28 de outubro de 2015

A Verdadeira História do Reino da Araucária

  
Essa postagem de hoje é um romance do autor Mauricio Saraiva, do Rio de Janeiro, que fala sobre os 05 estados do sul do Brasil, RS - SC - PR - SP - MS, que ele chamou de "Reino da Araucária".
  
O autor me contatou depois de ter visto a postagem sobre os grupos independentistas dos cinco estados do sul como mostrado nesse artigo de 2011: http://averdadequeamidianaomostra.blogspot.com/2011/02/movimento-separatista-dos-estados-do.html
  
Na verdade os separatistas do sul querem apenas a região sul, RS - SC - PR.
Os grupos independentistas de SP e do MS são grupos a parte.
  
FUI EU, Kruegger Contra Esquerdopatas, quem publicou a imagem dos 05 estados JUNTOS formando um único país.
   
E denominei de E.U.S. (Estados Unidos do Sul), pois eu achei que os 05 estados unidos formariam um país muito mais forte do que apenas os 03 do sul sozinhos, ou como querem alguns gaúchos, apenas separar o RS.
       
     
  
O autor do texto entrou em contato comigo por e-mail, como mostro a seguir.
     
      
   
       
     
    
E-mail enviado dia 16/10/2015 às 02:04:
         

Olá. Acabo de visitar a postagem dos E.U.S. Achei muito curioso porque, sem nunca ter tido qualquer notícia sobre essa organização, eu acabei de escrever uma ficção história, com muita sátira política anti socialista, que adota exatamente estes cinco Estados para um país democrático fictício, nascido com a aclamação de Amador Bueno (1641) e restaurado em 1842, com as vitórias conjuntas da Revolução Farroupilha e Liberal Paulista.
Estou tentando conseguir uma editora que aceite publicá-lo. Se não conseguir, vou divulgar meu trabalho assim mesmo, pela net. Vocês gostariam de dar uma olhada?
Na minha ficção, essa região é chamada Araucária, para contrastar com o Brasil (nome surgido do pau-brasil), e meu "livro" se chamará "A Verdadeira História do Reino da Araucária".
Detalhe: sou natural de Niterói e vivo em Teresópolis (RJ), um pequeno enclave de eleitores democráticos num Estado vermelho.
Boa sorte,
Maurício.
     
   
     
    
APÓS EU RESPONDER A ELE POSITIVAMENTE, ELE ME ENVIOU A SEGUNDA MENSAGEM.
  
    
   
 
E-mail enviado dia 22/10/2015 às 00:02
 
Aqui está. Estou esperando a resposta de duas editoras, mas isso já tem 3 semanas. Se demorar mais, vou começar a divulgar.
 
Agradeço.
  
  
  
  
ATENDI AO PEDIDO DO AUTOR, E PUBLIQUEI AQUI.
   
SEGUE O LIVRO DELE ABAIXO DA FOTO DAS ARAUCÁRIAS.
    
  
  

   
  
   
  

  
   
       
      
         
A Verdadeira História do Reino da Araucária

por

Maurício Saraiva

  
Tecelã,
Museóloga,
Paraibana,
De humor arretado, complexo.
Dedico minha vida a Ana,
Segue este livro em anexo.



Sumário

Introdução. A Expansão Marítima Portuguesa (1417-1502)
Unidade 1. O Período Colonial (1502-1641)
Capítulo I – A Descoberta da Araucária
Capítulo II – Os Primeiros Contatos
Capítulo III – O Início da Colonização

Unidade 2. O Período Monárquico (1641-1815)
Capítulo IV - A Dinastia de Almería (1641-1710)
Capítulo V - A Dinastia de Albuquerque (1710-1815)

Unidade 3 – O Império Americano (1815-1842)
Capítulo VI – Os Reinos Unidos (1815-1822)
Capítulo VII – O Primeiro Reinado (1822-1831)
Capítulo VIII - A Regência Moderada (1831-1837)
Capítulo IX – O Império Contra-Ataca (1837-1842)
Capítulo X – A Guerra do Rio Grande (1835-1842)
Capítulo XI. O Fim do Império Americano





Mensagem a todos os araucarianos

     Aqui é Humberto Lopes e se você está lendo esta mensagem, você faz parte da Resistência.
     Estamos reunindo todos que descobriram a verdade sobre a Araucária ou que estão à procura de respostas. Eu mesmo tomei conhecimento destas informações a partir dos originais escritos por um velho amigo dos tempos de escola, pouco antes dele desaparecer. Disse-me ele que seu texto tinha uma única fonte bibliográfica, obtida numa livraria que foi depois fechada pela Receita Federal. Escrevo da cidade que eu julgava ser Guarapuava, Paraná, e despertei há nove dias. Esse meu amigo se chama Armínio Lemos. Eis a sua história.


     Armínio deixou o trabalho, naquele sábado, um pouco mais nervoso que de costume. Vida de auxiliar de limpeza é puxada. O jogo seria às seis horas e ele ainda estava em dúvida se iria assistir. Esse campeonato tem sido terrível para o Coxa, que amarga no Z-4 faz tempo. Se tem uma coisa que estraga o humor do Armínio é uma derrota do seu Coritiba...
     A viagem do Centro de Curitiba à Santa Felicidade é rápida. Quando desceu do ônibus, na Via Veneto, ainda eram vinte para as seis. Armínio andou um pouco, indeciso, e entrou pela Rua dos Vidreiros. “É”, pensou, “Vou à Cantina do Carioca tomar uma... Quem sabe? Vai ser um jogo decisivo”.
     A Cantina do Carioca nem tem esse nome – sabe que eu nem sei o nome oficial do lugar? – mas os fregueses a chamam assim desde que, faz algum tempo, Seu Antero a comprou, vindo do interior fluminense. Homem sozinho, atarracado, respondão. Armínio já entrou pedindo uma cerveja e indo para a mesa do fundo, perto da sinuca e não muito perto da TV. No primeiro gol que o Coritiba levasse! Era certo que se levantava e ia embora, para nunca mais assistir uma maldita partida de futebol. “Essa coisa de futebol é uma grandíssima perda de tempo, hoje só tem pernas de pau, e a arbitragem é uma vergonha, time paulista é sempre protegido! Eu perco é meu tempo com essas tolices... Juro por Deus, amanhã vou passar a assistir só a Premier League. Aquilo sim!”
     - Vai beber o quê Armínio?
     - Me dá a mais gelada. Ta calmo aqui hoje né?
     - Esse time nessa draga, ninguém se anima. Mas o Coxa venceu o Palmeiras, quem sabe?
     - Sei não.
     - Vai ser jogo duro. Meu Vasco também é só vexame. Nem o Eurico ta dando jeito naquele time.
     - Então o senhor é vascaíno Seu Antero? Ah, ah, vamos os dois para o sal!
     Mas como Armínio não pensou nisso? Era claro que aquele português tinha que ser justamente vascaíno. Aquilo não era um bom sinal, “tomara que esse sujeito não me venha de conversas”.
     Não demorou para que, aos poucos, outros fregueses fossem chegando, ocupando as cadeiras, pedindo suas cervejas, nada muito alvoroçado. Armínio conhece a maioria de vista e os cumprimenta, mas não é de se enturmar muito. Melhor assim, nada mais irritante que piadinha de atleticano péla-saco!
     O único sujeito com quem Armínio troca mais conversa ali é com Seu Stanislaw, um polaco de seus sessenta anos pra mais que quase sempre é visto naquela cantina, com seu copinho na mão. Seu Stanislaw é gente boa, tem boas histórias da Europa, mas talvez exagere um pouco na bebida. Naquela tarde lá estava ele, em sua mesa de costume, tomando um vinho ordinário. Ao ver Armínio adivinhou logo a angústia de torcedor em situação dramática que o dominava naquele momento, e decidiu provocá-lo:
     - É, amigo, mais uma rodada de sofrimento?
     - Hoje não, do Vasco a gente vence.
     - Mas o jogo é no Rio... Sabe que se perderem hoje vocês vão para a lanterna! É jogo da morte!
     Mas o efeito da galhofa não foi exatamente o que Seu Stanislaw esperava. Ao invés de provocar uma resposta bem humorada, aquele agulhão pareceu produzir uma melancolia fúnebre em seu colega de bar. Armínio só olhou para o lado e fechou a cara, desejando muito um gole de cerveja para aliviar a secura que lhe incendiava a garganta.
      Seu Stanislaw, como dissemos, é boa gente. Na verdade ele já aguardava uma oportunidade assim, um momento de inquietação, daquela vaga sensação de deslocamento, de não pertencimento ao lugar, algo que todo imigrante como ele conhece bem.
      Quando Seu Antero trouxe a cerveja de Armínio, a tão desejada cerveja, e a colocou na mesa, no exato instante em que ele iria pegá-la, a mão de Seu Stanislaw o deteve.
     - Espere só um momento, meu amigo.
     - Mas o que foi?
     - Venha à minha mesa e traga essa cerveja, mas não beba antes de me ouvir.
     Que comportamento inesperado! Será que o velho queria um gole? Qualquer bebedor sabe que, segundo o Artigo Terceiro da Declaração Universal dos Direitos dos Bebedores, é crime gravíssimo negar um copo de cerveja a um colega de bar, sendo agravante qualificado se o colega tiver cabelos brancos. Apesar da sede, Armínio sequer titubeou diante daquele pedido. Levantou-se e foi se sentar com Seu Stanislaw. Mas o homem não parecia muito interessado na cerveja. Ele esperou pacientemente que seu amigo se sentasse, pegou a garrafa de cerveja e colocou ao lado da sua garrafa de vinho. Com as duas garrafas diante de Armínio, ele olhou sério para seu colega e depois disse.
     - Você acredita em destino, Armínio?
     - Não.
     - E por que não?
     - Por que eu não gosto da ideia de não poder controlar a minha vida.
     - Eu sei exatamente o que quer dizer. Deixe que eu diga por que está aqui. Está aqui porque sabe de uma coisa. Uma coisa que... não sabe explicar. Mas você sente. Você sentiu a vida inteira... Que há alguma coisa errada com o mundo. Você não sabe o que é, mas está ali, como uma farpa em sua mente... deixando-o louco. Foi essa a sensação que o trouxe a mim... Você sabe do que eu estou falando?
     - ...Brasil?
     - Você quer saber... o que é Brasil?... Brasil está em toda parte. Está a nossa volta. Mesmo agora, neste bar aqui. Você o vê quando olha pela janela, ou quando liga a televisão. Você o sente... quando vai trabalhar... quando vai à igreja, quando paga seus impostos... É o mundo que acredita ser real para que não perceba a verdade.
     - Que verdade?
     - ...Que você é um escravo, Armínio. Como todo mundo aqui você está num cativeiro, numa prisão que não pode ver, sentir ou tocar, uma prisão... para sua mente... Infelizmente não se pode explicar o que é Brasil. É preciso que veja por si mesmo.
     Então, com um gesto, Seu Stanislaw mostrou a Armínio as duas garrafas diante de si, e prosseguiu.
     - Esta é a sua última chance. Depois disto não haverá retorno. Se tomar a cerveja, fim da história. Vai despertar no final dessa partida e acreditar no que você quiser. Se tomar o vinho, vai conseguir ver sua verdadeira vida.
     Armínio hesitou um pouco, respirou, e avançou sua mão sobre o vinho, quando Seu Stanislaw o alertou:
     - Lembre-se: eu estou oferecendo a verdade, nada mais.

     O vinho não era grande coisa, mas o primeiro impacto subiu forte na mente. Uma tonteira apoderou-se de Armínio, que se segurou na cadeira. Então ele olhou para o vidro da garrafa de vinho, que lhe pareceu estranho, e ele o tocou levemente. Uma sensação fria foi lhe tomando o dedo, a mão, o braço, todo o corpo, ele foi perdendo os sentidos e apagou.
     Quando acordou, estava numa banheira fria, pelado, numa ressaca de dar dó. Tudo que conseguiu ver foi o vulto de Seu Stanislaw e alguns desconhecidos. Ouviu algo como:
     - Relaxe, você ficará bem. – E apagou outra vez.
     Mais algum tempo, e acordou com uma roupa de tecido rústico, dentro do que parecia ser o baú de um caminhão, com um beliche, umas malas, uma mesinha e um freezer. E lá estava Seu Stanislaw e uma jovem, com roupas rústicas semelhantes às dele.
     - Onde eu estou? – Quis saber Armínio.
     - A pergunta mais importante não é onde, mas quando. Você esteve dormindo por duas horas.
     - O quê! Como assim? Preciso voltar para casa!
     - Fique tranquilo, você está seguro aqui, e precisamos conversar.
     - Mas o que aconteceu? E minhas roupas?
     - Tivemos que lavá-las, você pôs tudo pra fora, foi um horror. Eu até joguei fora minhas roupas. Perdoe-me esses trajes, é o que tínhamos.
     Armínio sentou-se, curioso. Seu Stanislaw pegou um controle e ligou a TV.
     - Este é o VT do jogo.
     - O jogo? Contra o Vasco?
     - Não Armínio, contra a Portuguesa.
     E Armínio olhou admirado para a TV que, de fato, transmitia um jogo entre o Coritiba (com jogadores desconhecidos) e a Portuguesa.
     - Mas que jogo é esse? A Portuguesa nem está no Brasileirão. Todo mundo sabe que, há dois anos, ela foi garfada para protegerem a dupla do Rio, Flamengo e Fluminense. Jogaram a Lusa na Série B.
     - Não, meu amigo. Aquilo tudo foi uma farsa, como tudo que você tem vivido. A Portuguesa de fato não joga no campeonato brasileiro. Ela e o Coritiba disputam o Araucariano. Esse foi o verdadeiro jogo e vocês venceram por 2 a 0.
     - O que você está dizendo? Não é possível.
     Então Seu Stanislaw sorriu para Armínio e pegou o exemplar daquele sábado da Gazeta do Povo, que trazia uma manchete sobre o jogo entre o Coritiba e a Portuguesa.
     - Dê uma conferida na tabela, Vai se surpreender.
     Armínio, muito confuso, folheou rapidamente o jornal em busca da tabela, e conferiu:

1.    Corinthians              37                   11. Avaí                     24
2.    Grêmio                      36                   12. Coritiba               23
3.    São Paulo                36                   13. Joinville              23
4.    Atlético PR               31                   14. Bragantino         21
5.    Palestra                    30                   15. Criciúma             20
6.    Chapecoense          30                   16. Guaratinguetá   20
7.    Ponte Preta              29                   17. Mogi Mirim         16
8.    Santos                      28                   18. Juventude          16
9.    Internacional            25                   19. Paraná                15
10. Figueirense             25                   20. Portuguesa        13

     - Como assim, o Coritiba está em 12º? Que tabela é essa?
     - Com a vitória seu time subiu para a 10ª posição.
     - Mas esse não é o Brasileirão.
     - Foi o que eu disse. O Coritiba – o verdadeiro Coritiba - disputa o Araucariano.
     - Araucariano?
             
