser cancelados por uma
juíza, a pedido da Rioprevidência. Ela conseguiu recuperá-los no
Tribunal de Justiça do Rio, onde seu pai atuou por muitos anos. O
excêntrico caso está longe de ser exceção no país. Um levantamento
inédito feito por ÉPOCA revela que pensões para filhas solteiras de
funcionários públicos mortos custam ao menos R$ 4,35 bilhões por ano à
União e aos Estados brasileiros. Esse valor, correspondente a 139.402
mulheres, supera o orçamento anual de 20 capitais do país – como
Salvador, Bahia, e Recife, Pernambuco.
Ao longo de três meses, ÉPOCA consultou o Ministério do Planejamento e
os órgãos de Previdência estaduais para apurar os valores pagos, o
número de pensionistas e a legislação. Ao menos 14 Estados confirmaram
pagar rendimentos remanescentes para filhas solteiras, embora todos já
tenham mudado a lei para que não haja novos benefícios. Hoje, as pensões
por morte são dadas a filhos de ambos os sexos até a maioridade e, por
vezes, até os 24 anos, se frequentarem faculdade. Santa Catarina, Amapá,
Roraima, Tocantins e Mato Grosso do Sul informaram não ter mais nenhum
caso. Distrito Federal, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Rondônia e
Piauí deram informações incompletas ou não forneceram a quantidade de
pensionistas e o valor gasto. ÉPOCA não conseguiu contato com a Paraíba.
É provável, portanto, que os números sejam superiores aos 139.402
apurados e aos R$ 4,35 bilhões.
NO EXTERIOR
Tereza Gavinho com sua família em Roma (à esquerda) e na Disney (à direita). Ela nega ter vivido com o pai dos três filhos (Foto: Arq. pessoal)
Oriunda de uma época em que as mulheres não trabalhavam e
dependiam do pai ou do marido, a pensão para filhas solteiras maiores de
21 anos pretendia não deixar desassistidas filhas de servidores mortos.
Hoje, a medida dá margem a situações como a de Márcia e a diversas
fraudes. Para ter o direito, a mulher não pode se casar ou viver em
união estável. Para driblar a lei e seguir recebendo os benefícios,
muitas se casam na prática. Moram com o marido, têm filhos, mas não
registram a união oficialmente. O governo federal concentra 76.336
casos. Isso corresponde a 55% dos benefícios do país, só entre filhas de
servidores civis mortos até dezembro de 1990. Os militares da União
descontam mensalmente 1,5% do salário para deixar pensão para as filhas.
O custo anual aos cofres federais é de R$ 2,8 bilhões. Segundo o
Ministério do Planejamento, trata-se de direito adquirido. O total
diminuiu 12% desde 2008. Houve 3.131 mortes, 1.555 mudanças de estado
civil, e 1.106 assumiram cargo público – pela lei federal, motivo de
perda. As “renúncias espontâneas” foram apenas 518. O governo afirma que
“as exclusões decorrem do trabalho de qualificação contínua da base de
dados de pessoal” e que a busca por inconsistências na folha é
permanente. A partir de 2014, a Pasta centralizará a lista de
pensionistas filhas solteiras, hoje dispersas.
O Rio de Janeiro, antiga capital do país, é o Estado com mais
casos: 30.239, a um custo anual de R$ 567 milhões, um terço dos
benefícios da Rioprevidência. Em São Paulo, 15.551 mulheres consomem R$
451,7 milhões por ano. As pensões paulistas custam, em média, R$ 2.234,
quase o dobro das fluminenses. Valem para mortes até 1992 para civis
(4.643), e até 1998 para militares estaduais (10.908). Segundo a São
Paulo Previdência (SPPrev), há recadastramento anual obrigatório para
identificar irregularidades. “Pensionistas que mantêm união estável e
não a informam à autarquia praticam fraude, estão sujeitas à perda do
benefício e a procedimentos administrativos e podem ter de ressarcir os
valores”, informou a SPPrev.
Uma das pensões polêmicas pagas por São Paulo, a contragosto, vai
para a atriz Maitê Proença. Seu pai, o procurador de Justiça Eduardo
Gallo, morreu em 1989. Maitê recebe cerca de R$ 13 mil, metade da
pensão, dividida com a viúva. Em 1990, Maitê teve a filha Maria Proença
Marinho, com o empresário Paulo Marinho, com quem teve um relacionamento
por 12 anos, não registrado. A SPPrev cortara o benefício, sob a
alegação de que a atriz vivera em união estável. Maitê recorreu, obteve
sentenças favoráveis em primeiro grau e no Tribunal de Justiça. Mantém a
pensão, ainda em disputa. Segundo seu advogado, Rafael Campos, Maitê
“nunca foi casada nem teve união estável” com Marinho, e a revisão do
ato de concessão da pensão já estava prescrita quando houve o corte. “O
poder público não pode rever seus atos a qualquer momento, senão
viveremos numa profunda insegurança jurídica”, diz.
