Publicado por Clayton José Franco Brandão
Jorge Luiz Souto Maior
O
presente texto tem o propósito de apresentar onze argumentos, do
goleiro ao ponta-esquerda, para demonstrar que a Copa já era! Ou seja,
que já não terá nenhum valor para a sociedade brasileira e, em especial
para a classe trabalhadora, restando-nos ser diligentes para que os
danos gerados não se arrastem para o período posterior à Copa.
1. A perda do sentido humano
O debate entre os que defendem a causa “não vai ter copa” e os que afirmam “vai ter copa” está superado. Afinal, haja o que houver, o evento não vai acontecer, ao menos no sentido originariamente imaginado, como instrumento apto a gerar lucros e dividendos políticos “limpinhos”, como se costuma dizer, pois não é mais possível apagar os efeitos deletérios que a Copa já produziu para a classe trabalhadora brasileira. É certo, por exemplo, que para José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira, Ronaldo Oliveira dos Santos, Marcleudo de Melo Ferreira, José Antônio do Nascimento, Antônio José Pitta Martins e Fabio Hamilton da Cruz, mortos nas obras dos estádios, já não vai ter Copa!
Aliás, a Copa já não
tem o menor valor para mais de 8.350 famílias que foram removidas de
suas casas no Rio de Janeiro, em procedimento que, como adverte o
jornalista Juca Kfouri, no documentário, A Caminho da Copa1, de Carolina
Caffé e Florence Rodrigues, “lembram práticas nazistas de casas que são
marcadas num dia para serem demolidas no dia seguinte, gente passando
com tratores por cima das casas”. Essas práticas, segundo relatos dos
moradores, expressos no mesmo documentário, incluíram invasões nas
residências, para medir, pichar e tirar fotos, estabelecendo uma lógica
de pressão a fim de que moradores assinassem laudos que atestavam que a
casa estava em área de risco, sob o argumento de que na ausência de
assinatura nada receberiam de indenização, o que foi completado com o
uso da Polícia para reprimir, com extrema violência, os atos de
resistência legítima organizados pelos moradores, colimando com
demolições que se realizaram, inclusive, com pessoas ainda dentro das
casas. As imagens do documentário mencionado são de fazer chorar e de
causar indignação, revolta e repúdio, como o são também as imagens da
violência utilizada para a desocupação de imóvel da VIVO na zona norte
do Rio de Janeiro, ocorrida no dia 11 de abril de 2014, onde se
encontravam 5.000 pessoas. Lembre-se que as remoções para a Copa
ocorreram também em Cuiabá, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre,
Recife, Manaus, São Paulo e Fortaleza, atingindo, segundo os Comitês
Populares da Copa, cerca de 170 mil famílias em todo o Brasil.
A
Copa já não tem sentido para o Brasil, como nação, visto que embora
sejam gastos cerca de R$ 30 bilhões para o montante total das obras,
sendo 85% vindos dos cofres públicos, a forma como se organizou – ou não
se organizou – a Copa acabou abalando a própria imagem do Brasil. Ou
seja, mesmo se pensarmos o evento do ponto de vista econômico e ainda
que, imediatamente, se possa chegar a algum resultado financeiro
positivo, considerando o que se gastou e o dinheiro que venha a ser
atraído para o mercado nacional, é fácil projetar um balanço negativo em
razão da quebra de confiabilidade.
Se o Brasil queria se
mostrar, como de fato não é, para mais de 2 bilhões de telespectadores,
pode estar certo de que a estratégia já não deu certo. A propósito, a
própria FIFA, a quem se concederam benefícios inéditos na história das
Copas, tem difundido pelo mundo uma imagem extremamente negativa do
Brasil, que até sequer corresponde à nossa realidade2, pois faz parecer
que o Brasil é uma terra de gente preguiçosa e descomprometida, quando
se sabe que o Brasil, de fato, é um país composto por uma classe
trabalhadora extremamente sofrida e dedicada3 e onde se produz uma
inteligência extremamente relevante em todos os campos do conhecimento,
mas que, enfim, serve para demonstrar que maquiar os nossos problemas
sociais e econômicos não terá sido uma boa estratégia.
2. Ausência de beneficio econômico
Mesmo que entre perdas e ganhos o saldo econômico seja positivo, há de se indagar qual o preço pago pela população brasileira, vez que restará a esta conviver por muitos anos com o verdadeiro legado da Copa: alguns estádios fantasmas e obras inacabadas, nos próprios estádios e em aeroportos e avenidas, além da indignação de saber que os grandes estádios e as obras em aeroportos custaram milhões aos cofres públicos, mas que, de fato, pouca serventia terão para a maior parte da classe operária, que raramente viaja de avião e que tem sido afastada das partidas de futebol, em razão do processo notório de elitização incrementado neste esporte.
Oportuno frisar que o dinheiro
público utilizado origina-se da riqueza produzida pela classe
trabalhadora, vez que toda riqueza provém do trabalho e ainda que se
diga que não houve uma transferência do dinheiro público para o
implemento de uma atividade privada, vez que tudo está na base de
empréstimos, não se pode deixar de reconhecer que foram empréstimos com
prazos e juros bastante generosos, baseados na previsibilidade de ganhos
paralelos com o evento, ganhos que, no entanto, já se demonstram
bastante questionáveis.
No caso do estádio Mané Garrincha, em
Brasília, por exemplo, com custo final estimado em R$1,9 bilhões,
levando-se em consideração o resultado operacional com jogos e eventos
obtidos em um ano após a conclusão da obra, qual seja, R$1.137 milhões,
serão precisos 1.167 anos para recuperar o que se gastou, o que é um
absurdo do tamanho do estádio, ainda que o Ministro do Esporte, Aldo
Rebelo, e o secretário executivo da pasta, Luis Fernandes, tenham
considerado o resultado, respectivamente, “um êxito” e “um exemplo
contra o derrotismo”4.
O problema aumenta, gerando indignação,
quando se lembra que não se tem visto historicamente no Brasil – desde
sempre – a mesma disposição de investir dinheiro público em valores
ligados aos direitos sociais, tais como educação pública, saúde pública,
moradias, creches e transporte.