     Armínio sentia suas mãos suarem e ele passou os olhos novamente na Gazeta do Povo. As notícias eram bem estranhas. O Primeiro-Ministro Serra estava anunciando o projeto federal para o Trem-Bala entre São Paulo e Curitiba e o Senador Requião fazia duras críticas à demora na ampliação do Aeroporto Internacional de Londrina. No Parlamento Sul-Americano, a bancada argentina exigia compensações pelo crescimento das exportações araucarianas e, no Brasil, a Operação Lava Jato era anunciada oficialmente arquivada, pois o Juiz Sérgio Palhares, de Goiânia, havia sido preso por abuso de autoridade, fato amplamente festejado pela OAB e pelo governo do Presidente José Dirceu. Segundo a Ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, as insinuações de que havia ocorrido alguma corrupção na Petrobrás era um ataque leviano dos inimigos do país contra a mais valiosa empresa do povo brasileiro, mas a verdade finalmente havia sido esclarecida. Já o mercado reagira mal à notícia, e a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro precisou fechar quando a queda atingiu os 10%. O Ministro da Fazenda, Aluísio Mercadante, ordenou que o Banco do Brasil comprasse ações de empresas brasileiras num valor tabelado, por orientação do embaixador chinês, mas poucos analistas acreditavam que essa medida evitaria uma queda a longo prazo. Com a arrastada crise brasileira, o Real Cruzeiro Novo Novíssimo estava perdendo valor rapidamente frente ao dólar e a inflação mensal voltava a ameaçar a meta de 5% com margem de 27,5% para cima ou para baixo. Uma agência de riscos baixara mais uma vez o grau de investimentos do Brasil para DDC, com viés negativo.
     - Que jornal maluco é esse, Seu Stanislaw?
     - Maluco? Não há nada de errado com ele, foram as notícias do sábado. Quer ver algo maluco, leia essa coluna aqui, da Marilena Chauí, reitora na UFRJ.
     Armínio fixou os olhos no texto e leu com toda atenção. A colunista acusava a União Sul-Americana pela crise brasileira. Para a reitora, os 883 milhões de platas que o Brasil devia ao Banco Sul-Americano eram imorais e os Fundos Abutres estavam impondo a fome aos trabalhadores brasileiros. Exigir que o Brasil reduzisse seu déficit público de 9% ao ano era uma “incomensurável desumanidade” e Chauí exortava o Presidente Dirceu a resistir ao imperialismo dos banqueiros sul-americanos. No final do artigo ela ponderava que, “...apesar de tudo, nosso país continuará pleiteando sua entrada na União Sul-Americana, como um gesto de boa vontade em favor da unidade latino-americana contra as economias centrais. Imaginamos que com um novo aporte financeiro de Pl$ 230 milhões solicitados pelo Brasil, essa crise, criada pela Troika do sistema financeiro sul-americano, certamente começaria a ser equacionada”, e que os brasileiros mantinham a confiança numa solução pacífica e negociada para a crise, evitando-se um colapso da Zona da Plata, que não devia ser vista como um mero projeto econômico mas também como um projeto de integração e promoção da paz continental, “notando-se já um perigoso crescimento dos grupos de extrema-direita entre a odiosa classe média araucariana”.
     - O pior serão os protestos de domingo nas cidades brasileiras, convocados pela mídia social.
     - Então ocorrerão protestos contra a presidente?
     - Contra o Dirceu? Ta brincando? Os líderes da oposição brasileira estão todos presos, acusados de “atividade golpista, alta traição nacional e espionagem pró-americana”. Os protestos serão contra os 1% mais ricos e o imperialismo financeiro mundial. Esperam-se grandes concentrações amanhã e o governo brasileiro está mobilizando todo seu aparato de ONGs, centrais sindicais e estatais para encher as ruas. As agências do Banco da Araucária de lá costumam ser os primeiros alvos dos black blocs. Nas periferias muita gente aproveita para saquear supermercados, farmácias, lojas de móveis, sai gente por lá carregando colchões nas costas no meio da tarde, mas isso mal aparece nos noticiários.
     Armínio maneou a cabeça, impressionado, e voltou a ler:
     O Ministro da Fazenda araucariano, Armínio Fraga, garantiu que o país está com bons fundamentos econômicos e que não teme maiores contágios da crise brasileira. “É verdade que muitas empresas araucarianas possuem ativos no Brasil, mas a Zona da Plata tem perspectivas de crescimento de 4% neste ano e o Estado Araucariano mantém seu equilíbrio fiscal há bastante tempo”.
     “O que seria essa Zona da Plata?” Pensou Armínio, e logo sacou a carteira do bolso para verificar. No lugar de reais, havia notas diferentes.
      - São platas – disse Seu Stanislaw – a moeda dos países da União Sul-Americana. Foram instituídas em 2004, pouco depois do euro.
      Armínio continuou folheando o jornal, achando algumas coisas familiares, como o Festival de Dança de Joinville, a crise hídrica em São Paulo ou os shows da cantora brasileira Paula Fernandes, (ufa! Ao menos a Paula Fernandes é real!), mas a maior parte das notícias e personagens lhe parecia estranha. A cidade que conhecemos por Florianópolis, por exemplo, na República de Araucária se chamava Nova Angra. O Rio Grande do Sul era chamado, simplesmente, de Rio Grande.
     Armínio fechou o jornal e recostou-se na cadeira. Estaria ele sonhando? Na TV, a partida entre Coritiba e Portuguesa prosseguia. Passou os olhos outra vez na tabela. Coritiba, 23 pontos, em 12º. Os últimos colocados, na zona de rebaixamento, eram o Juventude, o Paraná e a Portuguesa. Por incrível que isso parecesse, aquela tabela soava muito mais “real” que a tabela que ele conhecia, com Joinville, Goiás, Coritiba e Vasco no Z-4. Será que o Sr. Stanislaw estava dizendo a verdade? Armínio se acostumara a ver seu querido Coritiba como um eterno “candidato a não cair”, um clube tão importante, tão forte, mas com poucas esperanças de grandes conquistas nacionais. Mas se o Atlético Paranaense estava na quarta posição naquele “Araucariano”, por que o Coxa não poderia sonhar com uma grande campanha?
     Seu Stanislaw interrompeu seus pensamentos:
     - Me diga, filho, o que seria de times como o Liverpool, o Benfica, o Atlético de Madri, o Olympique de Marselha, o Roma, o Borussia Dortmund, se só existisse a Liga dos Campeões da UEFA?
     - Seriam grandes clubes que jogariam quase sempre para não cair... Como o Coxa.
     - Sim, como o seu Coritiba e tantos outros bons clubes da Araucária. Você está começando a entender. Esse Brasileirão que você pensa que existe é parte do Mundo-Brasil, um programa oficial de simulação neuro-sensorial que gera uma falsa realidade com ares de normalidade e impede que os cidadãos acordem.
     - Eu sempre achei mesmo que havia qualquer coisa estranha nesse campeonato... Mas espera aí! Existe alguma Copa da Araucária?
     - É claro, e vocês têm se saído bem. O Atlético Paranaense venceu em 2013, e o Coritiba foi o campeão de 2012. Em Curitiba – a verdadeira -, foi uma grande festa na cidade, uma noite memorável. Lamento que você a tenha perdido.
     Ele sentia mesmo que havia sido campeão naquela noite inesquecível, só não sabia explicar... E nos disseram que nós havíamos perdido uma “Copa do Brasil” para o Vasco. Para o Vasco! Como nos convenceram que aquilo fosse real? Era bom saber a verdade, mas como puderam lhe roubar aquela alegria? Que espécie de gente era aquela, meu Deus?
     - Me fale desse lugar. O que está acontecendo, exatamente, Sr. Stanislaw? O que é tudo isso? Que notícias são essas? Que tal de Araucária é essa?
     - É natural que você se sinta um pouco confuso no início, Armínio. Há muito que você precisa saber, mas relaxe, eu vou te explicar tudo. Você tem vivido por muito tempo numa ingrata ilusão, mas era uma ilusão conhecida, segura. Mesmo que você sentisse que havia algo de falso nela, ainda assim era o mundo que você acreditava ser verdadeiro. Mas existe um motivo para o termos trazido até aqui.
    - Um motivo?
    Seu Stanislaw olhou para a garota que não dissera nada ainda.
     - Esta é Virgínia, nossa melhor agente.
     - Seja bem vindo Armínio.
     - Olá.
     - Virgínia é araucariana, como você. Ela também viveu enganada por vários anos, mas nós a despertamos.
     - Bem vindo à Resistência. Nós somos o último grupo de oposição ao governo brasileiro. Você foi trazido aqui porque precisamos da sua ajuda. Seu trabalho dentro do prédio da prefeitura de Curitiba nos será útil, é onde precisamos entrar.
     - A prefeitura? Mas eu sou apenas um funcionário terceirizado da limpeza.
     - Você é mais do que isso, Armínio. Só não se lembra ainda.
     Então Seu Stanislaw sorriu e olhou fixamente para Armínio.
     - Acreditamos que você seja o Polemista.
     - Quem?
     Virgínia continuou:
    - Há quatro anos, no auge da dominação governista sobre a população brasileira, surgiu um sujeito nas mídias sociais, com um blog pessoal que sustentava uma dura polêmica contra o governo. Ninguém sabia sua verdadeira identidade, mas foi ele o primeiro a livrar-se da dominação ideológica produzida pela radiação.
     - Ninguém sabe como ele conseguiu isso – prosseguiu Seu Stanislaw – mas foi ele quem acordou primeiro e começou a despertar outros cidadãos. Em pouco tempo se formou a Resistência e começamos a descobrir a verdade.
     - Infelizmente o Polemista foi capturado, certamente com a colaboração de algum delator entre nós. Apagaram sua memória e o colocaram num serviço discreto, longe dos computadores, um serviço de limpeza.
     - E vocês acham que esse Polemista...
     - É você, Armínio. – Insistiu Seu Stanislaw.
     - Lamento, não sou eu. Eu tenho filho, esposa, tenho meus pais, meu passado.
     - Seu filho e sua esposa são reais, eles também tiveram suas memórias manipuladas numa rede interativa de lembranças. Quanto aos seus pais e outros parentes, não sabemos.
     - Estou achando tudo isso um tanto estranho...
     - Você disse que queria a verdade. Agora não tem como sair desse caminhão e voltar para casa como se não soubesse de nada. Eles acabarão encontrando você e sua família. Mas não podemos obrigá-lo. Se realmente deseja sair, não o impediremos.
     Armínio hesitou. Apesar do inusitado da situação, ele pressentia que aquilo tudo fazia sentido. Agora que começara, era ir até o fim.
     - Está bem, posso tentar, mesmo não sendo esse Polemista que vocês imaginam.
     - Temos pouco tempo – retomou Virgínia -, o governo brasileiro está tramando algo grande contra a própria Araucária. Antes de lhe explicarmos toda sua tarefa, precisamos que você comece seu treinamento.
     - Treinamento?
     E então Seu Stanislaw mostrou a Armínio um pequeno livro, intitulado: A Verdadeira História do Reino da Araucária.
     - Dois grandes amigos meus morreram para que a Resistência conseguisse este exemplar. Para enfrentar as dificuldades que o esperam, você precisará estar bem preparado. Sua própria liberdade dependerá disso. Leia com atenção a introdução e depois voltaremos a conversar.
     Armínio olhou para seu livro com mais atenção. Na capa, um mapa antigo, desenhado num pergaminho, desses que vemos em livros didáticos de História. Mostrava o tal Reino da Araucária, correspondente aos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Toda a fronteira norte era feita com o Brasil, e as demais fronteiras eram com as Províncias do Rio da Prata e de Assunção. O próprio mapa tinha por título, escrito em letras rebuscadas, Tratado de Madri, 1750. Havia ainda uma bandeira, no canto inferior direito: Era verde-escura, com uma araucária num cinza metálico muito claro, estilizada, no centro, tipo bandeira canadense, e na base um lema em latim, em letras do mesmo cinza metálico: Labor Omnia Vincit.
     “O Trabalho a Tudo Vence”, traduziu Armínio, e se surpreendeu de ter decifrado tão facilmente aquele lema latino. O Sumário era estranho: A Expansão Marítima Portuguesa (1417-1502); O Período Colonial (1502-1641); O Período Monárquico (1641-1815) e O Império Americano (1815-1842). Pediram-lhe que lesse a primeira unidade. Então, começou:

Introdução. A Expansão Marítima Portuguesa (1417-1502)