O Maranhão paga as maiores pensões entre os Estados brasileiros – R$ 12.084 mensais, em média. Segundo o órgão previdenciário maranhense, todas são pagas a filhas de magistrados e integrantes do Tribunal de Contas do Estado. Amazonas, com benefícios médios de R$ 7.755, e Acre, com R$ 6.798, aparecem em seguida. Por todo o país, há mulheres com três ou quatro filhos do mesmo homem que dizem jamais ter vivido em união estável. “Tenho sete filhos com o mesmo pai, mas só namorava”, diz uma pensionista do Rio. Situação semelhante é vivida pela advogada Tereza Cristina Gavinho, filha de delegado de polícia (salário aproximado de R$ 20 mil), cuja pensão foi cortada, mas devolvida após decisão da Justiça. De acordo com a Rioprevidência, há “sérios indícios de omissão dolosa do casamento/convivência marital com o sr. Marcelo Britto Ferreira, com o qual tem três filhos!!!”. Tereza nega ter vivido com ele. Algumas explicações são curiosas. “O pai dos meus filhos é meu vizinho e é casado”, diz uma mulher no Rio. “Não posso ter união estável porque sou homossexual”, afirma outra. A maioria das fraudes é constatada após denúncias de parentes, geralmente por vingança. “A parte mais sensível do ser humano é o bolso, e aí não tem fraternidade nem relação maternal”, afirma Gustavo Barbosa, presidente da Rioprevidência.
O Maranhão paga as maiores pensões entre os Estados brasileiros – R$ 12.084 mensais, em média. Segundo o órgão previdenciário maranhense, todas são pagas a filhas de magistrados e integrantes do Tribunal de Contas do Estado. Amazonas, com benefícios médios de R$ 7.755, e Acre, com R$ 6.798, aparecem em seguida. Por todo o país, há mulheres com três ou quatro filhos do mesmo homem que dizem jamais ter vivido em união estável. “Tenho sete filhos com o mesmo pai, mas só namorava”, diz uma pensionista do Rio. Situação semelhante é vivida pela advogada Tereza Cristina Gavinho, filha de delegado de polícia (salário aproximado de R$ 20 mil), cuja pensão foi cortada, mas devolvida após decisão da Justiça. De acordo com a Rioprevidência, há “sérios indícios de omissão dolosa do casamento/convivência marital com o sr. Marcelo Britto Ferreira, com o qual tem três filhos!!!”. Tereza nega ter vivido com ele. Algumas explicações são curiosas. “O pai dos meus filhos é meu vizinho e é casado”, diz uma mulher no Rio. “Não posso ter união estável porque sou homossexual”, afirma outra. A maioria das fraudes é constatada após denúncias de parentes, geralmente por vingança. “A parte mais sensível do ser humano é o bolso, e aí não tem fraternidade nem relação maternal”, afirma Gustavo Barbosa, presidente da Rioprevidência.
BENEFICIADA
A atriz Maitê Proença. Ela nega ter sido casada
e recebe R$ 13 mil por mês como “filha solteira”
(Foto: Reginaldo Teixeira/Ed. Globo)
A dentista Márcia, alvo de uma ação popular que inclui fotos de seu
casamento, nega ter se casado. Numa ação para obter pensão alimentícia
para os filhos, afirma, porém, que “viveu maritalmente com João Batista,
sobrevindo dessa relação a concepção dos suplicantes (filhos)”.
Seu advogado, José Roberto de Castro Neves, diz que a cerimônia
religiosa foi “como um teatro, ela era de uma família tradicional, mãe
religiosa e pai desembargador, então ela fez essa mise-en-scène”. Márcia
não trabalha como dentista. Vive dos benefícios. Para a
Procuradoria-Geral do Rio, tal pensão gera “parasitismo social” – por
contar com a pensão, o cidadão deixa de produzir para a sociedade. Em
2011, o Rio passou a exigir a assinatura de termo em que as pensionistas
declaram, “sob as penas da lei”, se vivem ou viveram “desde a
habilitação como pensionista, em relação de matrimônio ou de união
estável com cônjuge ou companheiro”. A Rioprevidência hoje corta a
pensão de quem reconhece casamento, recusa-se a assinar ou falta, após
processo administrativo. A partir da medida, 3.140 pensões foram
canceladas, uma economia anual de R$ 100 milhões.
Até os advogados de Márcia e Maitê reconhecem a necessidade de combater irregularidades e abusos. “O risco é tratar os casos sem analisar as peculiaridades. Evidentemente, há abusos que devem ser coibidos”, diz Castro Neves, advogado de Márcia. O maior risco, na verdade, é o Brasil seguir como um país de privilégios mantidos pelo contribuinte.
Até os advogados de Márcia e Maitê reconhecem a necessidade de combater irregularidades e abusos. “O risco é tratar os casos sem analisar as peculiaridades. Evidentemente, há abusos que devem ser coibidos”, diz Castro Neves, advogado de Márcia. O maior risco, na verdade, é o Brasil seguir como um país de privilégios mantidos pelo contribuinte.
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