O que se sabe com certeza é que a
FIFA, que não precisa se preocupar com nenhum efeito social e econômico
correlato da Copa, obterá um enorme lucro com o evento. “Uma projeção
feita pela BDO, empresa de auditoria e consultoria especializada em
análises econômicas, financeiras e mercadológicas, aponta que a Copa do
Mundo de 2014 no Brasil vai render para a Fifa a maior arrecadação de
sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões entrarão nos cofres da
entidade (cerca de R$ 10 bilhões).”5
3. O prejuízo para o governo
O governo brasileiro, que tenta administrar todos os prejuízos do evento, vê-se obrigado, pelo compromisso assumido por ocasião da candidatura, a conferir para a FIFA garantias, que ferem a Constituição Federal e que, por consequência, estabelecem um autêntico Estado de exceção, para que o lucro almejado pela FIFA não corra risco de diminuição, entregando-lhe, além dos estádios, que a FIFA utilizará gratuitamente:
a)
a criação de um “local oficial de competição”, que abrange o perímetro
de 2 km em volta do estádio, no qual será reservada à FIFA e seus
parceiros, a comercialização exclusiva, com proibição do livre comércio,
inclusive de estabelecimentos já existentes no tal, caso seu comércio
se relacione de alguma forma ao evento;
b) a institucionalização
do trabalho voluntário, para serviços ligados a atividade econômica
(estima-se que cerca de 33 mil pessoas terão seu trabalho explorado
gratuitamente, sem as condições determinadas por lei, durante o período
da Copa no Brasil);
c) o permissivo, conferido pela Recomendação
n. 3/2013, do CNJ, da exploração do trabalho infantil, em atividades
ligadas aos jogos, incluindo a de gandula, o que foi proibido, ainda que
com bastante atraso, em torneios organizados pela CBF (Confederação
Brasileira de Futebol), desde 2004, seguindo a previsão constitucional e
o Estatuto da Criança e da Juventude (ECA);
d) a liberdade de atuar no mercado, sem qualquer intervenção do Estado,
podendo a FIFA fixar o preço dos ingressos como bem lhe aprouver (art.
25, Lei Geral da Copa);
e) a eliminação do direito à
meia-entrada, pois a Lei Geral da Copa permitiu à FIFA escalonar preços
em 4 categorias, que serão diferenciadas, por certo, em razão do local
no estádio, sendo fixada a obrigatoriedade de que se tenha na categoria
4, a mais barata (não necessariamente com preço 50% menor que a mais
cara), apenas 300 mil ingressos, sem quórum mínimo para cada jogo, e
apenas dentre estes é que se garantiu a meia entrada para estudantes,
pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos; e
participantes de programa federal de transferência de renda, que, assim,
foram colocados em concorrência pelos referidos ingressos;
f) o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
deixando-se os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de
ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e
cancelamento de assentos nos locais dos Eventos à definição exclusiva da
FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade: de
modificar datas, horários ou locais dos eventos, desde que seja
concedido o direito ao reembolso do valor do ingresso ou o direito de
comparecer ao evento remarcado; da venda de ingresso de forma avulsa, da
venda em conjunto com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e de
estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do
ingresso após a confirmação de que o pedido de ingresso foi aceito ou
após o pagamento do valor do ingresso, independentemente da forma ou do
local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso (art. 27).
4. O prejuízo para a cidadania
Para garantir mesmo que o lucro da FIFA não seja abalado, o Estado já anunciou que o evento terá o maior efetivo de policiais da história das Copas, com gasto estimado de 2 bilhões de reais, mobilizando, inclusive, as Forças Armadas, tudo isso não precisamente para proteger o cidadão contra atos de violência urbana, mas para impedir que o cidadão, vítima da violência da Copa, possa se insurgir, democraticamente, contra a sua realização.
A respeito das manifestações, vale frisar, é
completamente impróprio o argumento de que como nada se falou antes,
agora é tarde para os cidadãos se insurgirem. Primeiro, porque quando o
compromisso foi firmado ninguém foi consultado quanto ao seu conteúdo.
E, segundo, porque nenhum silêncio do povo pode ser utilizado como
fundamento para justificar o abalo das instituições do Estado de
Direito, vez que assim toda tirania, baseada na força e no medo, estaria
legitimada. O argumento, portanto, é insustentável e muito grave,
sobretudo no ano em que a sociedade brasileira se vê diante do desafio
de saber toda a verdade sobre o golpe de 1964 e os 21 anos da ditatura
civil-militar.
Deve-se acrescentar, com bastante relevo, que o
evento festivo, composto por alguns jogos de futebol, está sendo
organizado de modo a abranger toda a sociedade brasileira, impondo-lhe
os mais variados sacrifícios, pois impõe uma intensa alteração da
própria rotina social, atingindo a pessoas que nenhuma relação possuem
com o evento ou mesmo que tenham aversão a ele.
O próprio
calendário escolar foi alterado, para que não houvesse mais aulas
durante a Copa, buscando, de fato, melhorar artificialmente o trânsito e
facilitar o acesso aos locais dos jogos. A educação, que é preceito
fundamental, que se arranje, pois, afinal, é ano da Copa! Algumas
cidades, para melhor atingir esse objetivo da facilitar a circulação,
mascarando os problemas do transporte, pensam, seriamente, em decretar
feriados nos dias de jogo da seleção brasileira, interferindo, também,
na lógica produtiva nacional.
Nos serviços públicos já se
anunciaram alterações nos horários de funcionamento, de modo a não
permitir coincidência com os dias de jogos do Brasil, sendo que em
alguns Tribunais do Trabalho (Mato Grosso – em Cuiabá e nas cidades do
interior; Rio Grande do Sul e São Paulo, com diferenças de intensidade e
de datas); o funcionamento foi suspenso, gerando adiamento das
audiências... Ou seja, o trabalhador, que esperou meses para ser
atendido pela Justiça, verá sua audiência adiada para daqui a alguns
novos meses, pois, afinal, era dia de jogo da Copa!
Somados todos
esses fatores, é fácil entender que a Copa já perdeu todo o sentido
para a nação brasileira. Não por outra razão, aliás, é que a aprovação
para a realização da Copa no Brasil, em novembro de 2008, que era de 79%
caiu, em abril de 2014, para 48%, e os que eram contrários subiram, no
mesmo período, de 10% para 41%, sendo que mais da metade dos brasileiros
considera que os prejuízos serão maiores que os ganhos.
5. O prejuízo para a razão
Numa leitura otimista, o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, que se chama, por coincidência reveladora, Ricardo Trade (comércio, em inglês), prefere dar destaque ao fato de que 48% são a favor e apenas 41% são contra, avaliando, então, que o copo está meio cheio6. Só não consegue ver que o copo está esvaziando e que, de fato, nos trens e ônibus, que transportam os trabalhadores, só se fala da Copa para expressar indignação com relação às condições do transporte, da saúde, das escolas, e da falta de creches. Sintomático, aliás, o fato de que as periferias das grandes cidades não estão pintadas para a “festa” do futebol, como estavam nas Copas anteriores e isso porque, com a Copa sendo realizada aqui, é possível ver as disparidades e perceber com maior facilidade como a retórica do legado não atinge, concretamente, a vida da classe trabalhadora.