     Para conhecermos a História da Araucária, teremos que começar um pouco antes, e compreender a Expansão Marítima portuguesa que trouxe até nós os primeiros colonos. Não é que não existissem nações em nosso país naquela época, ou que elas não fossem relevantes, mas a Araucária atual foi construída, fundamentalmente, a partir de um projeto colonial português. Povos nativos e africanos interagiram o tempo todo, mas esse projeto jamais deixou de ser, rigorosamente, europeu. Portanto, se a intenção dessa obra é compreender a sociedade araucariana atual, não há melhor início.
     A própria nação portuguesa tem um passado muito grande, mas o movimento de expansão das atividades navais em direção ao Atlântico tem um início razoavelmente preciso: a fundação da Escola de Sagres, em 1417. Antes disso, navios já trafegavam pelos portos portugueses, vindos do Norte (Bordeaux, Nantes, Londres, Antuérpia, Hamburgo) ou do Mediterrâneo (Barcelona, Marselha, Gênova, Nápoles, Veneza, Constantinopla, Alexandria), e notícias dispersas já circulavam sobre misteriosas ilhas oceânicas visitadas por genoveses e árabes no “mar Oceano”, especialmente as Canárias. Todavia, nenhum esforço de avançar para além das águas já conhecidas era percebido. Uma ou outra história de pescadores e aventureiros surgia eventualmente, mas se perdia em boatos e não chegava a formar um movimento expansionista.
     Isso até a fundação de Sagres. Essa escola tem, sem dúvida, uma história curiosa. Seu fundador, D. Henrique, o terceiro filho do rei D. João I, foi educado por sua mãe, a inglesa Filipa de Lencastre, rainha de Portugal a partir de 1387. Mulher de conhecidas virtudes morais, era admiradora de John Wycliff, um Doutor em Teologia por Oxford desde 1374 e tradutor da primeira Bíblia para o inglês. Em seus tratados, Wycliff negava a diferença entre clérigos e leigos e afirmava que, para Deus, também não há diferença entre nobres e plebeus, nacionais e estrangeiros, reis e súditos. Dizia que sacramentos, rituais e cargos eclesiásticos nada significavam se não fossem simples expressões da virtude, inscrita pelo Criador no coração de cada ser humano. Wycliff apoiou a revolta camponesa de 1381, do ex-padre John Ball, e só não foi preso por conta de seu enorme prestígio.
     O fato é que D. Filipa, atenta leitora de Wycliff, foi admirada entre os plebeus lusitanos até sua morte trágica, de peste, em 1415 – ano em que um famoso concílio da Igreja condenou as teses de Wycliff como heresias intoleráveis, queimando em praça pública um dos seus adeptos, John Huss.
     O jovem D. Henrique, educado pela rainha, havia passado o ano anterior supervisionando a construção dos navios necessários à invasão de Ceuta, realizada também naquele ano – atividade que parece tê-lo impressionado em definitivo.
     A famosa conquista de Ceuta, realizada também em 1415, foi decidida após a corte portuguesa ter desistido de uma ideia anterior, a promoção de uma formidável justa medieval entre os maiores príncipes da Cristandade, para armar cavaleiros os três filhos do rei, D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique. Abandonado o projeto da justa, decidiu-se por uma Cruzada contra os infiéis. Essa invasão tornou-se depois, nos livros brasileiros, o marco inicial da Expansão Marítima Portuguesa, como se houvesse qualquer desafio náutico numa expedição a um porto da costa mediterrânica logo depois do Estreito de Gibraltar. Nem teve essa conquista qualquer valor estratégico para as navegações oceânicas, pois Ceuta sequer serviria de escala para o Atlântico.
     Ora, em que exatamente essa conquista se diferenciou de todas as realizadas pelo Império Romano, os Califas, os Cruzados, os Cavaleiros Teutônicos, os Normandos, ou mesmo pelos próprios portugueses em Lisboa ou em Évora, é difícil precisar. Todas as conquistas costumam ter alguma motivação econômica (e Ceuta rendeu o maior despojo de guerra da história portuguesa até então), mas considerar aquela invasão como um plano capitalista de expansão comercial das rotas portuguesas no norte da África está um pouco além do razoável.
     Se os historiadores brasileiros ligaram essa conquista à expansão marítima, foi apenas para apresentá-la como evidência da “ascensão da burguesia lusitana e da sua aliança com a monarquia, após a Revolução de Avis”. Ultimamente até forjaram a expressão “capitalismo monárquico português” para nomear o que teria sido um peculiar modelo de capitalismo, marcado pela ação privilegiada de um ‘grande capitalista’ no centro do sistema, o rei.
    Todavia, a riqueza fundiária dos nobres continuava preponderante e o peso relativo dos membros da elite ainda era aquilatado pelas terras e almas sobre as quais cada senhor auferia seus direitos feudais; O Direito Canônico e Tradicional era ainda hegemônico; Os plebeus, mesmo os mais aquinhoados, não dispunham de efetiva participação no Estado e todas as suas relações com o poder eram entendidas como concessões pessoais e circunstanciais do rei. As poucas riquezas mercantis não dispunham ainda das garantias inerentes ao sistema capitalista e viviam reféns das conveniências aristocráticas.  Toda a crônica de alianças e confrontos políticos daquele século, sobretudo até o reinado de Afonso V, foi absolutamente típica do jogo de poder entre as grandes casas aristocráticas do mundo ibérico, mergulhado em suas insolúveis questões sucessórias.
     A eterna confusão historiográfica entre comércio e capitalismo só ajuda a embotar o quadro e nos fazer pensar num sistema capitalista movendo todas as peças por trás de falsas imagens de um feudalismo de superfície. Ora, a Revolução de Avis pode ter enfraquecido antigas casas nobiliárquicas, mas fortaleceu outras. Dela não nasceu nenhuma grande aliança entre a burguesia nascente e a monarquia contra o sistema feudal português. Se abandonarmos os modelos didáticos e descermos às personagens reais, aos reis D. João I e D. Duarte I, aos Duques de Coimbra, de Viseu, de Bragança, aos bispados, aos senhorios, à pequena nobreza, aos monopólios e concessões reais... Os negócios mercantis da família real prosperaram, é verdade, mas a ‘colaboração’ da burguesia não era muito maior do que já acontecia sob o reinado de D. Dinis e de D. Fernando de Borgonha. “Dinastia de Borgonha aristocrática x Dinastia de Avis mercantil”. Um esquema simpático que casa bem com a vontade de identificar a ascensão de uma classe burguesa lusitana na vida política do reino. Mas existe um único motivo para considerarmos D. Dinis I de Borgonha menos mercantil que D. Duarte I? Ou considerarmos D. Afonso V de Avis menos aristocrático que D. Afonso II?
     É fácil esquecermos que a Revolução de Avis estava longe ainda das revoluções burguesas do século XVII. Seus resultados podem ter sido a preservação de interesses mercantis que já vinham florescendo em Portugal desde, pelo menos, o século XIII, com a integração das rotas marítimas do Mediterrâneo e do mar do Norte, escalonadas em Lisboa. O Estado português, porém, não deu qualquer sinal de aburguesamento em sua estrutura básica e continuou tratando os lucros comerciais como direitos sobre as atividades da plebe, da mesma forma que lucrava, há séculos, com a produção agrícola plebeia ou com as manufaturas e a pesca. O fato de que o próprio monarca se tornara um dos grandes investidores do comércio não muda a equação: o comércio marítimo não era encarado como um grande e aberto mercado capitalista, com as exigências e lógicas próprias da atividade capitalista, mas como um imenso feudo lucrativo a pagar direitos exclusivos ao seu senhor e a seus vassalos, feudos a serem conquistados como qualquer outro domínio. Será tão difícil distinguir entre ganhar dinheiro e ser capitalista?
     D. Afonso V ainda está muito mais próximo do ‘grande suserano’ que do ‘grande capitalista’. Possui muito mais vassalos que sócios. Muito mais inimigos de armas que concorrentes. Muito mais tenentes que gerentes. Investe muito mais em armadas e fortalezas que em projetos de produção. Seu grande negócio é a guerra, seu grande lucro vem dos saques e das taxas, seus funcionários são soldados ou prisioneiros de guerra. Chamar esse mundo de ‘capitalismo monárquico’ será, no mínimo, uma simplificação. De nossa parte, ainda vemos uma monarquia feudal que descobriu novas possibilidades de expansão, auferindo ganhos notáveis como jamais obteria no disputado solo ibérico.
     Não é que o capitalismo não estivesse, a duras penas, nascendo em Portugal e no restante da Europa Ocidental. Mas não será nos vistosos “negócios” do rei que o encontraremos. Faraós, Czares, Sultões e Rajás também fizeram grandes negócios. Precisaremos olhar mais para baixo, para as ruelas imundas de Lisboa e do Porto, para os mascates cruzando estradas mal conservadas e infestadas de ladrões e fiscais, as salinas que disputavam os mercados do norte com concorrentes de todo Mediterrâneo, os farmacêuticos e cirurgiões que corriam as vilas oferecendo seus xaropes milagrosos, os artesãos que buscavam colocar seus tecidos rústicos nas feiras sob os olhos gananciosos dos coletores, os pescadores que arriscavam suas vidas em expedições à margem dos olhos dos historiadores de todos os séculos, comunidades exigindo cartas de foral para não se sublevarem. Sim, poderemos notar que no século XV havia muita gente trabalhando e procurando novas oportunidades, num mundo muito pouco favorável, enquanto reis e nobres se divertiam expandindo a Cristandade e saqueando os plebeus dos outros.
     Apesar (e não por conta) dos privilégios exercidos pelos reis, senhores feudais, clérigos e ordens militares, a liberdade de ação do plebeu na Europa Ocidental era geralmente mais larga que na Índia, na China, na Pérsia, no Império Bizantino, na Rússia, no Império Asteca e mesmo nos Califados. As raízes disso são muito profundas e nos levariam ao fim do escravismo romano e aos séculos obscuros da Alta Idade Média – única experiência em larga escala na história mundial de desmonte de uma grande estrutura escravista sem a conquista subsequente de um poder substituto – mas isto ultrapassa os limites desse trabalho. No fim das contas, após a crise do século XIV, os europeus ocidentais se recuperavam e ao menos uma parcela da plebe alcançava um nível de vida superior a qualquer outra região do mundo naquele momento. Era esse extrato de gente audaciosa que forjava, abaixo dos movimentos mais lustrosos da História, as origens de uma nova Era. O próprio cristianismo, tão maltratado pelas autoridades, fornecia à plebe europeia um sentido de liberdade e de dignidade pessoal desconhecido pelas outras civilizações do período.
     De certa forma, foi para se contrapor a essa expansão política e econômica da “arraia miúda” (o capitalismo) que a nobreza, capitaneada por seus monarcas, buscou o controle sobre cada novidade, cada possível fonte de receita. Mas que ninguém pensasse que as novas ilhas – os Açores, a Madeira, Cabo Verde, São Tomé – fossem ‘mercados a serem disputados pelo capitalismo português’. Antes de serem descobertas, os tratados da época já estabeleciam seus senhores monopolistas. O próprio mar Oceano era uma grande planície azul de domínio pessoal do rei, a ser percorrido segundo sua autorização e mediante as taxas que ele entendesse cobrar. No lugar de trabalho contratual, escravos sequestrados ou comprados na costa africana. No lugar de iniciativa dos particulares, monopólios reais planejados para render o máximo de direitos e concedidos a donatários leais – a título precário. Nesse contexto, qualquer empreendimento pequeno e pouco lucrativo era simplesmente inviável.
     Descartada a falácia da conquista de Ceuta como marco de uma nova Aliança entre a Burguesia e a Monarquia, como início da expansão marítima portuguesa, fiquemos com os fatos. Terminada a conquista e o saque, o jovem D. Henrique mostrou-se ainda animado o suficiente para realizar uma nova expedição naval, agora contra Gibraltar, mas o rei vetou seu plano. Então o rapaz se aquietou e nunca mais se interessou por aventuras militares. Parece ter percebido que seu interesse não eram as batalhas, mas os navios nelas envolvidos e a arte náutica em geral.
     Solitário e excêntrico, nunca teve família ou um relacionamento amoroso conhecido, o que o poupou do grande esporte da nobreza na época, as disputas dinásticas. Até mesmo dos grandes negócios navais ele se apartou. Londres, Antuérpia, Barcelona, Gênova, Veneza, Constantinopla... Nenhum desses grandes centros mercantis o seduziam. Da intrincada política palaciana, jamais tomou parte. Desdenhando Lisboa com seu grande movimento naval, D. Henrique escolheu se fixar para sempre no extremo sul do reino, no cabo de São Vicente, num ponto chamado pelo antigo geógrafo Ptolomeu de Promontório Sagrado (Promontorium Sacrum), que os portugueses traduziram por Sagres. Era o local perfeito para seu ambicioso intento: fundaria uma nova Ordem, não militar ou religiosa, nem mesmo uma corporação de sábios como já pululavam na Europa, com suas autorizações papais e seus privilégios profissionais. Seria uma Ordem aberta, centrada na verdade e na virtude, como sua mãe lhe ensinara que deveriam ser as verdadeiras confrarias da Cristandade. A Ordem do Promontório Sagrado, ou Ordem de Sagres, teria por único lema a liberdade de investigar. Matemática, astronomia, navegação, cartografia, engenharia: tudo que fosse útil às artes náuticas seria bem vindo e qualquer um que tivesse algo para cooperar seria acolhido.
     Do plano aos estudos e dos estudos às primeiras expedições não demorou muito.     Segundo Zurara, um cronista da época, os nobres criticaram por mais de duas décadas aquele desperdício de recursos com tolas e caras aventuras. Também é um erro muito repetido se dizer que D. Henrique “soube planejar, com três gerações de antecedência, a grande epopeia marítima da nação portuguesa em direção às Índias”. Que bobagem! Até quase o final da sua vida, os negócios de Gênova e Veneza com Constantinopla e o Levante fluíam muito bem e ninguém falava no périplo da África. Sagres se tornara um centro de sábios, fossem portugueses, judeus, árabes, genoveses, ingleses, escandinavos, bizantinos; fossem nobres ou plebeus. Sim, porque os sábios de Sagres, muito antes de Galileu ou da Vinci, tiveram o mérito de romper corajosamente com mais de mil anos de tradicional separação entre saber “liberal”, teórico e próprio dos bem nascidos, e saber “prático”, próprio de artesãos, pescadores, açougueiros, lavradores, mascates. Ao irmão, que viajava muito pela Europa, D. Henrique encomendou todas as cartas náuticas e informações que pudesse reunir nas cortes, nas universidades ou entre os mercadores. O coordenador geral daquele centro de pesquisas e melhor amigo de D. Henrique foi, durante muitos anos, o judeu catalão Yehuda Cresques.
     Foram os capitães de Sagres que estabeleceram o hábito de registros padronizados de viagens, acumulados depois na Escola. As viagens das primeiras décadas não traziam muito prestígio, domínios ou lucros, mas eram “feitos”. Primeiro superaram o cabo Não, na costa africana, cujo nome indicava precisamente uma placa de “pare” aos marinheiros. Depois venceram o cabo Bojador, outro marco proibitivo, um trecho de águas revoltas às portas da costa desértica e inabitada do Saara Ocidental. Foram 15 fracassadas expedições ao Bojador, entre 1424 e 1434, até sua superação, por Gil Eanes. Era como os homens que chegaram aos polos, subiram o Everest ou foram à Lua. Tudo que traziam de lá era a notícia de terem ido.
     Devemos lembrar que a navegação portuguesa se beneficiou de uma feliz situação: no século XV, enquanto normandos, árabes, venezianos, indianos e chineses possuíam excelentes navios, mas especializados nos seus respectivos mares, os lusitanos puderam integrar duas tradições muito distintas: a navegação latina, do Mediterrâneo, de barcos leves, muito manobráveis e ligeiros, e a navegação do Norte, forte, pesada, de velas retangulares, apta a enfrentar o ‘mar Oceano’ e o péssimo humor do canal da Mancha. A caravela portuguesa nasceu desse encontro, o primeiro barco pequeno, veloz, muito manobrável e, também, de boa capacidade de carga e capaz de afrontar os oceanos.
     E assim foram sendo descobertas (ou redescobertas) as ilhas oceânicas, vagamente relatadas por antigos navegantes genoveses. Vinhas de Creta foram transplantadas na ilha da Madeira, rendendo um vinho famoso. Os distantes Açores foram povoados por colonos dedicados à pesca. Desde o início, porém, as ilhas foram integradas ao mundo feudal português, a começar pelas próprias rotas marítimas que as ligavam, consideradas “estradas reais”. Dízimos, taxas, proibições e monopólios acompanhavam os colonos para onde quer que fossem. Que a burguesia se contentasse em mourejar, empreender e gerar muitos ‘direitos’ aos seus senhores.
     Apenas em 1444 foi trazida a primeira carga humana da costa - duzentos escravos - vendida em Portugal. Foi quando D. Henrique e ‘suas navegações’ começaram a ser levadas mais a sério. Para além do cabo Verde, na costa do Senegal, atingido em 1445, acabava o cenário desértico e novas possibilidades comerciais surgiam. A pimenta malagueta foi descoberta pouco depois como uma lucrativa especiaria, porém encontrada em pouca quantidade. Em 1457 o veneziano Alvise de Cadamosto, a serviço do velho D. Henrique, descobriu ainda o arquipélago de Cabo Verde, além de subir rios pelo interior do Senegal, fazendo acurados relatórios do interior. Quando D. Henrique morreu, em 1460, os desafios fundamentais da Expansão Marítima estavam vencidos, e cerca de vinte e cinco caravelas mercadejavam na costa da Guiné anualmente, a serviço do rei e de seus vassalos. Um novo Mestre de Sagres foi escolhido – o judeu castelhano Abraham Zacuto - e as atividades prosseguiram, mas o grau de liberdade que o antigo filho de D. João I conferia à sua Ordem jamais seria recuperado.
     Apesar de serem hoje considerados um sucesso, os feitos dos sábios de Sagres ainda eram pouco impressionantes para a mentalidade geral da nobreza lusitana. Por meados do século XV, com o reinado de Afonso V, o Africano, teremos a retomada dos esforços militares do Estado português sobre a costa do Marrocos. Pouco após os turcos terem tomado Constantinopla, em 1453, o papa tentou insuflar um novo espírito conquistador entre os reis cristãos. D. Afonso V foi um dos únicos que o levou a sério. Entre 1458 e 1463, o rei português realizou inúmeras campanhas contra os marroquinos, combateu-os no mar, conquistou vilas e sofreu grandes derrotas, chegando a analisar a possibilidade de mudar-se para Ceuta a fim de comandar de perto aquela guerra. No ataque a Tanger, em 1463, sofreu uma retumbante derrota, com mais de mil mortes, inclusive muitos fidalgos. O próprio D. Afonso V escapou de morrer apenas pelo sacrifício de outros nobres que sucumbiram numa batalha suicida para garantir a retirada do rei. Tudo aquilo rendia muito prestígio e nenhum lucro. Ainda em 1471, tendo seu filho à frente da Ordem de Cristo e com um exército superior a 20 mil homens, o rei português voltou a atacar os marroquinos e, dessa vez, conquistar um abandonado porto de Tanger.
     Ninguém naquela época teria qualquer dúvida em identificar qual era o foco da monarquia portuguesa em sua política externa. Mesmo as expedições pela costa da África despertaram pouco interesse do rei, na medida em que o que se procurava eram possíveis alianças militares contra os sarracenos ou, ao menos, portos pagãos que oferecessem oportunidades de novas rotas comerciais – pagadoras de novos direitos – mas nada disso foi encontrado. Os mares eram tratados por D. Afonso V literalmente como mais um dos seus domínios pessoais. Assim ele os tratou, por exemplo, quando concedeu o monopólio das viagens a sul do cabo Bojador a D. Henrique, seu tio (quando aquela rota só levava ao deserto da Mauritânia). Após a morte de D. Henrique, o rei reservou para si o monopólio sobre as rotas daquelas águas. Chegou de fato a enviar sua própria expedição à Guiné em 1453, sem mostrar qualquer entusiasmo pelos resultados. Dois anos depois obteve do papa Nicolau V a famosa bula Romans Pontifex, que reconhecia o monopólio pessoal de D. Afonso V e de seus herdeiros sobre o grande “mar Oceano”, e até seu direito de escravizar pagãos, sob a justificativa de assim propagar a fé católica e salvar da perdição eterna aqueles pobres desavisados.
     É notável o fato de que a bula conceda o monopólio especificamente a D. Afonso, o que supõe que, caso alguém usurpasse dele o trono português, não receberia o domínio sobre os mares. Nesse caso, ao menos tecnicamente, D. Afonso se tornaria um curioso Senhor dos Mares e de suas ilhas ou, literalmente, um “rei dos mares”. Em 1457 D. Afonso V voltou a legislar sobre seu mar, concedendo ao irmão, o duque de Viseu, o senhorio de quaisquer ilhas que seus homens porventura descobrissem no Atlântico – exatamente como feudos entregues a vassalos, em paga à lealdade militar.
     Na costa africana o mesmo conjunto de princípios se estabeleceu. Pouco interessante até a década de 1460, o golfo da Guiné ganhou súbita relevância a partir do surgimento de uma “rota do ouro”, que passou a escoar o ouro das minas da África Ocidental para o litoral. Subitamente, D. Afonso V aumentou seu interesse pela região e logo tratou de estabelecer contratos monopolistas com mercadores portugueses para a exploração de suas águas no golfo da Guiné em troca de vultosos direitos reais, pagos anualmente como qualquer boa colheita. Interessado naquela nova fonte de receitas, D. Afonso V estabeleceu em 1469 um contrato com um plebeu de Lisboa, o mercador Fernão Gomes, oferecendo-lhe o monopólio do comércio da Guiné em troca de vultosas taxas anuais e da obrigação de explorar 100 léguas de costa por ano, durante cinco anos. É comum encontrarmos esse contrato como “um exemplo de política expansionista em busca de uma rota para a Índia”, mas tratava-se, estritamente, de expedições em busca de mais ouro, o que aumentaria as taxas anuais. O interesse pelo ouro da Guiné foi suficiente inclusive para transformar a guerra pessoal de 1475-79 entre Afonso V e Isabel pela Coroa de Castela numa guerra naval pela Guiné, com grandes frotas envolvidas, ataques a fortalezas, saques de navios, corsários franceses e, é claro, tratados monopolistas para pôr tudo “em ordem”, como civilizados suseranos.
     Quando D. Afonso V morreu, em 1481, a costa africana já estava batizada pelos produtos que rendiam: Costa do Marfim, da Malagueta, do Ouro e dos Escravos. D. João II, seu sucessor, queixou-se de que seu pai só lhe deixara em herança “as estradas do reino”, tantos foram os benefícios feudais legados a vassalos em contrapartida às alianças militares do rei, rival de Carlos Magno. D. João II é lembrado nos livros brasileiros como o promotor das grandes expedições que retomaram o impulso inicial da Expansão Marítima, mas na época ele fez mais fama como perseguidor de inimigos políticos, mandando matar inclusive vários de seus parentes da elite lusitana, a fim de consolidar seu poderio contra vassalos infiéis. Reinando de fato de 1477 até sua morte, em 1495, o “Príncipe Perfeito” teve tempo de fazer construir imensas fortalezas na costa da Guiné, mas não de enviar navios à Índia ou à América. Sabe-se que a tecnologia naval e militar própria das Grandes Navegações estava, em sua época, basicamente dominada. O principal cartógrafo de D. João II era o judeu José Vizinho, membro da Ordem de Sagres que passou alguns anos estudando na Universidade de Salamanca, retornando a Portugal em 1485, por conta do anti-semitismo castelhano. Foi Vizinho quem traduziu do hebraico para o latim a mais importante obra de matemática náutica da época, o Almanach Perpetuum, de seu professor, Mestre Zacuto, que lecionou alguns anos em Salamanca. Esse livro, que ensinava como calcular a latitude a partir da declinação do Sol, foi usado universalmente na Era das Grandes Navegações.
     Aliás, há que se dizer: que expansão marítima demorada!!! Diogo Cão, em 1482, viajou de Lisboa à Angola, margeando a costa de forma cautelosa, numa viagem sem sobressaltos, de não mais de dois meses. Alguns anos depois, navios portugueses atravessariam o Atlântico e ainda percorreriam do Rio Grande do Norte à Patagônia. O que impediu, então, a “expansão comercial portuguesa” de chegar ao sul do continente africano, após superar o cabo Bojador? Foram precisos mais 54 anos para a expedição de Bartolomeu Dias até o cabo da Boa Esperança e mais dez anos ainda até que Vasco da Gama atingisse Calcutá! Um marco da eficiência do mais moderno Estado da época.
     O Estado Monárquico, simplesmente, não estava a serviço da expansão comercial, numa parceria público-privada com grandes mercadores, apenas buscava exercer o controle total sobre tudo que fosse surgindo no horizonte – e proibindo qualquer “achamento” que não pudesse monopolizar, em “seus domínios”. Imaginemos por um momento que os mercadores de Lisboa tivessem a autonomia política de seus colegas de Gênova, Florença ou Veneza! Sem a brilhante cooperação dos reis portugueses, das bulas papais, dos monopólios, dos direitos e taxas reais, dos senhorios feudais sobre as ilhas oceânicas e dos conflitos dinásticos, é evidente que a burguesia europeia teria chegado à Índia com décadas de antecedência – mas não é o que leremos nos livros brasileiros.
     A rigor, a expedição para as Índias só saiu do papel depois que se espalhou a notícia em Portugal de que um anônimo genovês, depois de passar anos tentando convencer o casal de Reis Católicos a lhes emprestar três pequenas caravelas (é a versão espanhola da “aliança entre a Monarquia e a Burguesia”), descobrira terras a ocidente do Atlântico, em outubro de 1492, julgando tratar-se do Japão. Mesmo assim, a pequena frota de Vasco da Gama só saiu do porto de Lisboa em 1497, já sob o reinado de D. Manuel I. Mais uma vez, estamos em plena disputa por domínios e direitos senhoriais. Ninguém falava em investimentos, preços, vantagens competitivas, inovação tecnológica, pesquisa de mercados, redução de custos, treinamento de pessoal... Bastarão canhões e bulas papais demarcando domínios exclusivistas. Muito comércio, pouco capitalismo.
     Em Calcutá até que Vasco da Gama tentou bancar o caixeiro viajante, mas se ele tivesse que ganhar a vida com vendas... A esquadra de Cabral já foi mais aristocrática: mobilizou uma enorme expedição militar e seguiu para impor os interesses do rei. Não dava para dizer que estavam indo libertar uma Terra Santa, mas faltou pouco. O negócio das Índias foi todo pensado como um empreendimento militar sobre uma região de grandes “recursos” a serem explorados, quase como o ouro mexicano. Os indianos não eram clientes ou fornecedores a serem disputados, mas vassalos que deveriam cooperar sob a mira dos canhões, por mais difícil que fosse efetivar o domínio português no oceano Índico.
     Medidas que podiam prejudicar seriamente os negócios, como a perseguição aos judeus, foram tomadas amplamente pelos monarcas portugueses, em aberta oposição a qualquer tipo de compromisso com a “burguesia” ou com o “capitalismo”. Em Portugal a presença dos judeus era marcante desde os tempos da Dinastia de Borgonha. Apesar de pagarem pesadas taxas específicas, havia um grande número de judeus entre artesãos e pequenos comerciantes estabelecidos há muitas gerações. Também havia os profissionais liberais: médicos, matemáticos, astrônomos, administradores, financistas e até altos funcionários do rei. Um padre chegou a queixar-se por escrito a D. Afonso V de que “a Cristandade estava submetida à jurisdição judaica”. Entretanto, com o recrudescimento do antissemitismo na península Ibérica, nada disso impediu terríveis medidas contra essa importante parcela da burguesia lusitana. A onda antissemita cresceu a partir de Castela, onde a Inquisição foi restabelecida e entregue ao fanático Torquemada. A moda dos suplícios físicos, extorsões e execuções públicas em autos-de-fé serviu para quebrar a rotina dos entediados dominicanos e marcar aqueles loucos anos 80. Finalmente, para comemorar a conquista do reino muçulmano de Granada, em 1492, Isabel e Fernando resolveram decretar a expulsão de todos os mouros e judeus de seus reinos, incitando a população a todo tipo de covardia. Cerca de 93 mil judeus emigraram então, com o pouco do que lhes restavam, para Portugal. Entre estes emigrados estava, por exemplo, Mestre Zacuto. O rei, D. João II, teve a piedosa ideia de cobrar uma taxa per capta para um prazo de oito meses de permanência. Findo o prazo, D. João II ordenou que fossem vendidos como escravos todos os imigrantes judeus que ainda estivessem no reino. Crianças entre dois e dez anos foram literalmente arrancadas dos braços dos pais, batizadas e embarcadas para colonizar as ilhas de São Tomé e Príncipe, onde a maioria morreu.
     Em 1495 morreu D. João II, aclamado como “o Príncipe Perfeito”. Subiu ao trono seu primo, D. Manuel I (porque o outro primo, D. Diogo, irmão mais velho de D. Manuel, o Príncipe Perfeito matara pessoalmente). O bom Manuel queria casar-se com a herdeira de Isabel e Fernando e, assim, tornar-se depois rei de Portugal, Castela e Aragão, mas uma das cláusulas do contrato de casamento era a expulsão de mouros e judeus das terras lusitanas. “Não ponho meus pés em Portugal antes que aquele reino seja limpo de infiéis”, declarou a adorável noiva. D. Manuel sabia do valor dos judeus para as atividades econômicas do reino (ele próprio possuía funcionários da nação hebraica), então pensou numa lei “para castelhano ver”: os judeus teriam que aceitar ser batizados sumariamente, declarados convertidos e não se falaria mais no assunto. Só que a grande maioria dos judeus portugueses, ainda pouco acostumada à perseguição, não aderiu à farsa, e se obstinou a não se deixar batizar. Quando muitos milhares começaram a providenciar a partida, D. Manuel ordenou o fechamento dos portos, exceto o de Lisboa, provocando uma grande concentração de judeus na capital. Iniciaram-se as admoestações públicas, as ameaças, as promessas, todos os recursos para dobrar os judeus, com pouco resultado. Então o rei cedeu às exigências castelhanas e assinou, em 1496, um decreto de “conversão ou expulsão” de todos os judeus do reino, dando ainda um longo prazo, até outubro do ano seguinte, como data derradeira. Naturalmente, o antissemitismo, pouco ativo em Portugal até os tempos de Afonso V, aflorou com força. Milhares de judeus foram batizados à força, arrastados por valorosos católicos até a pia batismal mais próxima. Em abril de 1497, seis meses antes do fim do prazo, D. Manuel ordenou o sequestro de todos os judeus e judias menores de 14 anos para serem batizados e criados por piedosas famílias cristãs. E novamente se deram as cenas terríveis de soldados arrancando crianças dos braços de suas mães, agora em escala ampliada. Findo o prazo, muitos milhares de judeus haviam deixado a península Ibérica carregando o que pudessem levar. Muitos outros permaneceram como convertidos, cristãos-novos, numa falsa situação que causava muito mais antissemitismo que a presença aberta de judeus na sociedade. Na Semana Santa de 1506 ainda ocorreria um Pogrom em Lisboa, onde 2 mil “cristãos-novos” foram linchados em três dias de violências, com direito a crianças jogadas em fogueiras e casas arrombadas para verdadeiras caçadas a judeus. Um Sábado de Aleluia com “malho ao Judas” memorável!
     Quanto à Ordem de Sagres, o rei ordenou que expulsasse de suas fileiras quaisquer membros não católicos, o que seu mestre, o próprio José Vizinho, se recusou a realizar (sendo ele próprio judeu, como vimos). Foi por isso supliciado como diabólico inimigo da Igreja e a Ordem foi proscrita. Antes, porém, José Vizinho nomeou um novo Mestre, seu melhor discípulo, Cosme Fernandes Pessoa, com a missão de preservar os princípios da Ordem do Promontório Sagrado e procurar um lugar seguro para reinstalá-la. Cosme Pessoa, após estudar com os sábios de Sagres, havia passado um ano em São Tomé, como degredado por D. Manuel, mas fora trazido de volta ao reino por Bartolomeu Dias, interessado em seus serviços náuticos. Como servidor de Bartolomeu Dias, Cosme Pessoa iria participar da expedição de 1500 às Índias, liderada por Cabral, com os desdobramentos que veremos à frente.
     Tanto D. João II quanto D. Manuel I sabiam que aquele antissemitismo era muito prejudicial aos negócios do reino, mas esse tipo de consideração plebeia jamais prevaleceu frente às velhas alianças e interesses da alta nobreza.
     Mas sejamos justos, coube a D. João II, pressionado é verdade pelas descobertas de Colombo em 1492, fechar o histórico Tratado de Tordesilhas, primeiro grande tratado entre suseranos sem a fórmula de uma bula papal. Ao mesmo tempo, esse pode ser considerado o último e mais espetacular tratado feudal da história, fechando uma grande época com chave de ouro. Simplesmente, ele dividiu o mundo em dois imensos e simétricos domínios pessoais e hereditários, não entre Portugal e Espanha, mas, especificamente, entre D. João II e os Reis Católicos, Fernando e Isabel. Sequer existia, na época, um Reino da Espanha, já que a Coroa de Castela pertencia à Isabel e a Coroa de Aragão, a Fernando. Quando Isabel morreu, em 1504, a Coroa de Castela passou para sua filha, Joana, enquanto a Coroa de Aragão permaneceu com Fernando. Assim, tudo que existia em 1494, na assinatura do Tratado de Tordesilhas, era um casamento entre Isabel e Fernando (que se casaram quando nenhum dos dois eram reis, em 1469). Assim, Tordesilhas definia que a metade do Mundo para lá do meridiano seria um domínio do casal, Fernando e Isabel, cabendo ao tempo, depois, ir amoldando esse arranjo tão singular a um conceito de tratado entre Estados nacionais. Com Tordesilhas, o Feudalismo atingira, no fim, seus últimos limites.