Os tais empregos gerados são
precários e inseridos, sobretudo nas obras de estádios, aeroportos e
vias públicas, na lógica perversa da terceirização, sendo que muitos
trabalhadores ainda serão explorados sem qualquer remuneração no mal
denominado trabalho “voluntário”, referido com orgulho pelo “Senhor
Comércio”.
Fato é que não será mais possível assistir a um jogo
da Copa, no estádio, pela TV ou nos circos armados do “Fan Fest” e se
emocionar com uma jogada ou um gol, sem lembrar do preço pago: assalto à
soberania; Estado de exceção; gastos públicos; abalo da confiabilidade
em razão da desorganização; violências dos despejos, dos acidentes de
trabalho e da repressão policial...
Sobre o Fan Fest, ademais, é
oportuno esclarecer que se trata de um “evento oficial” da Copa da FIFA,
que deve ser organizado e custeado pelas cidades sedes de jogos, para
que os excluídos dos estádios possam assistir aos jogos por um telão,
com o acompanhamento de shows. Esse evento, organizado e pago pelo
Estado (que se fará em São Paulo mediante parceria com o setor privado,
conforme Comunicado de Chamamento Público n. 01/2014/SMSP, que
estabeleceu o prazo de uma semana para o oferecimento de ofertas),
realizado em espaço público, atende aos interesses privados da FIFA e
suas parceiras. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Decreto
n. 55.010, de 9 de abril de 2014, assinado pela vice-prefeita em
exercício, Nádia Campeão (em nova coincidência reveladora7), que regulou
o evento, transforma a área pública do Fan Fest em uma área privada,
reservada, como dito no Decreto, aos fãs da Copa. Nos termos expressos
no Decreto: “FAN FEST: área do Vale do Anhangabaú indicada pela
cidade-sede e reconhecida pela FIFA como área de lazer exclusiva aos fãs
da Copa do Mundo FIFA 2014” (inciso VIII, do art. 2º.) – grifou-se
O
mesmo Decreto fixa esse local, o do Fan Fest, como área de “restrição
comercial”, que são “áreas definidas pelo Poder Público Municipal com
perímetros restritos no entorno de locais oficiais específicos de
competição, nas quais, respeitadas as normas legais existentes, fica
assegurada a exclusividade prevista no artigo 11 da Lei Federal nº 12.663,
de 2012, à FIFA ou a quem ela autorizar” (inciso XIII, do art. 2º.),
valendo reparar que o Decreto, artificialmente, amplia, em muito, a
extensão geográfica do Vale do Anhangabaú: “FAN FEST: a partir do Largo
da Memória, Rua Formosa, Viaduto do Chá, Praça Ramos de Azevedo, Rua
Conselheiro Crispiniano, Rua Capitão Salomão, Praça Pedro Lessa, Largo
São Bento, Rua Florêncio de Abreu, Rua Boa Vista, Rua Líbero Badaró,
Praça do Patriarca, alça de retorno da Av. 23 de Maio do sentido
Bairro/Centro para o sentido Centro/Bairro, Av. 23 de Maio, entre o
Largo da Memória e o Viaduto do Chá, conforme Anexo II deste decreto”
(inciso II, do art. 3º.), atingindo até mesmo o espaço aéreo: “Os
espaços aéreos correspondentes aos perímetros descritos nos incisos I e
II do “caput” deste artigo também se constituem em áreas de restrição
comercial” (parágrafo único do art. 3º.).
É importante saber que
ao se impedir a comercialização na área reservada a Prefeitura de São
Paulo acabou interrompendo um processo de negociação, iniciado em maio
de 2012, com os ambulantes que atuavam na cidade e, em especial, na
região central, onde se situa o Vale do Anhangabaú, e cuja licença havia
sido cassada no contexto de uma política de endurecimento muito forte
quanto à fiscalização de sua atuação, que fora intensificada,
exatamente, a partir de 2011, quando houve a assinatura do termo de
compromisso, anunciando São Paulo como uma das cidades sedes da Copa. Em
2012, acabaram sendo canceladas todas as 5.137 licenças dos ambulantes e
até hoje, mesmo após instaurado, desde 2012, um grupo de trabalho
tripartite – trabalhadores, sociedade civil e prefeitura (Fórum dos
Ambulantes), para a discussão do problema, nada se resolveu e, em
concreto, ao editar o Chamamento Público acima citado, a Prefeitura
acabou dificultando sobremaneira a pretensão dos ambulantes de terem
alguma atuação comercial durante a Copa. É a Copa, na verdade, fechando
postos de trabalho!
6. De novo o dinheiro
Há de se considerar que todos esses efeitos já foram produzidos e continuarão repercutindo na vida real para além da Copa, ainda que o saldo econômico desta venha a ser positivo.
E se o tema é
dinheiro, há de se indagar: dinheiro para quem, cara pálida? É evidente
que o benefício econômico não ficará para a classe trabalhadora e sim
para quem explora o trabalho ou se vale da lógica de reprodução do
capital. Para o trabalhador, o dinheiro que se direciona é o fruto do
trabalho realizado, que, de fato, na lógica do modelo de sociedade
capitalista, não representa, jamais, o equivalente necessário para
restituir à classe trabalhadora como um todo o valor do trabalho
empregado no serviço ou na obra. A lógica econômica da Copa não é outra
coisa senão a intensificação do processo de acumulação de riqueza por
meio da exploração do trabalho alheio, sendo que se considerarmos a
utilização do denominado “trabalho voluntário”, que se realizará sem
qualquer custo remuneratório, a acumulação que se autoriza é ainda
maior.
O tal efeito benefício econômico, a que tanto se alude,
portanto, não será, obviamente, revertido à classe trabalhadora. Esta,
inclusive, será enormemente prejudicada, na medida em que o dinheiro
público utilizado para financiar a atividade lucrativa de índole privada
foi extraído da tributação realizada sobre a riqueza produzida pelo
trabalho e que, assim, deveria ser, prioritariamente, revertida ao
conjunto da classe trabalhadora para a satisfação das necessidades
essenciais garantidas por preceitos constitucionais: escolas, hospitais,
previdência e assistência social, creches e transporte, por exemplo. É
completamente ilógico dizer, como disse o diretor-geral do Comitê
Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, no texto mencionado, que
se está usando o dinheiro público para incentivar uma produção privada
com o objetivo de, ao final, tributar essa produção e devolver o
dinheiro aos cofres públicos.
O argumento seria apenas ilógico
não fosse, também, digamos assim, carregado de alguns equívocos, o que o
torna, portanto, muito mais grave. Ora, como adverte Maurício Alvarez
da Silva, pelos termos da Lei Geral da Copa, Lei n. 12.350/10,
“foi concedida à Fifa e sua subsidiária no Brasil, em relação aos fatos
geradores decorrentes das atividades próprias e diretamente vinculadas à
organização ou realização dos Eventos, isenção de praticamente todos os
tributos federais”8 9.