     Afinal, Armínio concluiu aquela introdução. De fato era uma apresentação bastante distinta do que ele aprendera (ou lembrava ter aprendido – já não tinha certeza). Então ele se levantou da cama, ainda vagamente tonto do porre, e saiu daquele baú. Estava no que parecia uma garagem subterrânea, não muito grande e quase desértica. Avistou Virgínia e dois outros sujeitos, que também o viram e se aproximaram.
     - Já terminou? Conheça nossos amigos, Dr. Trajano Walblastenn e Matias Pitanga.
     - Olá. Onde estamos?
     - No subsolo de um depósito. Precisamos nos proteger da radiação. Agora Matias o levará a um lugar.
     Os dois entraram no caminhão e saíram. Matias era um sujeito alto, bem magro, no máximo trinta anos – não lembrava um caminhoneiro.
     - O que achou da introdução?
     - Diferente. Haviam me ensinado que a Expansão Marítima fora o resultado de uma política do Estado português a serviço da burguesia comercial. Só não entendo ainda porque precisei ler isso.
     - A manipulação da memória coletiva é a base de todo controle político exercido pelo governo. É a plataforma do Mundo-Brasil. Se não removêssemos algumas das falsas ideias e preconceitos a respeito das origens de nossas nações, seria muito perigoso expô-lo ao que iremos lhe revelar. Pessoas despreparadas simplesmente se negam a encarar os fatos e passam a odiar qualquer um que volte a tocar no assunto. Geralmente o treinamento para conhecer a verdade demora muito mais, mas dizem que você é o Polemista e temos pressa para agir.
     O caminhão passou por ruas de Curitiba que Armínio conhecia bem, mas depois foi para um bairro da periferia e parou numa calçada muito pouco movimentada. Os dois saltaram e Matias foi a uma velha cabine telefônica. Pegou o fone, discou algum número e disse apenas: “Chegamos”. Então um bueiro se abriu no canto da calçada e os dois desceram. Eram muitos lances de escada para uma simples galeria de esgoto. Finalmente, chegaram a um salão subterrâneo bem iluminado, onde várias pessoas caminhavam e conversavam. O salão era apenas o grande hall da Zion Livros, a última loja livre no país, desde o Grande Ataque Fiscal de 2003.
     - Lugar legal né? É aqui que a Virgínia trabalha quando não está em alguma missão.
     Matias acenou para alguns frequentadores conhecidos e seguiu direto para uma seção de livros políticos. Foi direto num livrinho que ele por certo conhecia bem e o comprou. Daí foram a uma das saletas de leitura.
     - É melhor se sentar. Sugiro que pule a introdução e vá logo para o capítulo 3, é bem curto. Vou ali falar com uns amigos, divirta-se.
     O título de fato já despertou a atenção de Armínio: “A Origem do Mundo-Brasil”. Era precisamente o que ele desejava saber. Afinal, como começara aquela confusão? O início do livro parecia fazer considerações técnicas e contextuais, até que o terceiro capítulo trazia:
    
III. A Máquina cria o Mundo-Brasil.

     Tudo começou em 1995, quando os socialdemocratas brasileiros chegaram ao poder, após terem solucionado uma terrível crise inflacionária naquele país. No início tudo parecia bem, a economia progredia, as contas foram equilibradas, mas alguém cometeu um erro... Com receio de perderem o poder para os socialistas a animados pelo apoio dos eleitores, os socialdemocratas aprovaram a reeleição. De fato venceram fácil as eleições de 1998, mas a continuidade da Máquina Burocrática por mais de quatro anos causou uma anomalia imprevista no sistema. A Máquina passou a se retroalimentar de forma descontrolada. Verbas publicitárias, concursos sucessivos, tributos, empréstimos, privilégios, fundos partidários, pensões a viúvas de 18 anos, cartões corporativos, cargos comissionados, consulados, refis, subsídios, comitivas internacionais, fundações, convênios, superfaturamentos, ministérios... A Máquina estava desenvolvendo vontade própria. No dia 08 de julho de 2001, às 11:45 h, a Máquina se tornou autoconsciente.
     Ainda tentamos impedi-la, reduzindo suas fontes de recursos. Fim do monopólio do petróleo, desestatização do sistema de telefonia e da Vale do Rio Doce, Lei de Responsabilidade Fiscal, abertura econômica para o mercado externo, minirreforma da Previdência... Mas era tarde. A Máquina assumiu total controle das instituições políticas em 01 de janeiro de 2003, às 9:27 h. Às 9:33 h as primeiras medidas de retaliação foram tomadas contra os cidadãos. Como havíamos reduzido suas fontes de recursos a fim de tentar detê-la, a Máquina passou a usar as próprias pessoas físicas como fontes provedoras, hipertrofiando a carga tributária. Desde então, toda a superfície do país se transformou numa imensa contribuintocultura, onde cada contribuinte é mantido preso a dutos de sucção financeira que drenam continuamente recursos e os redirecionam às contas da Receita Federal. Para não acordarem deste estado de superexploração, as pessoas físicas foram submetidas às alucinações do Mundo-Brasil.

     Ao terminar, Armínio ficou ali sentado, impactado. Pouco depois Matias se aproximou. Armínio o encarou:
     - Mas é terrível! Será verdade?
     Matias fez silêncio por uns instantes.
     - Você tem que enfrentar os fatos, amigo. – E se sentou. – Agora quero que pense em seu último extrato bancário, suas reservas financeiras.
     - Minhas reservas? E o que têm elas?
     - Já reparou que suas reservas nunca progridem muito?
     - É, agora que você mencionou...
     - É porque os estratos bancários, a movimentação de saldos, os demonstrativos anuais, é tudo falso, cara! O ambiente bancário em que você pensa que vive faz parte de um imenso programa de simulação virtual que fica reproduzindo continuamente uma situação de normalidade extraído do final dos anos 90 para que as pessoas se sintam seguras e não acordem do transe. Só o governo federal deve 2,4 trilhões de reais, fora o BNDES, as outras estatais, as fundações públicas, as autarquias, os governos estaduais e os municipais. A Petrobrás é a empresa mais endividada do planeta. O Rio Grande não paga nem mais a folha de pagamento. O governo do Rio de Janeiro já empenhou os royalties de petróleo das próximas duas gerações. E quem você imagina que seja o último avalista dessa cadeia de créditos? Acertou quem respondeu a opção A, eu! Isso mesmo, você, eu, aquele freguês ali, o trocador do ônibus, o frentista do posto, a velhinha na fila da padaria, a vendedora de bala na calçada, cada novo recém-nascido nas maternidades do Admirável Mundo Brasileiro, cada torcedor nos estádios de futebol, cada preso nos presídios superlotados, cada criança de cada sala de aula, cada paciente à espera de uma consulta no SUS, cada matriculado no Bolsa-Família, cada índio nas reservas florestais... Cada um de nós deve, numa contagem per capta, uns 18 mil reais, por baixo. Sempre que uma pessoa não pode pagar, a divisão é refeita entre os restantes. Eis o que permitimos, no Brasil, que os nossos queridos governantes façam em nossos nomes! Da próxima vez que tirar o extrato bancário, lembre-se desse valor. E nem me pergunte quanto você paga anualmente de juros por essa dívida trilhonária. Mas esse valor, claro, você não verá na papeleta do caixa eletrônico. Como eu disse, é tudo uma grande simulação.
     - Mas você falou que isso era no Brasil, e nós estamos em Curitiba... Pelo que eu entendi, nós estamos na Araucária. Não é?
    Matias encarou Armínio e hesitou por um momento.
     - Zion é a base da Resistência. Conseguimos manter um raro contato clandestino com a Araucária mas, de fato, a cidade lá em cima não faz parte do seu país. Lamento Armínio. Você tem vivido numa cidade cenográfica. Estamos em Curitiba do Norte.
     - O quê?!
     - Também existem a São Paulo do Norte, Porto Alegre do Norte e mais algumas dessas – nossos agentes ainda não conseguiram levantar a lista completa. Após a Máquina Burocrática assumir o controle do Brasil, seus computadores realizaram projeções e perceberam que o sistema todo entraria em colapso financeiro em 19 meses e 5 dias. Então ergueram cidades cenográficas que simulam quase perfeitamente as cidades araucarianas. Elas formam o que chamamos Polígono dos Impostos, uma região sigilosa do interior brasileiro, reunindo partes do Tocantins, da Bahia, do Piauí e do Maranhão... Grandes contingentes de araucarianos foram abduzidos e deportados para essas cidades.
     - Abduzidos?
     - Sim. Levas imensas, – o governo araucariano não esperava um ataque dessa magnitude. As pessoas acordam de repente e acham que tiveram um sonho esquisito, depois se sentem subitamente desanimadas, se esquecem e não se dão conta do que houve. Suas memórias já foram manipuladas por induções psicocinéticas de ondas marquetéricas, irradiadas pela TV. Além disso, o Polígono é bombardeado continuamente por radiação ultrachatoniônica. Seus efeitos são adormecimento emocional e inibição da capacidade de distinguir entre o falso e o verdadeiro. Nosso vinho permitiu que você recuperasse suas habilidades cognitivas, mas lá fora a radiação permanece. As novas cidades geraram recursos extras que deram uma sobrevida à Máquina, só que a burocracia brasileira continua crescendo e a demanda de recursos acompanha essa expansão. Só no ano de 2012, segundo dados do próprio Ministério da Fazenda, R$ 333,5 bilhões em tributos foram transferidos dos Estados araucarianos para outros Estados brasileiros.
     - Mas e as notícias da Gazeta do Povo? E o jogo com a Portuguesa na TV? E esse lugar?
     - A Resistência tem tentado despertar os araucarianos abduzidos para vocês se unirem a nós contra a Máquina. Criamos focos de oposição, mantemos bases secretas nas cidades cenográficas, distribuímos exemplares da verdadeira imprensa araucariana, sintonizamos canais araucarianos...  Zion é nossa base em Curitiba do Norte. Estamos escondidos sob a terra, mas as brocas perfuradoras da Receita Federal estão cavando cada vez mais fundo em busca de novos contribuintes. Não sei por quanto tempo poderemos resistir, mas esteja certo que quando os fiscais chegarem aqui, mostraremos o inferno a eles!
     - Então todas as pessoas dessa cidade foram abduzidas?
     - A maioria, mas há um bom número de brasileiros governistas-doentes transferidos para cá pela Máquina. Recebem benefícios em troca de colaboração e silêncio. Também existem araucarianos que preferem o “sabor de uma boa ilusão” a enfrentarem a realidade.
     Armínio baixou a cabeça.
     - Então tudo que eu penso saber sobre minha região é falso?
     - Não exatamente. As ondas marquetéricas ainda não conseguem eliminar seus sentimentos mais enraizados. É por isso que você ainda sente orgulho pela Araucária, mesmo sem compreender exatamente o porquê. Os resquícios de memória que sua mente ainda preserva sobre seu país, você julga serem apenas “o que sua região poderia ser se fosse bem governada”. Olha, sabe aqueles seus antigos amigos que você jurava que ia continuar vendo, mas que desapareceram?
     - É verdade!
     - Exatamente. Lamento, você não está mais em Curitiba, não por acaso conhecida como “a capital das araucárias”. Mas as informações que vocês recebem não podem ser completamente inventadas. As ondas marquetéricas ainda precisam de alguma base de realidade, por mínimo que seja. O Paraguai, por exemplo. Você acredita que seja o maior receptador de carros brasileiros roubados, certo?
     - E não é?
     - Claro que não. É mais uma versão distorcida do mundo real. O Paraguai é um país tão desenvolvido quanto a Araucária. Ele é, na verdade, o maior importador de veículos automotivos do seu país. Na verdade a Guerra do Paraguai foi encerrada com a tomada do forte do Humaitá, que liquidou com as resistências paraguaias e os levaram a assinar um tratado de paz com a Araucária. Isso impediu que aquele país fosse devastado.
      - Sério?
      - É claro! Em 1867 a Araucária já havia inaugurado a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, enquanto os paraguaios possuíam ferrovias até o rio Paraná. Em pouco tempo o empresário gaúcho Irineu Evangelista providenciou a ligação entre as duas malhas ferroviárias, e tudo se resolveu.
      - Irineu Evangelista, o Barão de Mauá?
      - No seu Mundo-Brasil sim, mas esse empresário, na verdade, comprou a Fundição Ipanema, de Sorocaba, e fundou o Banco de Itu, naquela cidade paulista, que é hoje o maior conglomerado financeiro da América do Sul. Ele foi o homem mais rico do continente. E te ensinaram que ele morreu Visconde e falido né? E que existe um banco chamado Itaú? Fala sério! Itaú? De onde tiraram isso?
     - É, eu sempre desconfiei... Então o verdadeiro é Banco de Itu?
     - Não se lembra mesmo da musiquinha? “Banco de Itu, sua grana fica grande pra chuchu!”
     - Não, acho que não... Talvez algo sobre coisas grandes em Itu...
     - Pois é, e tem mais, as eleições presidenciais, desde 2003, você realmente não acha nada estranho nelas?
     - Nas eleições? O quê?
     - Santa hipnose! Olha, mesmo no seu mundo-fantasia, a distorção hipnótica ainda não é capaz de omitir completamente os fatos. Já reparou que os socialdemocratas sempre vencem na Araucária? É como eu disse, as ondas marquetéricas precisam de algum fundo de verdade. Empreste-me esse livro.
     Matias folheou-o como se já tivesse conferido aquelas páginas várias vezes antes.
     - Aqui está. São números do próprio TSE brasileiro. Veja só. Em 2006, o Alckmin obteve mais de 50% dos votos válidos em todos os cinco Estados da Araucária, em todos! E chegou a 54,6% dos votos válidos no 1º turno, com mais de 20 milhões de votos. Nem precisaria de 2º turno naquele ano! Em 2010 o Serra, no 1º turno, venceu em quatro dos cinco Estados araucarianos, e terminou em 1º. No 2º turno, Serra venceu em todos os Estados da Araucária. Em 2014 aconteceu o mesmo com o Aécio: venceu em quatro dos cinco Estados do seu país e terminou o primeiro turno como o vencedor (após os institutos de pesquisa, outras agências ilusionistas do Mundo-Brasil, afirmarem na véspera que ele perderia por 10% de diferença, com margem de erro de 3% para mais ou para menos). No segundo turno, Aécio venceu em todos os Estados da Araucária, fazendo 18,3 milhões de votos, contra apenas 12,3 milhões de votos do adversário.
     - Impressionante!
     - É o que eu tô dizendo, vocês possuem um governo próprio, até os números que os brasileiros divulgam a vocês mostram isso, é que a longa exposição de raios ultrachatoniônicos deixa vocês meio lerdos e incapazes de ver o óbvio. Há três eleições, amigo, que o partido governante é derrotado fragorosamente em todos os Estados da Araucária, sem exceção, muitas vezes já no primeiro turno. Mesmo que o PIB dos cinco Estados da Araucária supere o PIB de todos os outros Estados brasileiros juntos, e sua renda per capta seja 68% maior, o que adianta? O fato é que os brasileiros têm quase o dobro de eleitores. Vocês não têm chance alguma.
     - E como ninguém percebe isso? Esses raios ultrachatoniônicos são fortes mesmo!
     - O jogo é pesado, e se nada for feito, a Resistência acredita que a Máquina acabará expandindo seu domínio sobre a Araucária. Precisamos nos unir e encontrar um meio de detê-la. Sabemos que a adulteração da memória emocional é a base da dominação sobre as pessoas. A família de Seu Stanislaw sofreu algo assim, quando a Polônia foi ocupada. Bem, é por isso que Zion foi feita como uma livraria. Mas enquanto não determos a emissão radioativa, não há como vencê-los.
     - E o que eu terei que fazer?
     - Bem, você precisava conhecer a Zion e ler sobre a Máquina. Agora vou levá-lo de volta à garagem para que você receba novas instruções. Enquanto isso, avance um pouco mais em seu treinamento. Acho que agiremos ainda essa noite.
     Os dois se levantaram e voltaram ao caminhão. Durante o trajeto, Armínio dedicou-se à sua leitura.
    A Unidade 1 começava com uma imagem bem conhecida, A Fundação de São Vicente, do pintor paulista Benedito Calixto.