Além disso, em 17 de maio de 2013, o
governo federal publicou no “Diário Oficial da União decreto que concede
isenção de tributos federais nas importações destinadas à Copa das
Confederações neste ano e à Copa do Mundo de 2014. Entre os produtos
incluídos na isenção estão alimentos, suprimentos médicos, combustível,
materiais de escritório, troféus. O benefício abrange Imposto sobre
Produtos Industrializados incidente na importação, Imposto de
Importação, PIS/Pasep-Importação,
Cofins-Importação, Taxa de utilização do Siscomex, Taxa de utilização
do Mercante, Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante e
Cide-combustíveis”10.
Em concreto, continuarão sendo tributados
apenas as empresas nacionais, que não estejam integradas ao rol das
apaziguadas da FIFA, sofrendo, ainda, com a isenção concedida às
importadoras, os trabalhadores e os consumidores, sendo que o valor
circulado nesta seara é ínfimo se considerarmos aquele, sem tributação,
destinado à FIFA e suas parceiras e às importadoras.
7. De novo os ataques aos trabalhadores
Quando os trabalhadores, saindo da invisibilidade, se apresentam no cenário político e econômico e se expressam no sentido de que planejam uma organização coletiva para tentarem diminuir o prejuízo, buscando, por meio de reivindicações grevistas, atrair para si uma parte maior do capital posto em circulação em função da Copa, logo algum economista de plantão vem a público com a ameaça de que tais ganhos podem resultar em demissões futuras11.
Mas, essa possibilidade aventada pelos
trabalhadores de se fazerem ouvir na Copa, que pode, em concreto,
minimizar o prejuízo dos trabalhadores, no processo de acumulação, e do
país, na evasão de riquezas, acabou provocando uma reação institucional
imediata, afinal o compromisso assumido pelo Estado brasileiro foi o de
permitir que a FIFA obtivesse o seu maior lucro da história12. Então, a
Justiça do Trabalho se adiantou e divulgou que vai estabelecer um
sistema de plantão para julgar, com a máxima celeridade (de um dia para o
outro), as greves que ocorram durante a Copa, com o pressuposto já
anunciado de que “as greves têm custo para os trabalhadores,
empregadores e população”, sendo certo que a Copa não pode ser usada
para “expor o país a uma humilhação internacional, como no Carnaval,
quando houve greve de garis”13.
Pouco importa o quanto a Justiça
do Trabalho, historicamente, demora para dar respostas aos direitos dos
trabalhadores, no que se refere às diversas formas de violências de que
são vítimas em razão das práticas de algumas empresas no que tange à
falta de registro, ao não pagamento de verbas rescisórias, ao não
pagamento de horas extras, ao não pagamento de indenizações por
acidentes do trabalho etc. Mesmo que já tendo melhorado sobremaneira na
defesa dos interesses dos trabalhadores, transmite ainda a ideia central
de que o que importa é ser célere quando isso interessa ao modelo
econômico, que se vale da exploração do trabalho para reproduzir o
capital.
A iniciativa repressiva da Justiça, ademais, foi
aplaudia, rapidamente, por editorial do jornal Folha de S. Paulo14, o
qual, inclusive, em declaração, no mínimo, infeliz, chamou os
trabalhadores de oportunistas:
É uma iniciativa elogiável para evitar o excesso de oportunismo sindical, que não hesita em prejudicar o público e ameaçar o principal evento do ano no país.
Ou
seja, todo mundo pode ganhar, menos os trabalhadores. Parodiando a
máxima penal, é como se lhes fosse dito: “tudo que vocês ganharem pode
ser utilizado contra vocês mesmos...”
Como foram as condições de
trabalho nas obras? Quantos trabalhadores não receberam ainda os seus
direitos por serviços que prestaram para a realização da Copa? Segundo
preconizado pelo viés dessa preocupação, nada disso vem ao caso... Na
visão dos que só veem imperativo obrigacional de realizar a Copa, como
questão de honra, custe o que custar, o que importa é que o “público”
receba o proveito dos serviços dos trabalhadores e se estes não ganham
salário digno ou se trabalham em condições indignas não há como trazer à
tona, para não impedir a realização do evento e para não abalar a
imagem no Brasil lá fora.
Mas, concretamente, que situação pode
constranger mais a figura do Brasil no exterior? O Brasil que faz
greves? Ou o Brasil em que os trabalhadores são submetidos a condições
subumanas de trabalho e que não permite que esses mesmos trabalhadores,
em geral invisíveis aos olhos das instituições brasileiras, se insurjam
contra essa situação, tendo que aproveitar o momento de um grande evento
para, enfim, ganhar visibilidade, inclusive, internacional?
Na
verdade, a humilhação internacional, a qual não se quer submeter o
Brasil, é a de que o mundo saiba como o capitalismo aqui se desenvolve,
ainda marcado pelos resquícios culturais de quase 400 anos de escravidão
e sem sequer os limites concretos da eficácia dos Direitos Humanos e
dos direitos sociais, promovendo, em concreto, uma das sociedades mais
injustas da terra.
8. O perverso legado das condições de trabalho na Copa
Do ponto de vista da realidade, é preciso consignar que a pressa na execução das obras ainda tem aumentado a espoliação da classe trabalhadora com elevação das jornadas de trabalho, cuja retribuição, ainda que paga, nunca é suficiente para atingir o nível da equivalência, ainda mais quando são implementadas fórmulas jurídicas fugidias do efetivo pagamento (banco de horas, compensações etc.). O trabalho em jornadas extraordinárias, ademais, gera um desgaste físico e mental do trabalhador que não é computado e não se compensa por pagamento.
Além
dos acidentes do trabalho citados inicialmente, portanto, é importante
adicionar ao legado da Copa para a classe trabalhadora as más condições
de trabalho, caracterizadas pela elevação das jornadas de trabalho, pelo
aumento do ritmo do trabalho e da pressão pela celeridade.
O
relato de alguns fatos, extraídos do noticiário jornalístico, auxilia na
visualização desse contexto de supressão de direitos dos trabalhadores
no período de preparação para a Copa.
Em setembro de 2013, 111
migrantes, vindos do Maranhão, Sergipe, Bahia e Pernambuco foram
encontrados em condições análogas à de escravos na obra de ampliação do
aeroporto de Guarulhos/SP, o mais movimentado da América Latina, sob a
responsabilidade da empresa OAS, que além de ser uma das maiores
construtoras do Brasil, é também a terceira empresa que mais faz doações
a candidatos de cargos políticos, segundo levantamento do jornal Folha
de S. Paulo, sendo uma das quatro empresas que formam o consórcio
Invepar que, junto com a Airports Company South Africa, detêm 51% da
sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional
de Guarulhos através da GRU Airport e que para as obras de ampliação do
aeroporto, onde foi flagrado trabalho escravo, obteve do BNDES um
empréstimo-ponte de R$ 1,2 bilhões.
E a OAS, evidentemente,
declarou que “vem apurando e tomando todas as providências necessárias
para atender às solicitações” do Ministério do Trabalho e Emprego,
negando que as vítimas fossem suas empregadas ou que tivesse tido
qualquer “participação no incidente relatado”15.
Até abril de
2012, conforme reportagem de Vinícius Segalla16, oito dos doze estádios
da Copa já haviam enfrentado greves, atingindo 92 dias de paralisação,
sendo o recorde do Maracanã, no Rio de Janeiro, com 24 dias. As
reivindicações foram variadas, indo desde questões ligadas à remuneração
até o desrespeito de direitos como pagamento de horas extras e
fornecimento de planos de saúde. Segundo a reportagem, “Em uma das
quatro paralisações já ocorridas em Pernambuco, no início de novembro do
ano passado, o motivo foi a forma como a Odebrecht lidou com as
reivindicações dos trabalhadores. É que a empreiteira demitiu dois
funcionários da arena que eram membros da Cipa (Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes) porque eles teriam incitado os trabalhadores a
fazer greve. A demissão dos operários, junto com denúncias de assédio
moral supostamente praticados pelo responsável pela segurança do
canteiro, levou os funcionários a decretar greve.”
Também nos
termos da reportagem, “a empresa explicou ao UOL Esporte que ‘Os dois
empregados membros da Cipa foram demitidos por justa causa, por
cometimento de flagrante ato de indisciplina, quando, no último dia 31
de outubro, instigaram os colegas a paralisarem a obra da Arena da Copa,
sem nenhuma razão plausível’.” Embora, depois, por meio de nota tenha
dito que as dispensas se deram sem justa causa.
A situação,
revela a mesma reportagem, foi também bastante séria na greve do
Maracanã, em setembro de 2011, cuja motivação, segundo Nilson Duarte,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção
Pesada (Sitraicp), teria sido o fato de que “foram servidos aos cerca de
2.000 trabalhadores da obra macarrão e feijão estragados, salada com
bichos e leite fora da validade”, o que fora negado pelo Consórcio
Maracanã (Odebrecht, Delta e Andrade Gutierrez), por meio de nota. O
local já havia sido alvo de uma greve, um mês antes, agosto de 2011, por
causa de uma explosão no canteiro que feriu um trabalhador.
Relata-se,
ainda, que em Manaus (AM), na Arena Amazônia, houve paralisação de um
dia, em 22 de março de 2012, porque conta do valor da cesta básica que
estava sendo paga aos operários, R$ 37, enquanto que “de acordo com
pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos), o valor da cesta básica, composta por 12 produtos,
fechou o mês de março a um custo R$ 251,38 na capital amazonense”, tendo
a greve se encerrado com o aumento da cesta para R$ 60, acompanhado da
promessa da empresa de que iria “voltar a pagar hora extra aos sábados, o
que parara de fazer três meses antes”.
Na arena de Pernambuco,
no início de 2012, foi promovida a dispensa coletiva de 560 empregados,
conforme destacado em reportagem de Paulo Henrique Tavares17, que vale a
pena reproduzir:
A sexta-feira marcou a volta aos trabalhos dos operários responsáveis pela construção da Arena Pernambuco, na cidade de São Lourenço da Mata. E como “boas-vindas”, 560 trabalhadores acabaram recebendo o comunicado de demissão. A expectativa da comissão organizadora da recente greve, que paralisou as obras do estádio por oito dias, é de que outros mil funcionários peçam a carta de dispensa até o fim da tarde.
Por considerar “abusiva e ilegal”, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-PE) exigiu, na quinta-feira, a volta aos trabalhos dos grevistas, com penalidade de R$ 5 mil, por dia, ao sindicato da categoria, o Sintepav, em caso de descumprimento. Apesar da obrigatoriedade, a ideia dos remanescentes nas obras da Arena Pernambuco é praticar – como os próprios denominam – uma “operação tartaruga”.
“Eu vim preparado para ser demitido. Como não fui, a maneira que encontrei para ajudar meus companheiros é trabalhar de maneira lenta. Cada prego desta Arena irá demorar pelo menos um dia, para ser colocado”, disse um trabalhador, que preferiu não ser identificado. “Eu não tenho prazo para terminar a obra. Quem tem prazo é o governo.”
Antes das demissões, as obras para a Arena da Copa contavam com 2.437 trabalhadores. Já contando com as saídas desta sexta-feira, cerca de 250 novos operários se apresentaram para o trabalho, em São Lourenço da Mata. “Pelo número de polícias que estão aqui na obra hoje, acredito que eles e o governador Eduardo Campo devem colocar a mão na massa para levantar o estádio até a Copa do Mundo”, falou, em tom irônico, um dos novos desempregados.
Entre as reivindicações, os trabalhadores exigiam aumento de benefícios, como cesta básica de R$ 80 para R$ 120, maior participação nos lucros e resultados (PLR), Plano de Saúde para os profissionais e ajudantes, além de abono dos dias parados e estabilidade de um ano para a comissão dos trabalhadores.
A questão pertinente às condições de
trabalho chegou a tal extremo que, na Arena do Grêmio (que não está
integrada aos jogos da Copa, mas se alimenta da mesma lógica), em
outubro de 2011, os próprios trabalhadores pediram sua demissão18, como
“forma de protesto pelas condições de trabalho impostas pela
empreiteira. A maioria dos trabalhadores é do Maranhão e retornará ainda
hoje para seu estado natal.”
No estádio do Itaquerão, os
operários disseram, em janeiro de 2014, à reportagem do UOL19 que
estavam recebem salário “por fora” (que impede a tributação e não se
integra aos demais direitos dos trabalhadores), “para trabalhar mais do
que o previsto pelo acordo e evitar que a inauguração do palco de
abertura da Copa do Mundo atrase ainda mais”. Segundo consta da
reportagem, “Um soldador que trabalha na obra contou à reportagem que
espera receber um salário quatro vezes maior do que o normal neste mês
devido às horas extras irregulares que está fazendo”.
Segundo a
reportagem, o acordo em questão, firmado com o aval do Ministério do
Trabalho e Emprego, em 19 de dezembro de 2013, foi o de que estaria
autorizado o trabalho em até duas horas extras diariamente, sendo que,
anteriormente, dizem os trabalhadores, havia jornadas de até 16 horas.