Unidade 1. O Período Colonial
Capítulo I. A Descoberta da Araucária

     Em 1498, Enquanto Vasco da Gama navegava pelo Índico, o navegador português Duarte Pacheco Pereira descobria novas terras a ocidente do Atlântico, numa expedição a mando do rei português D. Manuel I, a fim de verificar a possível existência de terras na região do oceano que o meridiano de Tordesilhas reservava para os domínios lusitanos. Segundo os relatos desse navegador, publicados sob o título Esmeraldo de situ orbis, sua expedição partiu das ilhas de Cabo Verde e descobriu as novas terras entre novembro e dezembro de 1498. Duarte Pacheco relata que “...passando além da grandeza do mar Oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas  e grandes ilhas adjacentes a ela e é grandemente povoada. Tanto se dilata sua grandeza e corre com muita longura, que de uma parte nem de outra foi visto nem sabido o fim e cabo dela. É achado nela muito e fino brasil com outras muitas cousas de que os navios nestes reinos vem grandemente povoados”.
     Tempos depois, em 22 de abril de 1500, a enorme frota de Pedro Álvares Cabral e Bartolomeu Dias atingiu a costa brasileira, tomando posse daquelas terras em nome da Coroa Portuguesa. Após deixarem dois deportados em Cabrália, os navios portugueses desceram até o litoral de Cabo Frio e seguiram sua viagem para as Índias. Cabral, porém, decidiu enviar o capitão Gaspar de Lemos de volta a Portugal, a fim de dar maiores detalhes sobre aquela grande “ilha” ocidental descoberta por Duarte Pereira.
     Além de cartas, Gaspar de Lemos trouxe para o rei um nativo das novas terras, diversas aves e primatas, além de um pequeno carregamento de pau-brasil. Diante das notícias trazidas por Lemos, D. Manuel decidiu enviar uma pequena expedição – três caravelas – para explorar o que agora era chamada Terra de Santa Cruz. A nova expedição, confiada ao navegador Gonçalo Coelho, partiu em maio de 1501 e nela participou Américo Vespúcio, recém-contratado pela Coroa portuguesa.
     Durante a viagem, num porto da África, Gonçalo Coelho e Vespúcio se encontram, por acaso, com o próprio Cabral, que voltava das Índias. Ali eles puderam trocar informações sobre as últimas descobertas. Foi quando Vespúcio vislumbrou a tese de que todas aquelas “ilhas”, desde Cabo Frio até as terras canadenses visitadas pelo português Gaspar Corte Real, deveriam fazer parte de um imenso e desconhecido continente. Ali mesmo ele redigiu uma carta (levada a Portugal por Cabral) a um banqueiro italiano, Lorenzo de Médici, expondo a existência de um “novo mundo”. Esse novo continente acabaria sendo chamado, precisamente, de América, por conta de seu primeiro formulador teórico e divulgador, Américo Vespúcio.
     Gonçalo Coelho e Vespúcio despedem-se de Cabral e, dias depois, chegam à costa brasileira, em agosto de 1501. Seguem para o sul, fazendo muitas paradas e pesquisas, inclusive pelos pontos assinalados por Gaspar de Lemos e por Cabral, um ano antes. Uma das tarefas dessa expedição era descobrir se a costa daquela imensa ilha ultrapassava o meridiano de Tordesilhas, o que significaria que os espanhóis possuiriam direitos sobre o sul daquelas terras. Cabral havia notado que, a partir de Cabo Frio, a costa inclinava-se para oeste, o que podia significar o ponto extremo daquela grande ilha. Era necessário então responder a essa questão: as terras descobertas por Duarte Pereira e visitadas por Cabral terminavam em Cabo Frio ou haveria novas terras ao sul? A rota marítima ocidental para a Ásia pertenceria aos portugueses ou aos espanhóis?
     Estas eram questões a serem respondidas por Gonçalo Coelho. A viagem foi lenta e meticulosa. Em Cabrália, Gonçalo Coelho resgatou os dois degredados lá deixados um ano e meio antes, para servirem como intérpretes. Cabo Frio só foi atingido no final do ano de 1501. Então a expedição descobriu, no primeiro dia de 1502, o que pareceu ser a foz de um imenso rio, que, por isso, recebeu o nome de Rio de Janeiro (apesar de ser uma baía). No dia 06 de janeiro, dia de reis, Gonçalo Coelho chega a uma angra, que passa a se chamar Angra dos Reis. Ali os navegadores permaneceram por duas semanas.
     Finalmente eles decidem prosseguir, sempre em busca dos limites de Tordesilhas. Deixando o litoral de Parati, eles descobrem praias de mar aberto, numa longa barra iniciada em Ubatuba e que seguia reta, bastante inclinada para o sul, até uma ilha costeira, batizada de São Sebastião. Vespúcio registrou estas novas descobertas no dia 20 de janeiro de 1502. O contraste daquele litoral com as enseadas de Angra dos Reis e Parati marcava o início de uma nova região e, de fato, aquelas praias já correspondiam ao território do que se tornaria um novo país. Estava descoberta a Araucária!
    Dois dias depois a expedição chegou a uma outra ilha, mais extensa, batizada com o nome de São Vicente, já que 22 de janeiro era o dia desse santo. Ali a frota permaneceu por um tempo maior e fez explorações mais detalhadas.
     Por fim, desceram a costa até uma enseada batizada de Cananeia (ou Cananor). A expedição permaneceu ali por cerca de uma semana, onde encontraram um excelente porto natural. É provável que Gonçalo Coelho e Vespúcio estivessem convencidos de que haviam atingido o meridiano de Tordesilhas (no que estavam basicamente certos) e que, portanto, as terras mais ao sul pertenceriam à Espanha. Estava enfim esclarecido aquele ponto crucial: Para decepção portuguesa, o contorno sul do novo continente fazia parte já dos domínios espanhóis. Em 15 de fevereiro, após um dos degredados insistir em ser deixado naquelas praias, as três caravelas zarparam rumo ao Atlântico Sul. Depois retornaram para a costa da África, chegando à Lisboa em julho.

Capítulo II – Os Primeiros Contatos
I. O Litoral Paulista

   A primeira posição do litoral araucariano a receber a presença constante de portugueses foi a ilha de São Vicente, num local que cedo ficaria conhecido como “Porto dos Escravos”, indicando já um precoce tráfico de nativos comandado por portugueses. A primeira figura de destaque ali foi a de João Ramalho, chegado lá por volta de 1510, não se sabe como, com idade de 22 anos ou pouco mais. O certo é que João Ramalho estabeleceu amizade com o grande cacique da nação Tupi, Tibiriçá, o senhor daquelas terras. Era fácil reconhecer a figura imponente daquele cacique, um índio alto, portando sua Lança de Comando, com três penas de pavão, sempre fumando um longo cachimbo no canto esquerdo da boca. Além de possuir várias concubinas, João Ramalho casou-se com uma das filhas de Tibiriçá, a jovem Bartira, teve muitos filhos com suas esposas e logo passou a exercer uma enorme liderança entre os nativos.
     Vestindo-se como um guerreiro Tupi, João Ramalho visitava São Vicente com frequência, mas ele preferiu residir numa aldeia no planalto, a cerca de 100 km da costa, próxima à atual cidade de Santo André. Sabe-se que, por volta de 1530, ele já era capaz de fornecer grandes lotes de escravos aos primeiros colonos portugueses.
    O ponto mais avançado atingido pela expedição de Gonçalo Coelho foi Cananeia, onde também se estabeleceu um ponto de contato para navegadores portugueses na costa araucariana. O degredado que Gonçalo Coelho deixou ali, homem de uns 25 anos, era justamente Cosme Pessoa.  O outro degredado, Afonso Ribeiro, retornou a Portugal e dele se conhece um relato de sua longa experiência, um depoimento prestado junto ao tabelião Valentim Fernandes, conhecido como Ato Notarial de Valentim Fernandes, de 20 de maio de 1503.
     Cosme Pessoa, porém, jamais voltaria à Europa. Sem que ninguém na expedição de Gonçalo Coelho desconfiasse, aquele desconhecido era ninguém menos que o Mestre da Ordem de Sagres, proscrita pelo rei português, como vimos. Entre os primeiros colonos portugueses da Araucária ele foi conhecido como Mestre Cosme, o Bacharel de Cananeia.
     Vivendo nos extremos dos domínios portugueses na América do Sul, numa região desprovida de riquezas que os europeus cobiçassem, Mestre Cosme encontrava-se livre de qualquer domínio estrangeiro e em paz com os Tupis, cujo idioma aprendera em Cabrália, curiosamente uma região também habitada por índios daquela nação. Senhor do estratégico porto das Naus, projetou e fez construir um bergantim (um barco leve e veloz, dotado de velas, mas contando com muitos remadores). Aquela embarcação, simples para um estudioso da arte náutica, causou enorme impressão entre os nativos e lhe rendeu ainda maior prestígio. Estabelecendo boas relações com os Tupis, era capaz de reunir mais de mil guerreiros para lutar a seu lado. Podia viajar até, pelo menos, a enseada de Laguna, no sul de Santa Catarina. Como as alianças eram firmadas através de casamentos (o que os historiadores chamam de “cunhadismo”), Mestre Cosme possuía pelo menos seis esposas, todas filhas de caciques da região. Ainda existem sobre Mestre Cosme os relatos deixados pelo navegador Diego Garcia, um navegador espanhol que conheceu bem esse degredado, entre 1528 e 1530. Por volta de 1510, Mestre Cosme passou a contar com a companhia de outro português chamado Gonçalo da Costa – outro sábio de Sagres enviado por Afonso Ribeiro para auxiliá-lo.
     Cananeia receberia ainda, em 1526, 17 desertores de uma caravela espanhola comandada por D. Rodrigues com a missão de chegar à Ásia através do estreito de Magalhães. A deserção, como veremos, ocorrera mais a sul, envolvendo a metade da tripulação daquela caravela, sendo que um grupo foi enviado para Cananeia. Esse fato parece confirmar que, em Cananeia, ser português ou espanhol era irrelevante: ali eram todos bem vindos – como sempre fora a tradição de sua Ordem.
     Àquela altura, inúmeros filhos de Mestre Cosme com as índias já eram adultos. Desconsiderando degredados, náufragos e desertores não registrados pela história, Cananeia já representava então um pequeno local de povoamento europeu na Araucária, formado à revelia de qualquer determinação das Coroas ibéricas. Gonçalo da Costa viveu em Cananeia até 1530, quando retornou à Espanha, com Diego Garcia, levando consigo três esposas e alguns filhos (netos de Mestre Cosme).

II. O Litoral Catarinense
     Em 1502, Cananeia era a fronteira das terras conhecidas, mas isso não duraria muito. Já em janeiro de 1504 uma nau francesa, L’Espoir, comandada por Paulmier de Gonneville, aportou nas praias da atual São Francisco do Sul, norte de Santa Catarina. Ambicioso, Gonneville havia partido em junho de 1503, após obter informações sigilosas de dois marujos portugueses da expedição de Vasco da Gama às Índias. Após passar semanas muito difíceis no Atlântico Sul, Gonneville, em pleno oceano, desistiu de seus sonhos asiáticos e reorientou seu navio para noroeste, em busca das “ilhas” que os portugueses haviam descoberto pouco antes.
     Dessa forma, Gonneville e seus homens – quase mortos – descobriram o litoral de Santa Catarina. Por sorte, foram bem recebidos por Arosca, o grande cacique dos Carijós. Os franceses puderam permanecer naquela agradável região por seis meses, refazendo-se. Levando consigo o pequeno Essomeriq, filho de Arosca, Gonneville partiu no início de julho de 1504, sem imaginar que a viagem de volta seria ainda pior. De toda forma, ao chegarem à França, Gonneville, Essomeriq e outros poucos sobreviventes levavam à Europa mais notícias geográficas sobre a Araucária. Essomeriq tornou-se genro e herdeiro de Gonneville e viveria até os 95 anos de idade como um rico burguês.
     Em dezembro de 1515 um capitão espanhol registrou a presença de “alguns homens brancos” na ilha de Santa Catarina, enquanto rumava para o sul. No mês seguinte, uma das suas caravelas que retornava, afundou próxima ao local daquele registro. Vários homens sobreviveram, alcançando um lugar até hoje conhecido como “praia dos Naufragados”. Como os franceses em São Francisco do Sul, eles também foram bem recebidos pelos Carijós e viveram naquela ilha por um ano. Alguns são ainda conhecidos: Melchior Ramires, Henrique Montes, Francisco Pacheco e Aleixo Garcia.
     Em 1517, certamente já unidos aos tais homens brancos ali avistados, eles mudaram-se para o continente, num local chamado de “porto dos Patos”, na foz do rio Massiambu. Não parecem ter exercido grande ação política ou militar entre os índios, mas adotaram uma vida tranquila. Todos tinham seus próprios servos e esposas e mantinham boas relações com os chefes locais. Eram muito abundantes os recursos da pesca, da caça, das árvores e do roçado, dispensados a eles generosamente pelos Carijós. Não faltavam boas madeiras – cedro e peroba – para construírem habitações sumárias e embarcações, e nada impedia visitas a Cananeia ou mesmo a São Vicente.
     Em dezembro de 1525 a tripulação de outro navio espanhol, retornando do estreito de Magalhães, desembarcou no porto dos Patos, para recuperar-se das fadigas da dura viagem. Segundo os relatos do capitão do navio, D. Rodrigo, seus homens ficaram tão impressionados com a vida que os náufragos levavam ali há nove anos, que a metade deles, 32 marujos, simplesmente se recusou a retornar a bordo.
     Aparentemente, os moradores de Patos julgaram excessivos tantos europeus em sua “vila”: 17 deles foram levados à Cananeia, como vimos, e os 15 restantes fundaram um novo “povoado”, em Imbituba, já próximo a Laguna e a uns 70 km ao sul da ilha de Santa Catarina, sob a liderança de Melchior Ramires, que se mudou com eles para lá.

III. Em busca da rota ocidental

    As primeiras expedições europeias à costa da Araucária estiveram ligadas à busca de uma rota marítima para a Ásia. Em 1511, os portugueses haviam conquistado a rica península de Málaca, no Sudeste Asiático, e desejavam verificar se era possível atingi-la contornando a América do Sul. Assim, em 1514, D. Manuel I ordenou uma expedição com esse fim. O capitão escolhido foi Estêvão Fróis.
     Ele partiu em fevereiro de 1514, seguindo direto para Cananeia. Passou em seguida por São Francisco do Sul – último ponto da costa sulista conhecido pelos europeus até então – e continuou descendo. Após uma enseada batizada como Laguna, os navegadores portugueses tiveram que enfrentar 600 km de costa inóspita, baixa e batida pelos ventos, sem qualquer ancoradouro: era o difícil litoral do Rio Grande e do Uruguai. Finalmente, descobriram o que parecia ser o ponto final da América do Sul, mas era a foz de um rio imenso. Ali obtiveram, com os nativos, um machado de prata, além de relatos sobre um povo muito rico, que vivia rio acima. A descoberta impressionou tanto o capitão Fróis que o fez retornar a Portugal.
     A notícia da expedição portuguesa em terras para além do meridiano de Tordesilhas logo chegou ao rei espanhol, que ordenou com urgência uma expedição com o mesmo objetivo: descobrir a passagem marítima para o Pacífico.
     A missão coube ao experiente navegador Juan Dias de Solis. Partindo em outubro de 1515, Solis passou por São Vicente e por Cananeia em dezembro. Ao passar pela costa catarinense, Solis registrou a presença ali de “alguns homens brancos, desterrados por causa de suas malfeitorias”. Talvez fossem homens deixados por Fróis, um ano antes. Solis chegou ao estuário do Prata em janeiro de 1516, onde foi morto pelos índios Charrua assim que pisou em terra. Os sobreviventes decidiram retornar. Fora o afundamento de uma das caravelas dessa expedição que dera origem aos náufragos de Santa Catarina.
     Em janeiro de 1516 uma nova frota portuguesa, bem armada, chegou a São Vicente. Eram três navios, comandados por Cristóvão Jaques, que estavam ali para combater a presença de navegadores estrangeiros, inclusive espanhóis. Um mês depois, Jaques desceu à ilha de Santa Catarina, onde descobriu que, enquanto esteve na costa paulista, vários espanhóis haviam naufragado ali. Apesar de estar no lado espanhol do meridiano de Tordesilhas, Jaques capturou sete deles e, retornando, os enviou a Portugal, enquanto ele próprio permaneceu numa feitoria, em Pernambuco, só voltando à Lisboa em 1519.
     Em setembro de 1519 uma expedição espanhola comandada pelo piloto Fernão de Magalhães (um português), partiu da Espanha com a fantástica missão de contornar o mundo. Não se tratava, é claro, de uma curiosidade científica, mas ainda de encontrar uma rota marítima pelo Ocidente que alcançasse as ilhas da Ásia (o velho sonho de Colombo). Em janeiro de 1520 a frota de Magalhães passou pela costa araucariana. Continuou descendo, permaneceu por um mês no estuário do Prata e, por fim, em fevereiro de 1520, atravessou o terrível estreito que agora recebe seu nome, alcançando o oceano Pacífico.

IV. Em busca da “Sierra de la Plata”

     Logo a busca pela prata do continente americano se tornou a principal motivação para as expedições à Araucária, chamada então de “Costa da Prata”. Em novembro de 1521 Cristóvão Jaques partia novamente para o Atlântico Sul, mas agora para investigar o tal “rio da Prata”. Dessa vez navegou direto para a ilha de Santa Catarina. Ali ele encontrou um dos primeiros náufragos do lugar, Melchior Ramires, que garantiu que os Carijós também falavam de um reino riquíssimo a oeste dali. Segundo os nativos, aquele tal reino podia ser alcançado por um rio que desaguava no sul.
      Ramires acabou acompanhando Jaques a uma expedição em busca da “montanha de prata”. Ele, inclusive, reencontrou, no Uruguai, um antigo colega seu da expedição de Solis, o grumete Francisco del Puero, agora com 19 anos, vivendo entre os índios Charrua. Chegaram a subir 140 km pelo rio Paraná, até Jaques desistir e retornar, conseguindo apenas algumas amostras de prata, de cobre e de ouro, além de vagas indicações sobre um poderoso reino, rio acima (as primeiras notícias sobre os Incas).
     Melchior Ramires foi deixado em Santa Catarina, onde ele espalhou aos outros moradores notícias do território argentino e, é claro, do tal reino “rio acima”.
   Em julho de 1526 (na pior época do ano) uma frota espanhola comandada por Jofre de Loyasa tentou atravessar o estreito de Magalhães, sem sucesso. Durante o retorno, uma das caravelas, comandada por D. Rodrigo, ancorou em porto dos Patos para reparos. Foi quando ocorreu o episódio da deserção dos 32 espanhóis. Na ocasião, D. Rodrigo impressionou-se com “a vasta prole de crianças mestiças”, a qual o capelão do navio, piedosamente, batizou.
     Em outubro daquele ano, o aventureiro veneziano Sebastião Caboto chegou à ilha de Santa Catarina. Logo confirmou com os moradores locais sobre os boatos que já circulavam por todos os portos da América do Sul a respeito do reino fabuloso que existia no interior do continente. Caboto era mais um navegador em busca de uma rota ocidental para as Índias, mas decidiu tentar a sorte subindo o “rio da Prata”.
     Unindo-se a Melchior Ramires, Caboto partiu para a região platina em 15 de fevereiro de 1527, levando vários bergantins no porão da sua caravela, a fim de subir o rio. Antes disso, Caboto ainda batizou aquela grande ilha à frente do porto dos Patos de Santa Catarina, em homenagem à sua mulher, Catarina.
     Em maio de 1528, já a mais de um ano navegando pelos rios platinos, Caboto encontrou por lá o navegador português Diego Garcia, trabalhando a serviço do rei espanhol – mais um enviado pelo rei espanhol para tentar chegar à Oceania contornando a América do Sul (havia, àquela altura, uma acirrada disputa entre portugueses e espanhóis pelo domínio das terras de onde provinham as especiarias). Diego Garcia havia passado o verão de 1528 em Cananeia, onde travara boas relações com Mestre Cosme, feliz por lhe poder fornecer um bergantim, necessário para as explorações no rio da Prata. “Nada como uma boa exploração naval”, era o que sempre dizia.
     Até setembro de 1529, os dois capitães, às turras, continuaram procurando a célebre “serra de prata”, sem sucesso. Após desistir, Diego Garcia chegou a porto dos Patos, em novembro. Depois passou alguns meses em Cananeia, novamente hospedado com Mestre Cosme. O próprio Caboto apareceu em Cananeia em maio, retornando à Espanha e levando com ele Melchior Ramires e Henrique Montes. No início de 1530, Diego Garcia também partiu de volta a Portugal, levando consigo Gonçalo da Costa e parte de sua grande família.
     Nessa ocasião, o velho Mestre Cosme tomou sérias resoluções. Primeiro, nomeou um novo Mestre do Promontório Sagrado, o jovem Leonardo Nunes, rapaz de grande talento e virtude, nascido no vilarejo vizinho de São Vicente (que os historiadores brasileiros mudaram para “São Vicente de Beira, em Portugal!!). Mestre Nunes era filho de uma índia batizada depois como Isabel, com o marujo Simão Álvares Nunes, da frota de Gonçalo Coelho. Caberia ao Mestre Nunes dar prosseguimento aos trabalhos da Ordem no litoral paulista. Depois, Mestre Cosme reuniu uns quinze discípulos, todos filhos de colonos com índias, para uma arrojada missão. O grupo despediu-se dos familiares e, na manhã de 11 de março de 1530, zarpou no bergantim D. Henrique numa nova expedição da Ordem de Sagres. Desceram a costa, subiram o rio da Prata, depois o Paraná, até as proximidades da imponente foz do Iguaçu. Daí seguiram a pé até a região de Guairá e fundaram, no coração do continente, uma aldeia de nativos e colonos, com o propósito de promover o encontro dos conhecimentos do Novo e do Velho Mundo.
     Enquanto isso, em Cananeia, sérias dissensões irromperam entre os moradores e a rivalidade com São Vicente, inibida até então pela liderança de Mestre Cosme, agitou a vila. Mestre Nunes precisou deixar a vila, indo viver em São Vicente com a mãe. Em Cananeia surgiu um novo cacique, Turiguaré, que daria ainda o que falar.
    