E, presentemente, as horas além das duas extras permitidas, que já é,
por si, grave afronta à Constituição,
eram trabalhadas sem marcação em cartão de ponto. "Eles [os chefes]
falam para a gente: 'Não pode atrasar'. Ainda tem muita coisa pra fazer e
às vezes é melhor mesmo você trabalhar umas horinhas a mais num dia
para terminar uma tarefa e já começa num ponto mais a frente no dia
seguinte", disse à reportagem um ajudante de pedreiro, de 23 anos, que,
assim como os outros trabalhadores que conversaram com o UOL Esporte,
pediu para não ser identificado.
Nos termos da reportagem, “Além
do medo de perder o salário adicional, os funcionários da construtora
disseram que foram orientados a não dar entrevistas. ‘Teve uma palestra
no fim do ano para falar pra gente tomar cuidado com a imprensa, pra não
ficar falando qualquer coisa porque isso só atrapalha a gente’, declara
o ajudante de pedreiro.”
Como revela notícia publicada no jornal
Folha de S. Paulo, edição de 23/03/14 (p. D-4), foram flagrados pelos
jornalistas trabalhadores executando suas tarefas sem as mínimas
condições de segurança e de uma subsistência digna em obra do centro de
treinamento da seleção da Alemanha no sul da Bahia (Santa Cruz
Cabrália).
9. O atentado histórico à classe trabalhadora
A maior parte dos problemas vivenciados pelos trabalhadores nas obras da Copa está ligada à sua submissão ao processo de terceirização e de precarização das condições de trabalho, que acabaram sendo acatados, sem resistência institucional contundente, durante o período de preparação para a Copa, interrompendo o curso histórico que era, até então, de intensa luta pela melhoria das condições de trabalho no setor da construção civil, que é o recordista, vale destacar, em acidentes do trabalho. Essa luta, implementada pelo Ministério Público do Trabalho, tendo como ponto essencial o combate à terceirização, entendida como fator principal da precariedade que gera acidentes, já havia sido, inclusive, encampada pelo Governo Federal, em 2012, ao se integrar, em 27 de abril, ao Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho.
O
fato é que o evento Copa, diante da necessidade de se acelerarem as
obras, acabou por jogar por terra quase toda, senão toda, a
racionalidade que já havia sido produzida a respeito do assunto
pertinente ao combate à terceirização no setor da construção civil,
chegando-se mesmo ao cúmulo do próprio Superintendente Regional do
Trabalho e emprego de São Paulo, vinculado ao Ministério do Trabalho e
Emprego, Luiz Antônio Medeiros, um ex-sindicalista, declarar, sobre as
condições de trabalho no Itaquerão, que: “Se esse estádio não fosse
da Copa, os auditores teriam feito um auto de infração por trabalho
precário e paralisado a obra. Estamos fazendo de conta que não vemos
algumas irregularidades” (entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 03/04/14).
O
período da preparação para a Copa, portanto, pode ser apontado como um
atentado histórico à classe trabalhadora, que jamais será compensado
pelo aludido “aumento de empregos”, até porque, como dito, tais
empregos, no geral, se deram por formas precárias. Nas obras o que se
viu e se vê – embora não seja visto pelo Ministério do Trabalho e
Emprego – são processos de terceirização e quarteirização, sem uma
oposição institucional, que, por conseqüência, produz o legado de grave
retrocesso sobre o tema, que tende a se estender, perigosamente, para o
período posterior à Copa.
Não se pode esquecer que quase todos os
acidentes fatais acima mencionados, não por coincidência, atingiram
trabalhadores terceirizados, e o Estado de exceção, acoplado ao silêncio
institucional sobre as formas de exploração do trabalho (exceção feita a
algumas iniciativas individualizadas de membros do Ministério Público
do Trabalho) e acatado para garantir a Copa, acabaram servindo como uma
luva a certas frações do setor econômico, que serão as únicas,
repita-se, que verdadeiramente, se beneficiarão do evento, para desferir
novo ataque aos trabalhadores, representado pela tentativa de fuga de
responsabilidade da empresa responsável pela obra, transferindo-a à
empresa contratada (terceirizada), que possui, como se sabe, quase
sempre, irrisório suporte financeiro para arcar com os riscos econômicos
envolvidos.
Sobre a morte de José Afonso de Oliveira Rodrigues, a
construtora Andrade Gutierrez, responsável pela construção da arena em
Manaus, defendeu-se, publicamente, dizendo que Martins trabalhava para a
Martifer, empresa contratada para fazer as estruturas metálicas da
fachada e da cobertura.
Quando da morte de Marcleudo de Melo
Ferreira, também na obra da arena de Manaus, a Andrade Gutierrez repetiu
a estratégia, expressando-se em nota:
É com pesar que a Construtora Andrade Gutierrez informa que por volta das 4h da manhã de hoje, 14/12/2013, o operário Marcleudo de Melo Ferreira, 22 anos, natural de Limoeiro do Norte – CE, funcionário de empresa subcontratada que presta serviços na montagem da cobertura da Arena da Amazônia, sofreu uma queda de uma altura de cerca de 35 metros, sendo socorrido e levado ao Pronto Socorro 28 de Agosto ainda com vida, onde não resistiu aos ferimentos e veio a falecer nesta manhã.
Reiteramos o compromisso assumido com a segurança de todos os funcionários e que uma investigação interna está sendo feita para apurar as causas do acidente. As medidas legais estão sendo tomadas em conjunto com os órgãos competentes. Lamentamos profundamente o acidente ocorrido e estamos prestando total assistência à família do operário. Em respeito à memória do mesmo, os trabalhos deste sábado foram interrompidos. – grifou-se
Igual
postura foi adotada pela Odebrecht Infraestrutura, responsável pela
obra do Itaquerão, no que tange às mortes de Fábio Luiz Pereira e
Ronaldo Oliveira dos Santos. Eis a nota publicada:
A Odebrecht Infraestrutura e o Sport Club Corinthians Paulista lamentam informar que no início da tarde de hoje um acidente na obra da Arena Corinthians provocou o falecimento de dois trabalhadores – Fábio Luiz Pereira, 42, motorista/operador de Munck da empresa BHM, e Ronaldo Oliveira dos Santos, 44 anos, montador da empresa Conecta. Pouco antes das 13 horas, o guindaste, que içava o último módulo da estrutura da cobertura metálica do estádio, tombou provocando a queda da peça sobre parte da área de circulação do prédio leste – atingindo parcialmente a fachada em LED. A estrutura da arquibancada não foi comprometida. Era a 38ª vez que esse tipo de procedimento realizava-se na obra e uma peça de igual proporção foi instalada há pouco mais de uma semana no setor Sul do estádio. Equipes do corpo de bombeiros estão no local. No momento, todos os esforços estão concentrados para oferecer assistência total às famílias das vítimas.