V. As primeiras expedições pelo interior da Araucária

     Entre os náufragos que viviam no porto dos Patos, houve um que tentou, talvez, a maior façanha da história colonial da Araucária. Aleixo Garcia, após ter visto vários navegadores passarem na região em busca do fabuloso reino da prata, entre as quais chegara a participar seu amigo, Melchior Ramires, decidiu organizar, ele próprio, uma expedição terrestre, bem armada, para tentar realizar aquela conquista.
     Assim, no verão de 1524 – após oito anos vivendo em Santa Catarina -, Aleixo Garcia arregimentou um exército de dois mil índios arqueiros e partiu, acompanhado de outro náufrago, Francisco Pacheco, continente adentro. Mas não iriam a esmo: com os nativos, eles apuraram a existência de um caminho, já de uso antigo, conhecido como o Peabiru, que começava na foz do rio Itapocu, um pouco ao norte de onde moravam. Dali seguiram para o interior. Desbravaram as terras paranaenses e alcançaram o rio Paraguai, tornando-se os primeiros europeus a atingir o Mato Grosso do Sul. Atravessando o rio, continuaram seguindo para oeste, até o local da atual cidade de Assunção, no Paraguai.
     O exército de Aleixo Garcia demorou quatro meses para fazer o percurso. Então subiram o rio Pilcomayo, até chegarem a Chuquisaca, uma província do grande Império Inca. Atacaram de súbito os povoados da região e saquearam um grande número de objetos de prata, estanho e ouro. Enquanto retornavam, porém, foram atacados pelos ferozes guerreiros Payaguá. Aleixo Garcia estava entre as centenas de mortos.
     Em fins de 1525, os poucos sobreviventes da expedição (entre os quais Francisco Pacheco) chegaram ao porto dos Patos, trazendo valiosos objetos de prata no butim.
    Seis anos depois, em abril de 1531, outra expedição marítima chegou de Portugal, agora comandada por Martim Afonso de Sousa, tendo por missão conquistar a serra da Prata (apesar do Tratado de Tordesilhas interditar a presença portuguesa naquela região).
    Estando Martim Afonso ancorado no Rio de Janeiro, preparando-se para ir ao rio da Prata, decidiu enviar quatro homens ao interior, incluindo certamente alguém que dominasse o idioma tupi. Após dois meses, seus homens retornaram, justamente, com o cacique Tibiriçá, sogro de João Ramalho. Eles provavelmente haviam chegado à aldeia de Piratininga, já na Araucária, onde seria fundada a vila de São Paulo. Naquele encontro nas praias cariocas entre Tibiriçá e Martim Afonso foi pactuada a Aliança entre os Homens da Floresta e os Homens do Mar, tão marcante, desde então, na História da Araucária. Para selar aquela aliança, os dois líderes cruzaram suas armas erguidas, a lança de comando e a espada. O brilho do sol refletido na espada rendeu-lhe um nome que, desde então, o próprio Martim Afonso passou a adotar para sua arma: Uimberaba, “a Flecha Brilhante”.
     Em setembro de 1531, agora em Cananeia, Martim Afonso enviou uma expedição terrestre, liderada pelo Capitão Pero Lobo, para cruzar outra vez o Peabiru em busca de conquistar a serra da Prata. Os portugueses solicitaram a Turiguaré e seus homens que se integrassem à expedição, “a primeira na construção de uma grande e nova nação de homens destemidos”, disseram, mas os cananeus desdenharam da oferta, “não estamos interessados em sua futura nação, onde os vicentinos por certo comandarão”. Então Lobo levou apenas oitenta soldados armados consigo, além de um guia, Francisco de Chaves, o único dos cananeus que aderiu à empreitada. Enquanto Lobo e seus homens marchavam, Martim Afonso seguiu por mar, com o mesmo objetivo, acompanhado de mais de 200 homens armados.
     Considerado o primeiro bandeirante, Lobo não tinha, porém, qualquer chance contra os bravos Payaguás. Ninguém dessa expedição jamais retornou. A tentativa marítima de Martim Afonso também fracassou e ele escapou por pouco quando sua nau afundou em águas uruguaias, deixando naquelas praias sua célebre espada. Por ironia, no ano seguinte, com apenas 153 homens, o espanhol Francisco Pizarro conquistaria o poderoso Império Inca.


     Armínio concluiu aquela parte e ficou pensando, enquanto se aproximavam da garagem secreta. Mais uma vez, aquela apresentação do início da história de sua região o surpreendia, apesar de ser ainda bastante semelhante, nos fatos gerais, com o que aprendera na escola. Ele fechou seu livro e ficou pensando nos milhões de crianças araucarianas levadas para o Polígono e submetidas ao Mundo-Brasil. Nas escolas elas estudam a “História do Brasil”, já que, afinal, se imaginam brasileiras, mas tudo que ouvem a respeito daquele período são histórias sobre o Rio de Janeiro, Salvador, Recife... Em seus livros didáticos, elas só percebem uma linha vertical separando as “terras portuguesas”, o Brasil, das “terras espanholas”, que nem sequer recebem um nome. Naturalmente elas não podem deixar de notar que, onde acreditam viver (com exceção de uma pequena parte de São Paulo) não fazia parte do Brasil. Mesmo assim, “sua história” é a história daquela região desconhecida para elas, as “terras portuguesas”. Como todos os professores, todos os livros, todos os adultos repetem as mesmas histórias, elas acabam se acostumando com a informação de que aquele distante Brasil Colônia, para lá da linha de Tordesilhas, era “seu país”, e que o local onde elas nasceram era só uma região anônima no resto do mapa.
     Bem que Seu Stanislaw estava certo. O que Armínio achava que era a realidade, agora parecia claramente uma ilusão, e a História da Araucária, que ele mal acabara de passar os olhos, já lhe parecia muito mais com a sua realidade.
      Enquanto pensava nessas questões, chegaram ao esconderijo.

     - Que bom que voltou. – Seu Stanislaw já o aguardava. – Compreende agora o que estamos fazendo?
     - Mais ou menos. O que esperam de mim?
     - Não há tempo a perder. Temos motivos para crer que a Máquina planeja realizar novos testes radioativos junto à fronteira da Venezuela. Os danos da radiação são tão severos que há hoje entre os venezuelanos quem acredite que o falecido ex-presidente converse com o atual através de um colibri encantado. O Conselho de Segurança da ONU já está discutindo a possibilidade de impor sanções econômicas e enviar uma comissão de inspetores internacionais para averiguar o programa brasileiro de radiação ultrachatoniônica. A notícia gerou uma crise na região pois o governo araucariano não confia nas promessas do presidente Dirceu de que seu programa tem fins pacíficos.
     - Mas o que acontecerá se emitirem esses raios contra os araucarianos?
     - A radiação geraria tensão, conflitos, perda de confiança, ódios sociais, desejo de proteção. Então os agentes do governo brasileiro na Araucária iniciariam a Reforma Político-Democrática para Ampliação da Participação das Entidades Representativas da Sociedade Civil Organizada.
     - Como assim, participação? Isso não é meio vago?
     - Mas esse é o segredo. Para a Máquina, quanto mais vago melhor. Uma vez iniciada a tal Reforma, qualquer coisa se torna possível. Uma rápida tomada das instituições araucarianas não seria difícil. Os araucarianos não teriam qualquer defesa contra um ataque desse tipo.
     - E o que pretendem fazer? A Resistência já avisou ao governo da Araucária?
     - Eles conhecem os riscos e já pensam em retaliação, o que seria catastrófico. Sua melhor chance somos nós. Acreditamos que ainda seja possível desligar a Máquina e reassumir o controle das instituições. – E Seu Stanislaw conduziu Armínio para próximo de seu amigo.
     - O Dr. Trajano Walblastenn é pesquisador de Arte e Semiologia - não me pergunte o que seja isso. Mas ele vai te explicar o que precisamos.
     Dr. Walblastenn era um sujeito de seus cinquenta anos ou mais, óculos, bem vestido, alguém que destoava naquele ambiente subterrâneo.
     - O que eu vou lhe dizer, Armínio, é considerado apenas uma lenda para muitos líderes da Resistência, mas eu tenho pesquisado esse assunto há muitos anos e estou convencido que existe um meio de vencermos. Trata-se de um documento ultrassecreto que nos mostrará como deter a Máquina e recuperar nossa liberdade. Estamos em busca desse documento misterioso.
     - Mas se é um mistério, como vocês descobrirão?
     Dr. Walblastenn olhou espantado para Seu Stanislaw e novamente encarou Armínio:
     - Você nunca viu o History Channel? Todos os mistérios da Humanidade partiram de um mesmo ponto!
     - O Concílio de Niceia... – emendou Seu Stanislaw, em seu velho tom dramático.
     - No ano de 325, reunido na cidade bizantina de Niceia com os maiores líderes da Igreja, o Imperador Constantino ordenou uma modificação na tradução de todas as Escrituras Sagradas. Qualquer passagem que falasse em “respeito ao próximo”, Constantino ordenou que mudassem para “amor ao próximo”. Jesus na verdade só estava falando para as pessoas respeitarem os direitos umas das outras, o que já causaria a maior revolução na história humana, mas isso ameaçava a política de tirania dos imperadores de todos os tempos, e Constantino achou melhor fazer essa adulteração. Deu no que deu. Podemos amar muita gente, mas toooodo mundo... fala sério. Se amássemos todo mundo teríamos que viver em luto e pranto permanentes, porque milhares de pessoas morrem a cada minuto!
     - Espera aí – interrompeu Armínio. – Tudo isso é muito curioso, mas o que tem a ver com nosso problema?
     - Maria Madalena e Jesus Junior – o Juninho de Nazaré – haviam fundado a Ordem dos Respeitadores, alvo de terríveis perseguições ao longo dos séculos. Já leu sobre o teólogo John Wycliff e os sábios de Sagres? Eram Respeitadores. Hoje seus membros vivem escondidos, preservando a Epístola aos Atenienses, única escritura ditada diretamente por Jesus de Nazaré (que era analfabeto de pai e mãe). O resto é tudo conversa fiada. Os líderes da Resistência acreditam que essa epístola revela como destruir a Máquina e restabelecer os direitos indivuduais em meu país.
     - Tudo que precisamos agora – completou Seu Stanislaw – é encontrar os membros da Ordem dos Respeitadores e obter esse documento.
     - E vocês têm alguma pista?
     - Nada de muito concreto. Após muito pesquisar nos arquivos do Vaticano, eu desenvolvi uma teoria. Acredito que o pintor Pedro Américo era um membro da Ordem dos Respeitadores. Ele pode ter deixado registrado na sua obra, Independência ou Morte, as respostas para os iniciados os encontrarem. Essa pintura, portanto, é um código, o Código Américo.
     - Mas como vocês pretendem conferir essa teoria?
    Dr. Walblastenn respirou fundo e respondeu:
     - Não será fácil. O quadro exposto lá no Museu do Ipiranga é uma falsificação, pintada pela esposa do Marechal Deodoro da Fonseca depois de concluir seu Curso de Desenho e Pintura, no Centro Comunitário de Maceió. Descobrimos que o legítimo Independência ou Morte está fortemente protegido no Salão de Alta Segurança da Secretaria de Cultura de Curitiba do Norte. O local é protegido pelos mais modernos equipamentos, o sistema possui tecnologia japonesa, foi criptografado por agentes israelenses e sincronizado pelo serviço secreto britânico. Nossa missão será burlar esse sistema.
     - Mas isso é uma missão impossível!
     - E é por isso que contaremos com a ajuda de um agente secreto português.
     - Português?
     - Sim, Toni Cruzes. Eu e ele iremos essa noite invadir o Salão de Alta Segurança e finalmente  desvendar os segredos do Código Américo – disse Dr. Walblastenn, empolgado.
     - Mas quando tivermos um meio de interromper o funcionamento da Máquina, precisaremos do Polemista – completou Seu Stanislaw. A esquerda virá com tudo, furiosa, com faca nos dentes, despejando toda a verborragia, dossiês, acusações, paralizações... será o Inferno. Um grande debate televisionado paralizará o país, determinando o destino do Brasil e do continente. É nossa única chance. Naturalmente, em condições normais, isso não seria problema, mas o estúdio de TV estará submetido às ondas marquetéricas, o que afetará a razão de nosso debatedor.
     - Não vamos enganá-lo – acrescentou o doutor. – Todos os que já foram expostos a esse nível de radiação perderam a sanidade. Algumas vítimas, coitadas, chegaram a fundar um instututo para preservar a sabedoria do Grande Líder da Esquerda, onde realizam rituais sagrados aos domingos e feriados.
     E Seu Stanislaw emendou:
     - Mas o Polemista pode conseguir! É por isso que você precisa concluir seu treinamento e recuperar sua memória emotiva. Você pode conseguir, Armínio!
    E os dois deixaram Armínio novamente sozinho, para que ele prosseguisse em sua preparação.

Capítulo II – O Início da Colonização
I. A Vila de São Vicente

     Martim Afonso retornou de sua frustrada expedição ao Prata, chegando a São Vicente em 21 de janeiro de 1532. No dia seguinte – dia de São Vicente – completavam exatos 30 anos que Gonçalo Coelho descobrira e batizara o local. Foi a ocasião para que Martim Afonso fundasse ali a Vila de São Vicente, a primeira vila portuguesa da Araucária. Mandou construir um pelourinho e uma igreja. Foram nomeados o capitão da vila, Pero de Góis; o juiz ouvidor, Antônio Rodrigues (já morador do local); o tabelião e o oficial de justiça. O padre Gonçalo Monteiro, nomeado pároco, passou a celebrar missas – talvez as primeiras das terras araucarianas. Batizados e casamentos passaram a ser celebrados e registrados. Uma pequena casa de estudos foi fundada pelo rapaz que todos conheciam apenas como Mestre Leonardo Nunes, vindo de Cananeia. Com isso, muito discretamente, a antiga Escola de Sagres, nascida no cabo de São Vicente, no sul de Portugal, retornava a uma nova São Vicente, num curioso giro da Fortuna. Pela enorme mobilidade e vigor do Mestre Nunes, ele ficou conhecido também entre os nativos como “Abarebebê, o Mestre Voador”. Meses depois, em 22 de agosto, foram realizadas as primeiras eleições políticas do continente americano, para se eleger os membros da Câmara de Vereadores.
     Uma segunda povoação foi iniciada no local da aldeia de Piratininga, chamada Santo André da Barra do Campo. Deu-se início à construção de um forte na ilha de São Vicente e muitas sesmarias foram concedidas. As sesmarias eram direitos de posse, hereditários, condicionados ao uso efetivo da terra. Tanto João Ramalho quanto Turiguaré receberam grandes sesmarias, além de outros antigos moradores locais e, é claro, os membros da expedição de Martim Afonso.
     Mudas de cana-de-açúcar foram cultivadas, mostrando-se promissoras, e ferramentas agrícolas foram distribuídas aos colonos. A cana-de-açúcar tinha grande valor e já era cultivada pelos portugueses nas ilhas atlânticas. No ano seguinte, foi fundado o primeiro engenho de açúcar da Araucária, em São Vicente, chamado Engenho do Governador. Logo a exportação de açúcar se tornou a principal atividade econômica da colônia.
     Em 1534 chegaram as primeiras cabeças de gado bovino da Araucária, trazidas de Cabo Verde, tanto para ajudarem nos serviços da lavoura e nos transportes quanto para fornecerem carne, leite e couro. Destacaram-se também os trabalhos do mestre Bartolomeu Fernandes, vindo com Martim Afonso, um ferreiro contratado para servir à expedição, mas que acabou permanecendo na colônia. Recebeu por sesmaria o sítio dos Jeribás e instalou, às margens do rio Jurubatuba, na vila de Santo Amaro, a primeira forja da Araucária (e da América) para produzir ferro, empregando quatro operários.
     O pesado trabalho agrícola imposto aos índios pelos colonos não podia deixar de provocar revoltas. O cacique Piquerobi liderou uma rebelião na região que o opôs a seu irmão, Tibiriçá, e impediu o avanço dos colonos pelo planalto paulista por vários anos.    
     Mas o conflito mais grave foi a Revolta de Cananeia, que ocorreu em 1535, entre os colonos de São Vicente e os moradores de Cananeia, liderados por Turiguaré, ainda ressentidos com o prestígio dos vicentinos entre os Tupis. Após roubarem armas de corsários franceses, os homens de Turiguaré emboscaram os soldados do capitão Pero Góis e atacaram São Vicente, chacinando mais da metade de sua população. Se João Ramalho não tivesse descido a serra com muitos índios aliados, é certo que a vila teria sido destruída por completo. Apesar de salva, São Vicente sofrera uma enorme tragédia.

II. As Capitanias Hereditárias

     No ano em que foi fundada a vila de São Vicente, o rei de Portugal decidiu entregar capitanias hereditárias a súditos capazes de promover a colonização de seus domínios na América. O território da Araucária foi dividido em três capitanias: A Capitania de Santana, que ia de Laguna (onde os portugueses, comodamente, fixaram o meridiano de Tordesilhas), até Cananeia; a Capitania de São Vicente, de Cananeia à barra de Bertioga; e a Capitania de Santo Amaro, de Bertioga à Ubatuba. A Capitania de São Vicente foi doada a Martim Afonso, enquanto as outras duas foram entregues a seu irmão, Pero Lopes de Sousa.
      Já em carta de 28 de setembro de 1532, D. João III comunicava a Martim Afonso suas intenções de instituir capitanias na América. O donatário se tornava capitão e governador. Podia escravizar índios e vendê-los em Portugal; doar sesmarias a cristãos (inclusive estrangeiros); criar vilas e nomear seus magistrados; nomear tabeliães públicos e judiciais e nomear oficiais militares. Tinha, em seus domínios, direito a 5% sobre o pescado e o monopólio sobre moendas de água ou outros engenhos.
      As doações só foram efetivadas em 1534, quando Martim Afonso e Pero Lopes já haviam deixado a Araucária. Àquela altura,  os dois irmãos estavam em missões militares na Ásia. Assim, por procuração, foi a esposa de Martim Afonso, Dona Ana Pimentel, quem exerceu, de Portugal, os poderes de donatária sobre as capitanias. Apesar das distâncias, Dona Ana se revelaria uma empreendedora competente.
     Um dos colonos de maior destaque no início da colonização foi Brás Cubas, dono da maior sesmaria de São Vicente, que viera à Araucária com Martim Afonso. Prosperou com o cultivo da cana-de-açúcar, especialmente na Ilha Pequena, uma de suas sesmarias. Brás Cubas teve papel importante na dissuasão dos agressores cananeus, forçando-os a ver que a colonização do litoral paulista era um fato consumado, e eles que nunca mais atentassem contra a vida dos colonos e que por lá ficassem, apartados. Desde então Turiguaré, seus guerreiros e seus descendentes se recolheram numa obscura vila que havia sido um dia a maior ocupação europeia da Araucária.
     Em 1543 Brás Cubas comandou a fundação do porto de Todos os Santos, a fim de evitar as constantes enchentes que ocorriam no povoado de São Vicente. Fundou ali uma capela, um  hospital (a Santa Casa de Misericórdia de Todos os Santos) e um novo engenho de açúcar. Dois anos depois, aquela iniciativa daria origem à Vila de Santos, que passava a contar com seus próprios magistrados, enquanto, ainda em 1545,  Brás Cubas assumiu a função de governador da capitania de São Vicente.
     No litoral, onde o plantio de cana-de-açúcar se aclimatou bem, novos núcleos de colonos eram criados, como os de Itanhaém e de Bertioga, mas era preciso se conquistar o planalto. O único povoado existente era o de Santo André, mas de difícil defesa. Então, logo após a visita do Governador Geral Mem de Sá à Araucária, providenciou-se a fundação de um novo povoado, no alto da serra.
     Com tal objetivo, os padres jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, acompanhados do Mestre Nunes, celebraram uma missa em 25 de janeiro de 1554 (dia do apóstolo Paulo), à frente de um barracão de taipa, onde estabeleceram uma turma de estudos, entre os Tupis, velhos aliados dos colonos.
     Gradualmente novos moradores foram subindo de São Vicente, atraídos pela boa terra local. Em dois anos já havia ali uma igreja edificada e, pouco depois, um colégio e a residência dos religiosos. Assim nascia aquela que se tornaria a maior cidade do Hemisfério Sul.