E
para demonstrar que a terceirização, com a utilização da estratégia de
se eximir de responsabilidade, não é privilegio da iniciativa privada,
quando houve a morte de José Antônio do Nascimento na obra do Centro de
Convenções do Amazonas, desenvolvida pelo Centro de Gestão Metropolitana
do Município de Manaus ao lado da Arena da Amazônia, a entidade em
questão expediu a seguinte nota:
O funcionário da Conserge, empresa que presta serviço para a Unidade de Gestão Metropolitana, José Antônio da Silva Nascimento, de 49 anos, morreu de infarto por volta das 9h da manhã deste sábado (14 de dezembro), quando trabalhava nos serviços de limpeza e terraplanagem para o asfaltamento do Centro de Convenções da Amazônia, localizado na Avenida Pedro Teixeira.
José Antônio se sentiu mal quando subiu em uma caçamba. Uma ambulância do Samu foi acionada imediatamente para realizar o atendimento, mas o trabalhador não resistiu. A Conserge está dando toda a assistência necessária à família da vítima.
Segundo a família de
José Antônio, este trabalhava sob pressão devido ao atraso na obra.
"Ele trabalhava de domingo a domingo", afirmou sua cunhada, Priscila
Soares.
Por ocasião da morte de Antônio José Pitta Martins,
técnico especializado em operações de guindastes de grande porte, que
veio de Portugal para trabalhar na obra da Arena da Amazônia, tendo sido
atingido na cabeça por uma peça de ferro que se soltou de um guindaste,
novamente a fala se repete. Em nota oficial, a empresa responsável
técnica pela obra, Andrade Gutierrez, destaca que o trabalhador não era
seu empregado, ao mesmo tempo em que deixa claro que “o acidente não
interferiu no seguimento das obras”
Eis o teor da nota:
NOTA DE ESCLARECIMENTO
A Construtora Andrade Gutierrez informa que, por volta das 8h da manhã de hoje, 07/02/2014, um técnico de guindaste de grande porte, funcionário da empresa Martifer, sofreu um acidente nas dependências do sambódromo enquanto desmontava a máquina utilizada nas obras da Arena da Amazônia. O guindaste, que auxiliava os trabalhos da Arena, já estava com as operações encerradas desde 11/01/2014 e desmobilizado em uma área externa. O operador foi socorrido pela equipe de Segurança do Trabalho e levado pelo SAMU até o hospital 28 de Agosto, onde teve seu quadro de saúde estabilizado e foi transferido para o hospital João Lúcio. O acidente não interferiu no seguimento das obras da Arena da Amazônia. – grifou-se
A
empresa Martifer Construções Metalomecânica S/A, por sua vez, emitiu
nota de pesar, noticiando que iria “apurar as causas do acidente"20.
A
última morte foi a de Fabio Hamilton da Cruz, que se deu em acidente
ocorrido no Itaquerão, após uma queda de oito metros de altura. Fabio,
conforme foi várias vezes frisado pelos envolvidos, com difusão na
imprensa, era empregado da WDS, uma subcontratada da Fast Engenharia,
que fora contratada pela AmBev, que aceitou bancar os 38 milhões de
reais para colocação de arquibancadas provisórias, exigidas pela FIFA
para que o estádio tivesse a capacidade de público necessária para
receber a abertura da Copa do Mundo.21
10. A culpabilização das vítimas
A respeito do acidente de Fábio Hamilton da Cruz, o Delegado designado para verificação do ocorrido, após ouvir alguns relatos, um dia depois do ocorrido, sem a realização de qualquer laudo técnico, já concluiu que teria havido um" excesso de confiança "da vítima.
Essa foi,
ademais, outra forma de agressão aos direitos dos trabalhadores que a
pressa para a realização da Copa acabou reforçando, a da culpabilização
da vítima nos acidentes do trabalho.
Ora, como o próprio nome
diz, o acidente do trabalho é um sinistro que se dá em função da
realização de trabalho em benefício alheio, ao qual, independente da
postura da vítima, fica obrigado a reparar o dano, já que o risco da
atividade econômica lhe pertence (art. 2º. Da CLT) e, consequentemente, é de sua responsabilidade o cuidado com o meio ambiente de trabalho.
É
extremamente agressivo à inteligência humana, servindo, inclusive para
fazer prolongar no tempo o sofrimento da vítima ou de seus familiares, o
argumento, daquele que explora com proveito econômico o trabalho
alheio, de que “vai apurar” o ocorrido, deixando transparecer no ar uma
acusação, que nem sempre é velada, de que a culpa pelo acidente foi do
trabalhador.
Veja-se, por exemplo, o que se passou no caso do
Raimundo Nonato Lima Costa, que morreu após uma queda de 35 metros na
Arena da Amazônia. Em nota de pesar pela sua morte, a responsável
técnica pela obra não teve o menor receio, inclusive, de fazer uma
acusação generalizada aos trabalhadores, apontando-os como responsáveis
por sua própria segurança. Diz a nota.
NOTA DE PESAR
A Andrade Gutierrez lamenta a morte do operário Raimundo Nonato Lima Costa, ocorrida na noite desta quinta-feira, durante o turno noturno da obra da Arena da Amazônia. A empresa providenciou apoio imediato à família do funcionário e aguarda o resultado dos trabalhos da perícia técnica que foi iniciada pela Polícia Civil com o objetivo de apurar as causas do ocorrido.
A Andrade Gutierrez reitera o compromisso assumido com a segurança de todos os seus funcionários e informa que intensificará o trabalho de conscientização dos operários com foco na prevenção de acidentes.
Por
ocasião da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, na mesma Arena, já
mencionada acima, o secretário da Copa em Manaus, Miguel Capobiango, foi
além na agressão aos trabalhadores e desferiu o ataque de que as duas
quedas fatais até então havidas na Arena tinham sido fruto do" relaxo
"dos operários na utilização dos equipamentos de segurança."Usar o
equipamento de segurança às vezes é chato e nem todos gostam de estar
usando. O operário às vezes abre mão por preguiça, então ele relaxa, e é
isso que agora nós não podemos deixar"."Infelizmente, os dois acidentes
aconteceram por uma questão básica de não cuidado do trabalhador no uso
correto do equipamento."22
E, sobre a morte de Fabio Hamilton da
Cruz no estádio no Itaquerão, disse Andrés Sanches:"Na vida, cometemos
erros e excessos. Já dirigi carro a 150 km/h. Eu não bebo. Vocês já
devem ter dirigido "mamados". Infelizmente, cometemos erros que acabam
em fatalidade. Realmente, é padrão na construção civil."23
11. O retrocesso social e humano da Copa
Bem se vê que o legado maléfico para os trabalhadores brasileiros com a Copa não está apenas nas más condições de trabalho e nos conseqüentes oito acidentes fatais (não se contando aqui os vários outros acidentes do trabalho que não resultaram em óbito24), o que, por si, já constitui um grande prejuízo, ainda mais se lembrarmos que as obras para a Copa da África em 2010 deixaram 02 mortes por acidente do trabalho, está também na tentativa explícita de culpar as vítimas, buscando atingir a uma impunidade que reforça a lógica de uma exploração do trabalho alheio pautada pela desconsideração da dignidade humana.