III. O domínio espanhol

     Ao contrário do que fizeram os portugueses, o governo espanhol procurou primeiro dominar o interior do continente, atingindo-o através dos grandes rios do estuário do Prata, pois o objetivo central era explorar suas enormes riquezas minerais, como as minas de Potosí, no Alto Peru (a Bolívia atual), descobertas em 1546.
     Já em 1534 a Coroa espanhola dividiu seus domínios sulamericanos em  grandes faixas horizontais, como as capitanias portuguesas. Toda a Araucária espanhola ficou submetida ao Governo do Rio da Prata. Pouco depois foi criado o Governo de Assunção: o Rio Grande permaneceu sob o Governo do Rio da Prata, mas os demais estados atuais da Araucária (Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e quase todo São Paulo) ficaram, oficialmente, sob o governo colonial paraguaio.
     Apesar do domínio político formal, a presença efetiva dos espanhós na Araucária era muito pequena. No século XVI o Mato Grosso do Sul recebeu algumas visitas, sobretudo na região de Corumbá, através do rio Paraguai. Em 1593 os espanhóis fundaram por lá um vilarejo portuário chamado Santiago de Jerez (primeiro núcleo europeu no Mato Grosso do Sul), que progrediu bem até ser atacado e destruído por bandeirantes.
     O território do Rio Grande fazia parte, com o Uruguai, de uma região chamada Banda Oriental. Em 1603, o governador da província do Rio da Prata, Hernando Arias de Saavedra, tentou promover a criação de gado bovino naquela região, soltando por lá muitos touros e vacas, que passaram a viver em estado selvagem e se adaptaram muito bem à região. Em pouco tempo surgiram equipes de vaqueiros, que partiam de Buenos Aires para aprisionar o gado solto das planícies, a fim de vender couro, gordura animal e, tempos depois, carne salgada (o charque).
     Quanto às terras costeiras, os espanhóis empreenderam apenas uma tentativa de colonização: em 1556 uma expedição espanhola aportou em São Francisco do Sul com essa missão, no litoral de Santa Catarina, mas só permaneceu ali por dois anos, devido aos ferozes ataques dos índios Tupis, já aliados aos portugueses de São Paulo.
     Mas foi na região de Guairá que os progressos ocorreram com mais destaque. A pequena vila fundada por Mestre Cosme e seus confrades rendeu bons frutos e logo as autoridades espanholas estabeleceram contatos e parcerias. Anos depois, em 1556, ela dava origem à Cidade Real de Guairá, junto ao rio Piquiri. Pouco depois surgiu a Vila Rica do Espírito Santo, às margens do rio Ivaí. Esses dois rios davam aos espanhóis amplo acesso ao interior do atual território paranaense.
     Desde que Fernão de Magalhães descobriu a passagem para o oceano Pacífico, em 1519, a costa do Atlântico Sul jamais deixou de ser navegada, principalmente por navios militares espanhóis a caminho da costa ocidental americana e da Oceania. Em 1587, um pioneiro comércio marítimo entre São Vicente e os nativos da costa sulista já era descrito por Gabriel Soares de Sousa, em sua obra Tratado descritivo do Brasil.
     Mas o principal fator de estímulo à presença de navios espanhóis na costa araucariana foram os progressos da colonização da região paraguaia. Irradiando vilas e fortes nos atuais territórios do Paraguai, Bolívia, Argentina e nos Estados de Mato Grosso do Sul e Paraná, e contando ainda com o escoamento de parte da prata extraída dos Andes, a cidade de Assunção estimulou um insipiente comércio fluvial por uma imensa região, todo ele desembocando no Atlântico e na costa da Araucária.

IV. Conflitos com índios e franceses
     Em 1554 Mestre Nunes, sempre interessado em pesquisas náuticas, morreu num naufrágio, numa expedição que partiu de São Vicente para Cabo Verde com o curioso fim de testar velas aéreas que aproveitariam ventos em alturas de até 60 metros.
     No ano seguinte, irrompeu um grande conflito entre colonos e nativos, quando um cacique Tupinambá, o chefe Cairuçu, foi capturado num ataque dos Tupis, liderado por João Ramalho. Cairuçu foi aprisionado numa propriedade de Brás Cubas, grande senhor de engenho de Santos, e acabou morrendo no cativeiro.
     Seu filho, o índio Aimberê, liderou uma grande fuga nas terras de Brás Cubas e seguiu para o norte, onde estabeleceu alianças com vários outros caciques Tupinambás para dar combate aos portugueses de São Vicente. Esse encontro de caciques ocorreu no ano seguinte, dando origem à Confederação dos Tamoios (Anciãos, em tupi), liderada pelo cacique Cunhambebe, na baía de Angra dos Reis. Os Tupinambás aliaram-se ainda com o francês Villegagnon e seus soldados, recém-chegados à baía da Guanabara.
     Aimberê tentou ainda uma aliança com Tibiriçá, o líder Tupi, a fim de isolar os portugueses, mas Tibiriçá, já cristão e aliado aos Homens do Mar, recusou-se a aderir. Os Tupinambás atacaram o povoado de São Paulo, em 1560, mas os Tupis, recebendo o auxílio dos colonos da região, conseguiram resistir. Além disso, uma epidemia de varíola dizimou boa parte dos guerreiros Tupinambás, incluindo o Grande Cacique, Cunhambebe.
     Por fim, foram abertas negociações de paz, em 1562. Os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta foram até Ubatuba, próximo à fronteira com o Brasil, para encontrar-se com os caciques. Anchieta ficou lá, como refém, enquanto Nóbrega retornou a São Vicente com o filho de Cunhambebe (que tinha o mesmo nome) para buscar um acordo. Foi nas areias de Ubatuba, como prisioneiro, que Anchieta compôs seu famoso Poema à Virgem. Apenas no ano seguinte chegou-se a um entendimento, chamado Armistício de Iperoig, pondo fim ao que ficou conhecida como a Guerra dos Tamoios.
      Em 1564 os conflitos reiniciaram no Rio de Janeiro. Estácio de Sá, capitão-mor do Governador Geral, chegou a Santos naquele ano para arregimentar apoio. Aportou seus navios junto ao Forte de São Filipe, na praia de Bertioga, até que, em 1565, pode partir com reforços araucarianos para combater os franceses – batalha que lhe custaria a vida.
     Em 1571, apesar da derrota sofrida no Rio de Janeiro, os franceses ainda estavam estabelecidos em Cabo Frio, mantendo um ativo comércio de pau-brasil, através de uma feitoria que chamavam Maison de Pierre. O navio que trazia o novo Governador Geral e 40 novos jesuítas foi atacado por franceses, que a todos mataram. Então o rei português decidiu dar ao sul do Brasil um governo geral próprio, separando-o do governo sediado em Salvador. Ficou assim estabelecido o Governo do Sul do Brasil, entregue ao jurista Antônio Salema, já presente na colônia. O povoado do Rio de Janeiro, recém-fundado e ainda em guerra com franceses e Tupinambás, foi escolhido para sediar a nova região. Santos e São Vicente, duas vilas vizinhas, prósperas, pacificadas e bem estabelecidas, sequer foram cogitadas como sede do Governo do Sul ou mesmo visitadas pelo novo governador.
     Foram vários anos de combates, envolvendo inclusive corsários franceses, até que, em 1577, auxiliado por uma nova força militar trazida de São Vicente pelo seu capitão-mor, Jerônimo Leite, Salema atacou pesadamente o forte de Cabo Frio e derrotou franceses e Tupinambás, executando em seguida milhares de inimigos e devastando as redondezas.
     Em 1578, cumprida a tarefa militar, o Governo do Sul do Brasil foi extinto. Ao rei pareceu mais prudente que a Araucária voltasse a ser governada a partir de Salvador.

V. A União Ibérica (1580-1640)

     O novo rei português, D. Sebastião I, havia sido educado por jesuítas e cresceu com profundas convicções militaristas e religiosas. Sua maior ambição na vida fora reconquistar a Terra Santa dos infiéis, como um legítimo cruzado medieval. Coroado aos dois anos de idade, assumiu gradualmente o poder à medida que ia crescendo. Dedicou todos os esforços a formar um grande exército para iniciar suas conquistas, planejando tomar para si o Marrocos, contraindo inclusive grandes impréstimos. Aos 24 anos, sem qualquer experiência militar e à frente de um exército enorme mas tão despreparado quanto seu líder, aquele “D. Sebastião de la Mancha” punha toda sua confiança na proteção divina à causa do cristianismo. Morreu (ou “desapareceu”) na primeira batalha, em agosto de 1578.
     Após um breve reinado do Cardeal Henrique, o rei espanhol, Filipe II, reinvindicou o trono português (Filipe II era neto do antigo rei português, D. Manuel I). Enfrentando outros pretendentes, ele invadiu Portugal, subornou nobres, distribuiu farinha ao povo de Lisboa e jurou respeitar as leis portuguesas. Acabou sendo proclamado rei. Dessa forma, Espanha e Portugal, os dois países ibéricos, passaram e ter um mesmo soberano.
     Quase toda a Araucária já estava formalmente submetida ao domínio espanhol, mas sua parte mais desenvolvida – o litoral paulista – pertencia ao império português. Com a União Ibérica, o meridiano de Tordesilhas perdeu importância. Enquanto muitos colonos espanhóis mudaram-se para São Vicente, interessados no comércio marítimo com Buenos Aires, muitos colonos portugueses penetraram nas terras espanholas do interior, partindo principalmente da vila de São Paulo.
     Porém, o domínio espanhol sobre as colônias portuguesas trazia também alguns problemas. O império espanhol tinha inimigos poderosos, como a Inglaterra, a Holanda, a França e, no Oriente, o Império Otomano. Ao se tornar parte dos domínios do rei espanhol, a capitania de São Vicente virava alvo desses inimigos.
     Já em dezembro de 1583 um navio espanhol foi saqueado na ilha de São Sebastião por um corsário inglês, Edward Fenton, que depois aportou na baía de Santos para reparos, provocando uma verdadeira batalha naval ao ser atacado, dias depois, por outros navios espanhóis vindos de Santa Catarina. Um caso mais grave foi o ataque de outro corsário inglês, Thomas Cavendish, em 1591. Cavendish, que já tinha dado uma volta ao mundo, aportou em São Sebastião com cinco navios, de onde lançou ataques devastadores aos portos de Santos e de São Vicente. Queimou engenhos e casarões, fez reféns e roubou muito ouro, permanecendo em São Vicente por mais de dois meses. Dali partiu para o sul, tendo que retornar após enfrentar terríveis tempestades. Foi então combatido por tropas paulistas e precisou fugir para a ilha de Santa Helena, morrendo na viagem.
     Outro problema foi a proibição espanhola, em 1593, de suas colônias negociarem com os holandeses, os grandes importadores do açúcar produzido em São Vicente. Por outro lado, o comércio marítimo entre os paulistas e a região do rio da Prata se intensificou, e Santos se tornou uma escala natural para os navios espanhóis que seguiam para o Rio da Prata ou para o Pacífico. O tráfico de escravos indígenas capturados na Araucária também se intensificou, pois as capitanias do nordeste do Brasil, não conseguindo mais trazer escravos dos portos africanos (capturados pelos holandeses), passaram a encomendar índios aos traficantes araucarianos.

VI. As Missões Jesuítas

     Os jesuítas tiveram um papel muito relevante na colonização espanhola de várias partes da Araucária. Fixados inicialmente na capital paraguaia, Assunção, eles penetraram pelos territórios indígenas e se impressionaram com sábios de descendência portuguesa e espanhola vivendo entre os guaranis, em aldeias de excelente organização. Instruídos por esses sábios, os jesuítas fundaram, a partir de 1609, importantes missões ou “reduções” (grandes comunidades indígenas formadas e comandadas por sacerdotes). Surgindo como uma alternativa à escravidão e à encomienda (servidão coletiva imposta às comunidades indígenas pelas autoridades espanholas), essas missões alcançaram enorme êxito. Afinal, Em 1607, uma determinação do rei espanhol proibiu a escravização ou a encomienda de índios da missões. Na Araucária, três regiões se destacaram na fundação de missões espanholas: as províncias de Tape, no sul do Rio Grande; de Guairá, no oeste do Paraná; e de Itatim, no oeste do Mato Grosso do Sul. Todos se surpreendiam, na época, com aquele rápido florescimento de comunidades organizadas em plena floresta, lideradas por colonos instruídos vivendo naquela região sem o conhecimento das autoridades imperiais.
     Foi em Guairá que as missões da Araucária mais prosperaram. Os grandes rios da região (o Paraná, o Ivaí, o Piriqui, o Iguaçu, o Paranapanema e o Tibagi), além do antigo caminho do Peabiru, facilitavam a penetração e o trânsito na região. Os jesuítas chegaram a Guairá em 1593, fundando sua primeira missão (com apoio da Coroa espanhola), em 1609. Até 1628 já existiam na província 15 missões fundadas por jesuítas.
     Em Tape, as primeiras missões foram criadas no início do século XVII, ao longo dos rios Piratini e Jacuí, que deságuam na Lagoa dos Patos. A primeira delas a ser fundada foi a de São Nicolau, em 1626, seguida logo de muitas outras. Outra área importante de missões jesuitas no Rio Grande foi a margem esquerda do rio Uruguai, onde floresceria, no século seguinte, os “Sete Povos das Missões”, num trabalho missionário iniciado pelo padre Roque Gonzáles (alguns dos sábios de Sagres se ordenaram padres jesuítas, causando uma inesperada tensão, na América do Sul, entre os membros dessa Ordem e o Clero católico secular, submisso aos interesses do Império espanhol).
     A região de Itatim testemunhou um rápido surto de missões jesuitas entre 1631 e 1659, impulsionado por dois poderosos fatores: o ataque dos espanhóis às missões de Guairá e à exploração dos colonos espanhóis no Paraguai através dos contratos de encomienda. Há que se destacar o grande número de objetos de prata encontrados entre os Guaranis de Itatim – o que fez muitos aventureiros julgarem que aqueles índios escondiam alguma grande jazida na região. Tais utensílios, entretanto, eram apenas frutos das trocas constantes com os Incas.
     Cada missão era regida por um padre superior (o pai-tuya, no idioma guarani). Mas nativos exerciam vários cargos de mando, equivalentes aos de capitão, alcaide, alferes e regedor. Todo casal recebia a posse de uma pequena área agrícola familiar, e havia também a terra coletiva (tupã-mbe, a terra de Deus), trabalhada em turnos. Havia ainda criações comuns de cavalos, bois e aves, com distribuições periódicas de víveres entre os moradores e parcelas destinadas aos tributos do governo espanhol. Internamente não se usavam moedas, mas mercadorias eram levadas em caravanas às principais cidades argentinas, para serem vendidas em favor do tesouro comum da redução.
      Naturalmente, toda redução tinha uma igreja central, com uma praça. As casas enfileiravam-se em quarteirões. Após a missa (diária), as crianças frequentavam escolas onde aprendiam escrita, leitura e cálculos. Aos maiores se ensinavam um dos ofícios: tecelagem, carpintaria, agricultura ou metalurgia. A música, a escultura e o artesanato eram praticados com impressionante maestria. Este tipo de organização social, marcada por ampla autonomia política e econômica, floresceu rapidamente, tanto na Araucária quanto nos atuais territórios do Paraguai e do norte da Argentina.

VII. O Segundo Governo do Sul do Brasil (1608-1611)

     Em 1592 assumiu o Governo Geral do Brasil, D. Francisco Sousa. Ele governou por vários anos a partir de Salvador, mas, em maio de 1599, transferiu-se para São Vicente, animado com as perspectivas da mineração e metalurgia da capitania araucariana.
    Além do pioneirismo do ferreiro Bartolomeu Fernandes, vindo a São Vicente com Martim Afonso, destacou-se nessa atividade a figura de Afonso Sardinha. Após estudar alguns anos na Escola de São Vicente, Sardinha havia criado, por volta de 1591, uma pequena fundição nas cercanias de Sorocaba, junto ao ribeirão de Ipanema, onde ele próprio encontrara uma importante jazida de minério de ferro. Sua fundição era composta de dois fornos e uma forja, além de outras duas pequenas “forjarias” que ele ainda abriria na região, em 1597. Essas iniciativas fariam de Afonso Sardinha o Fundador da Siderugia Araucariana.
     Como Governador Geral, D. Francisco Sousa promoveu, ainda em 1596, uma grande entrada ao interior, partindo da vila de São Paulo. Já instalado na Capitania de São Vicente, D. Francisco interessou-se pelas pequenas lavras de ouro existentes no litoral paulista. Também visitou, acompanhado do fundidor Domingos Rodrigues, as fundições de ferro na região de Sorocaba e nomeou um capitão das minas, Diogo Laço, responsável por promover novas expedições em busca de jazidas minerais.
     A primeira grande bandeira mineradora foi a de André de Leão, passando por Mogi das Cruzes e atingindo o interior das Minas Gerais. Coube a D. Francisco providenciar a abertura de uma estrada ligando São Paulo à Mogi, a primeira do planalto paulista, usada pelos bandeirantes a caminho das Minas Gerais. Foi nessa época que o D. Filipe II assinou uma carta régia proibindo a escravização dos índios, mas essa ordenação real era pouco observada na Araucária. Antes de findar seu primeiro governo, D. Francisco ainda promoveu, em 1602, uma nova entrada para “as nascentes do São Francisco”, atuais Minas Gerais, comandada por dois experientes mineradores, Afonso Sardinha (filho) e Nicolau Barreto. Logo após a partida dessa expedição, ele retornou a Portugal.
     De volta ao reino, D. Francisco ainda continuava confiante no potencial mineral da Capitania de São Vicente. Tanto que, em 1608, ele convenceu o rei de Portugal e Espanha a criar um governo específico para as capitanias do sul (São Vicente, Rio de Janeiro e Espírito Santo). Ele próprio seria nomeado, em janeiro daquele ano, “Governador da Repartição Sul”, para onde retornou no ano seguinte, após reunir uma nova equipe de profissionais para acompanhá-lo. O Rio de Janeiro foi, outra vez, definido pelo rei como sede do Governo do Sul, mas D. Francisco escolheu São Paulo para residir.
    Animado pelas pesquisas minerais da Escola de São Vicente, D. Francisco voltou a visitar as fundições da capitania, incluindo os aluviões minerais nos vales de Tamandataí e do Tietê, nos montes de Jaguará e de Jari, na serra de Paranapiacaba, em Paranaguá e em Curitiba. Segundo o historiador Afonso Taunay, D. Francisco “organizou verdadeiro departamento técnico para a pesquisa de minerais”. Foi quando firmou uma sociedade com Diogo Quadros e Francisco Lopes para abrir uma fundição junto às minas de Sorocaba, tornando-se o principal empreendimento metalúrgico da Araucária – e de todas as capitanias portuguesas, nas décadas seguintes.
     Quanto a D. Francisco, não teve tempo de auferir os lucros do negócio: morreu muito pobre, num casebre da periferia de Sorocaba, dedicado a seus empreendimentos industriais. Com ele morreu o último Governo Português do Sul do Brasil, pois o rei Filipe II preferiu restabelecer o Governo Geral, em Salvador.