A Copa já
trouxe grandes prejuízos à classe trabalhadora e é preciso impedir que
se consagrem e se prolonguem, mansa e silenciosamente, para o período
pós-Copa. Não tendo sido possível obstar que o Estado de exceção se
instaurasse na Copa é essencial, ao menos, não permitir que ele continue
produzindo efeitos.
O passo fundamental é o de recuperar a
consciência, pois a porta aberta às concessões morais e éticas para
atender aos interesses econômicos na realização da Copa tem deixado
passar a própria dignidade, o que resta demonstrado nas manifestações
que tentam justificar o injustificável apenas para não permitir qualquer
abalo na “organização” do evento. Foi assim, por exemplo, que o maior
atleta do século XX e melhor jogador de futebol de todos os tempos, o
eterno Pelé, chegou a sugerir, mesmo que não tenha tido uma intenção
malévola, que mortes em obras são fatos que acontecem, “são coisas da
vida” e que se preocupava mesmo era com o atraso nas obras dos
aeroportos; que o competente e carismático técnico da seleção
brasileira, Luiz Felipe Scolari, ainda que sem querer ofender, afirmou
que a solução para o problema do racismo no futebol é ignorar os
“babacas” que cometem tais ofensas, pois puni-los não resolve nada; e
que o Ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, cogitou pedir para que
os cidadãos brasileiros economizassem energia a fim de que não faltasse
luz na Copa.
A postura subserviente, para satisfazer os
interesses da FIFA, chegou ao ponto extremo de algumas cidades, como
Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Cuiabá, Natal e Fortaleza, terem
atendido pedido feito, com a maior cara de pau do mundo, pelo
secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, para que as cidades sedes de
jogos da Copa concedessem transporte gratuito – algo que o Movimento
Passe Livre está lutando, e sofrendo, para conseguir há anos –, sendo
que a concessão, diversamente do que tem buscado o MPL, não se destina
às pessoas necessitadas, mas aos torcedores dos jogos da Copa, que
possuem condições financeiras para pagar os altos preços dos ingressos,
que chegaram a ser vendidos, no paralelo, por até R$91 mil...
É
de suma importância deixar claro, para a nossa compreensão e para a
nossa imagem no mundo, que temos a percepção de todos esses problemas,
que não o aprovamos e que estamos dispostos a enfrentá-los e superá-los.
O
autêntico efeito positivo da Copa – realizada, ou não – será a
constatação de que a classe trabalhadora se encontra em um estágio de
consciência que lhe permite compreender que a Copa reforça e intensifica
a lógica da exploração do trabalho como fonte reprodutora do capital,
favorecendo ao processo de acumulação da riqueza, ao mesmo tempo em que
permite a institucionalização de uma evasão oficial de divisas. A partir
dessa compreensão, a classe trabalhadora não se deixará levar pela
retórica de que o dinheiro dos turistas vai estimular o crescimento e
gerar empregos, até porque ao se inserir na mesma lógica capitalista o
dinheiro não é revertido à classe trabalhadora, à qual apenas é
remunerada, sem o necessário equivalente, pelo trabalho prestado,
direcionando-se, pois, a maior parcela do dinheiro em circulação em
função da Copa às multinacionais aqui instaladas, especialmente no setor
hoteleiro e nas companhias aéreas.
Cada trabalhador, pensando em
sua atividade e em seu cotidiano de ganho e de trabalho durante a Copa,
ou antes, que responda: teve ou terá algum ganho na Copa que não
provenha do trabalho? Este trabalho é prestado em que condições? O
eventual acréscimo de ganho está ligado ao aumento da quantidade de
trabalho prestado? Que o digam, sobretudo, os jornalistas!
Claro
que uma ou outra experiência comercial exitosa, desvinculada da dos
protegidos da FIFA, pode ocorrer, mas isso por exceção. E, cumpre
repetir: mesmo que no geral a Copa produza resultados econômicos
satisfatórios, não se terão, com isso, justificadas as supressões da
ordem jurídica constitucional, já havidas no período de preparação para o
evento, e as violências sofridas por diversas pessoas, e, em especial, a
classe trabalhadora, no que tange aos seus direitos sociais e humanos.
Este
é o ponto fundamental: o de não permitir que a Copa e a violência
institucional posta a seu serviço furtem a nossa consciência, que está
sendo duramente construída, vale lembrar, após 21 anos de ditadura,
seguida de 15 anos de propaganda neoliberal. A produção dessa
consciência é extremamente relevante para que o drama das diversas
pessoas, vitimadas pela Copa, não se arraste por muito mais tempo,
sofrimento que, ademais, só aumenta quando, buscando não abalar eventual
euforia da Copa, se tenta desconsiderar a sua dor, ou quando, partindo
de uma perversão da realidade, argumenta-se que as pessoas que são
contra a Copa (mesmo se apoiadas nos motivos acima mencionados) fazem
parte de uma conspiração para “contaminar” a Copa, apontadas como
adeptas da “violência”, sendo que para a ação dessas pessoas (que, de
fato, carregam um dado de consciência), o que se reserva é o
contra-argumento da “segurança pesada”25.
O desafio está lançado.
O que vai acontecer nos jogos da Copa, se a “seleção canarinho” vai se
sagrar hexa campeã, ou não, não é decisivo para a história brasileira.
Já o tipo de racionalidade e de reação que produzirmos diante dos fatos
sociais e jurídicos extremamente graves relacionados ao evento vai,
certamente, determinar qual o tipo de sociedade teremos na sequência.
Boa ou ruim, a Copa acaba e a vida concreta continua e será boa ou ruim
na medida da nossa capacidade de compreendê-la e de interagir com ela,
pois como já disse Drummond:
Foi-se a Copa? Não faz mal. Adeus chutes e sistemas. A gente pode, afinal, cuidar de nossos problemas.
Faltou inflação de pontos? Perdura a inflação de fato. Deixaremos de ser tontos se chutarmos no alvo exato.
O povo, noutro torneio, havendo tenacidade, ganhará, rijo, e de cheio, A Copa da Liberdade.
São Paulo, 21 de abril de 2014.
*Jorge Luiz Souto Maioré professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e membro da AJD – Associação Juízes para a Democracia.
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