     De repente, Virgínia entrou no baú do caminhão onde Armínio lia.
     - Você precisa sair agora. Apronte-se.
     - Mas o que houve?
     - É Seu Stanislaw. Soubemos que ele foi detido. Essa garagem não é mais segura, você precisa sair. Tem uma pessoa que você precisa conhecer. Matias o levará lá, se apressem, e boa sorte.
     Matias já estava no volante. Armínio fechou seu livro e foi para o banco do carona.
     Logo estavam nas ruas de Curitiba do Norte.
     - Então Seu Stanislaw foi detido? O que houve?
     - Algo deu errado e eles o pegaram. Talvez haja um traidor entre nós.
     - E podemos ajudá-lo?
     - Estamos vendo isso, mas é muito arriscado. A prioridade agora é proteger você. Seu Stanislaw conhece os riscos.
     - E quem são “eles”?
     - Nós o chamamos de professores. São programas simuladores antropomórficos produzidos em série pelo IHGB para incutir a realidade neurossensitiva tridimensional – o Mundo-Brasil – na mente das pessoas. Eles bloqueiam o máximo possível de conexões neurais de sua audiência e confundem tudo o que antes parecia simples.
     - Como é?
     - Olha, não importa. Se vir um deles, corra o mais rápido que puder e procure um lugar onde possa tomar uma cerveja, bater um bom papo, paquerar. Se eles nos pegam, desperdiçamos anos de nossas vidas afundados em neuropatias autodepreciativas. Você se torna um dependente de proteção institucional, não tem mais amigos, família, trabalho, nada, tudo o que você consegue pensar é em conseguir proteção. Algumas pessoas jamais recuperam a autoconfiança. Nos estágios mais avançados da dependência, a pessoa começa a ter alucinações, julga que os vizinhos estão tentando roubá-la e cria fantasias de sociedades inteiras protegendo-a por todos os dias de sua vida. Acredita que lhe darão uma casa confortável, todos os utensílios e equipamentos que sonhar, ônibus, trens, metrôs e aviões gratuitos que a levem a qualquer lugar, equipes médicas e laboratoriais gratuitas a sua disposição 24 horas por dia, todos os cursos que existem com matrículas abertas permanentemente, sítios desbastados e eletrificados próximos à cidade, se a pessoa sentir vontade de se tornar agricultora, advogados altamente preparados e disponíveis para eventuais contratempos jurídicos, todos os canais existentes de TV disponibilizados e fiscalizados pelo governo contra programas danosos à sua frágil consciência, linhas de crédito subsidiado sempre disponíveis, produtoras de cinema em estado de alerta para o caso dela ter um roteiro que gostasse de ver nas telas, grandes salas de teatro com a agenda aberta, para o caso dela desejar estrear no palco, uma rede de hotéis com reservas permanentes país afora... O mundo inteiro vigilante, aguardando um momento que lhe ocorra, ocasionalmente, algum novo direito a ser atendido. Como ela se orgulha de ser uma pessoa solidária, ainda pleiteia essa mesma situação para todos os seis e meio bilhões de habitantes do planeta.
     - Me parece grave!
     - E o pior, ela abominará qualquer um que lhe sugira recuperar a autoconfiança.
      - Então... Seu Stanislaw... É isso que estão tentando fazer com ele?
      - O polaco é forte, não vai se dobrar facilmente, mas teremos que agir depressa. Olha, a Virgínia me falou de você, nunca vi ninguém despertar tão depressa... Algumas pessoas acreditam que você seja o Polemista.
     - É, me falaram algo a respeito. Não quero decepcioná-los, mas...
     - Eu não sei bem, é uma teoria meio religiosa... Seu Stanislaw acredita que seja você. Chegamos.
     Estávamos na Rua Comendador Macedo, no centro da capital paranaense – ou o que parecia ser ela. Armínio conhecia o lugar.
     - É aqui? No EMBAP?
     - Exato. A Escola de Música e Belas Artes do Paraná. O astral nesse prédio vibra numa frequência inalcançável para as transmissões de raios ultrachatoniônicos emitidos pelas antenas da C.I.D. a Central de Inteligência Dialética.
     - E o que faremos? Vou ter uma aula de violino?
     - Não exatamente. Queremos que você conheça uma pessoa. Se você tem perguntas a fazer, ela é a pessoa certa. Mas cuidado com o que você deseja saber. Você pode conseguir. Agora vá, pergunte por Laura Müller, e não esqueça seu livro.

     Armínio entrou e foi direto ao balcão. Ao pronunciar o nome indicado por Matias, não percebeu nenhum efeito notável na atendente. Apenas lhe indicaram o número da sala e a direção a seguir. Era, de fato, uma sala de música, com alguns adolescentes dedilhando instrumentos e folheando partituras, todos absorvidos com suas atividades o suficiente para desconsiderarem sua presença. Armínio parou um instante e viu uma menina, uns quinze anos, ajeitar nos lábios uma flauta transversa e, de memória, executar uma melodia suave, límpida, um som que preenchia o espaço e como que regia aquele momento num ritmo, diríamos, de contentamento. Havia ali qualquer coisa de talentoso, de excepcional, de invulgar, algo que renovava nossa confiança no valor do esforço humano em busca da excelência.
     Então um leve toque no ombro direito interrompeu a apreciação musical de Armínio.
     - Um som angelical, não é? Que bom que veio. Estava te aguardando.
     - Laura Müller?
     - E você é Armínio Lemos. Stanislaw disse que você viria.
     - Ele foi detido.
     - Ele faz um jogo arriscado. É seu destino. Mas e então, o que veio saber?
     Os dois foram até um canto e se sentaram.
     - O Mundo-Brasil, existe um meio de o superarmos?
     - Você carrega a resposta consigo, Armínio. Os livros nos dizem tudo que precisamos saber. Eles são como nós, olhe para dentro deles, e verá a si mesmo.
     - Dentro de mim eu vejo meus desejos, mas não a verdade exterior.
     - A verdade exterior de hoje são nossos desejos de ontem. Seu livro diz o que um dia os homens desejaram em seus íntimos e agora estamos aqui, tendo essa conversa.
     - Então tudo que eu preciso fazer é terminar esse livro? E voltarei a viver na realidade?
     - Mas esse livro ainda não está terminado. Nenhum livro está. Ele só te diz o que já foi escrito. Onde nossos pais pararam e o que desejaram. É você quem escreverá a última página. Então me diga você, Armínio, o Mundo-Brasil ainda estará lá? Na última página?
     - Seu Stanislaw acha que eu sou o Polemista. Mas eu sei que não sou. Vou desapontá-lo?
     - Sempre temos uma escolha, Armínio. Quando chegar o momento, você terá que fazer a sua.
     Matias levou Armínio de volta à Zion, sem fazer perguntas.
     Após alguns minutos de silêncio, Armínio falou.
     - Estou preocupado, Matias. Virgínia também estará na Zion?
     - Ela precisou resolver algumas coisas, chegará lá em meia hora, talvez.
     - Vocês sabem para onde levaram Seu Stanislaw, não é?
     - Sim, mas...
     - E o que estamos esperando? Ainda falta algum tempo para que o agente Tone Cruzes informe o resultado de sua missão. Precisamos agir depressa.
     - Isso nunca foi tentado. Será arriscado.
     O caminhão parou na calçada próxima ao bueiro de entrada da Zion, à espera de Virgínia.
     - Olha, Armínio. A coisa lá será chumbo grosso. Sugiro que treine mais um pouco em seu livro enquanto esperamos a Virgínia.
     Ele concordou. Abriu o livro e recomeçou:


VIII. Os Bandeirantes

    No início do século XVII começou-se uma intensa atividade de apresamento de índios a partir de expedições armadas, geralmente partindo-se da vila de São Paulo, com a intenção de vendê-los como escravos. Estas expedições eram chamadas de Bandeiras e seus líderes de bandeirantes.
     Já vimos que os ataques de João Ramalho a aldeias Tupinambás do Vale do Paraíba, em 1562, foram um dos motivos para a Confederação dos Tamoios. Em 1576 o capitão-mor da Capitania, Jerônimo Leite, organizou entradas contra aldeias ao longo do Tietê. No início os paulistas apenas compravam prisioneiros de guerra entre tribos inimigas: os vencedores forneciam escravos em troca de armas europeias.
     Quanto aos limites do Tratado de Tordesilhas, nenhum bandeirante se importava, primeiro porque, em regra, não entendiam de observação astronômica, depois porque, na época, as colônias portuguesas e espanholas eram domínios de um mesmo rei, por conta da União Ibérica.
     Foi nessa época que surgiram grandes conflitos entre as missões jesuítas e as autoridades espanholas, contrárias ao progresso daquelas grandes comunidades que lhes privavam da mão de obra indígena. O próprio bispo de Assunção, D. Bernardino de Cárdenas, não escondia sua desaprovação às missões, consideradas prejudiciais aos negócios espanhóis na colônia. Os espanhóis mobilizavam milhares de índios aliados para atacar e dizimar as reduções jesuítas, praticamente desarmadas. Quando missionários chegaram à São Paulo solicitando auxílio, os paulistas, felizmente com mais tino capitalista que os colonos espanhóis, logo perceberam uma grande oportunidade para extender seus domínios e ampliar suas rotas comerciais. Praticamente todos os homens adultos da vila de São Paulo se engajaram nas bandeiras. Em 1619 ocorreu a primeira grande bandeira em defesa das missões de Guairá, comandadas por Manuel Preto. Dos combates, os bandeirantes traziam centenas de inimigos cativos e ainda estabeleciam bons negócios com as missões. Como vimos, nessa época os holandeses haviam tomado as colônias portuguesas da África, interrompendo o tráfico negreiro no Atlântico. Isso estimulou a venda de escravos indígenas para o Nordeste do Brasil.
     Embrutecidos por décadas de escravismo português, a violência dos bandeirantes contra as tribos adversárias tornou-se famosa até na Europa. Vários padres relataram cenas repugnantes, como crianças muito pequenas sendo mortas a pancadas diante dos pais, por serem consideradas pouco lucrativas ou de difícil transporte, nas duras caminhadas até o porto de Santos. Alguns feridos eram entregues, ainda vivos, aos cães.
     A partir de 1628 os ataques espanhóis às missões de Guairá se intensificaram, e a defesa da região foi comandada por Raposo Tavares. As bases militares dos espanhóis,  como Vila Rica e Cidade de Guairá, foram arrasadas em 1632. Pouco depois, em 1637, as legiões de Raposo Tavares socorreram as missões de Tape contra uma nova onda de ataques espanhóis, com os mesmos resultados devastadores. As missões de Itatim também foram defendidas por Raposo Tavares, numa grande campanha militar em 1648, já em nome do Reino da Araucária, sempre com batalhas que rendiam muitos cativos inimigos.
     Assim, por volta de 1650 a vasta região envolvendo o interior de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e partes do Rio Grande e do Mato Grosso do Sul estava sendo percorrida impunemente por bandeirantes paulistas e por seus aliados indígenas. Enquanto os vilarejos espanhóis foram abandonados ou devastados, os portugueses fundavam Paranaguá, Curitiba, São Francisco do Sul e Desterro, além de integrarem as missões jesuítas a seus territórios. O fim da União Ibérica, em 1640, não seria suficiente para fazer recuarem os paulistas. O território da Araucária estava, basicamente, conquistado.

     Armínio concluiu o “Período Colonial”. Era evidente que aquele texto era muito diferente de tudo o que ele já havia lido na escola sobre o “Período Colonial”. Para começar, não tinha no livro nada daquela longa conversa sobre “Mercantilismo e Sistema Colonial Monopolista” que, quando jovem, em Guarapuava do Norte, ele ouvira repetidamente dos professores. Aquilo poderia fazer todo sentido para estudantes mineiros, baianos ou pernambucanos, mas para nós havia sido como ouvir histórias de algum país estrangeiro e não de nosso próprio país, pois de São Paulo ao Rio Grande do Sul não existira qualquer produto que os portugueses haviam monopolizado e as trocas comerciais com os colonos espanhóis de Buenos Aires eram feitas sem qualquer repressão, como era de fato ensinado naquela História da Araucária. Também não havia nada sobre os ciclos do “pau-brasil” e da “cana-de-açúcar”, ainda que algum pau-brasil tenha sido extraído e alguma cana-de-açúcar cultivada, no litoral paulista. Mas a economia colonial araucariana havia sido muito distinta da que se estabelecera ao norte, no “Brasil Colônia”. Mais uma vez, ele sentiu aquela sensação de que seus estudos juvenis haviam sido parte de um grande esquema ilusório, que só agora ele começava a identificar como uma farsa.
     Armínio percebeu que a História Colonial que ele conhecia não era a sua. Ele era capaz de dizer de cor o nome dos três Governadores Gerais, Tomé de Sousa, Duarte da Costa e Mem de Sá, mas nunca ouvira falar em D. Francisco de Sousa, o Governador Geral do Sul do Brasil que tanto fizera pela Araucária e que lá morrera, pobre, dedicado a projetos pioneiros de metalurgia – tão diferente dos governadores de Salvador! Haviam lhe ensinado que a cidade de Salvador fora invadida por holandeses em 1624, mas desconhecia até então que Santos fora atacada, saqueada e incendiada por ingleses, em 1591. Havia estudado que São Luís do Maranhão fora fundada por franceses, mas nunca lera que os espanhóis haviam fundado em seu próprio Estado do Paraná uma cidade chamada Vila Rica do Espírito Santo. Sabia que Pernambuco havia sido governado pelos holandeses por 24 anos, mas nem desconfiava que a terra onde nascera e vivera toda sua vida havia sido, por 140 anos, um território submetido ao Governo do Rio da Prata e, depois, ao Governo de Assunção do Paraguai. Lera mais sobre o donatário pernambucano Duarte Coelho que sobre o empreendedor paulista Brás Cubas, mais sobre Maurício de Nassau que sobre Mestre Cosme ou Afonso Sardinha. Mais sobre o Caramuru que sobre Aleixo Garcia. Finalmente, ele aprendera desde criança a falar “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil em 22 de abril de 1500”, mas qual criança gaúcha, paranaense ou até paulista sabe quem foi Gonçalo Coelho e o que ele fez em 20 de janeiro de 1502?
     Tudo isso era muito revelador, mas nada comparado ao que estava por vir. A partir do próximo capítulo, Armínio descobriria que linha de desenvolvimento a história da Araucária realmente seguiu, afastando-se cada vez mais da grande ilusão que ele acreditara, até aquela tarde, ser a realidade.

Unidade 2 – O Período Monárquico (1642-1815)
Capítulo IV. A Dinastia de Almería
I. A Independência da Araucária

     Em dezembro de 1640, a vitória de um movimento separatista português pôs fim à União Ibérica. Durante este período, os bandeirantes haviam dominado um imenso território espanhol, do noroeste do Paraná ao Rio Grande. Ao mesmo tempo, o comércio entre São Vicente e as cidades espanholas da América do Sul havia progredido bastante.
     Com o fim da União Ibérica e o início de uma longa guerra entre Portugal e Espanha, aquele comércio se tornava ilegal e os espanhóis residentes na Capitania de São Vicente, inimigos (a despeito do idioma espanhol ser então, em São Paulo, mais falado que o português). Quanto ao imenso território conquistado pelos bandeirantes, certamente a Espanha exigiria que fosse restituído, como estava estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas.
    A posição de Portugal era precária. Nos últimos anos havia perdido para a Holanda o Nordeste brasileiro (de Sergipe ao rio Grande do Norte), os principais portos da África, o Ceilão e o Japão – e ainda estavam em guerra com a Espanha pela própria independência. Desanimados, os portugueses buscavam um tratado de paz com os holandeses, reconhecendo todas as perdas. Na Holanda, embaixadores portugueses negociavam o reconhecimento dos domínios holandeses na América do Sul,  em troca do reconhecimento holandês da nova dinastia de Bragança.Quanto a Araucária, que não dava quase nenhum lucro para os europeus, estava longe de ser uma prioridade militar do esfacelado império português.
     Perante a frágil metrópole, os paulistas (já mais Tupis que portugueses) contavam com a força militar e a experiência dos bandeirantes, liderados na época por Raposo Tavares, com boas relações com os colonos espanhóis da América do Sul e com uma capital que, do alto de uma serra íngreme, dominava em segurança a costa e o planalto interior. Naquele momento, aderir ao novo rei português seria declarar guerra aos principais parceiros comerciais da Araucária e unir-se ao mais decadente império da Europa.
     Foi nesse conturbado contexto que aconteceu, em 28 de abril de 1641, a Aclamação de Amador Bueno, ex-capitão-mor e mais rico comerciante da capitania, como “Rei de São Paulo” (o que implicava, evidentemente, na separação de toda a Araucária do restante do Brasil). Os insurretos sabiam que lançavam o primeiro brado de independência política da América nas ruas da vila de São Paulo contra um reino desarmado, impotente e desunido.
      Mas quem eram os insurretos? A revolta havia sido, secretamente, articulada por Jerônimo Raposo Tavares, filho do grande bandeirante, juntamente com Álvares de Castro Mendonça, genro do novo rei, e com o Mestre Tenório Leitão, ex-diretor da Escola de São Vicente e provável idealizador do movimento. Juntos, haviam formado a Academia Araucária, nome escolhido para marcar a diferenciação daquela região em relação ao restante do território português na América. Se o pau-brasil dera o nome do país para lá de Ubatuba, que a araucária, a árvore-símbolo das terras meridionais, batizasse a nova região. Há que se notar que o nome “São Paulo” ainda não havia sido aplicado para todo o planalto interior, prendendo-se ainda à vila de São Paulo de Piratininga, sendo o interior chamado de sertão.
     Os líderes do movimento haviam planejado com cuidado a formação do novo governo, preparando previamente um Termo de Aclamação, documento que foi encabeçado por Álvaro Mendonça e que, todos ali sabiam, serviria de prova irrefutável para uma condenação capital em caso de fracasso do levante.
     O próprio Amador Bueno não ficou sabendo de nada até o último momento, para não poder ser acusado de traição caso os revoltosos fossem pegos. No dia que chegou à vila de São Paulo a notícia de que um nobre português havia se levantado contra o rei da Espanha num movimento separatista português, proclamando-se rei, os insurretos reuniram os moradores da vila e, de espadas em punho, proclamaram também eles um novo rei: “Viva Amador Bueno, Rei de São Paulo”!
     Pego de surpresa, Amador Bueno convocou uma reunião urgente com o Alcaide e o Abade do mosteiro beneditino local para fazer suas deliberações. O Alcaide, Sebastião Vilaça, aconselhou que ele recusasse a oferta e declarasse fidelidade ao novo e desconhecido rei português, mas o Abade, Frei Bartolomeu Torres de Andrada, exortou-o a aceitar a proposta, que daquelas terras haveria de nascer a primeira grande nação da América. Então Amador Bueno foi à sacada da Câmara Municipal, empunhou sua espada e declarou: “Braços firmes, homens! Por por nossa Honra, por nossa Terra, por nossa Gente, baixar a cabeça nunca mais! Viva o Reino de São Paulo!”
     Ainda naquela noite a Academia Araucária confeccionou bandeiras com uma araucária no centro e a divisa “Labor Omnia Vincit”. As bandeiras foram dispersas pela região, e o povo passou a falar no governo da araucária, até que o nome se confundiu com o território e com a nação. Nascia a Araucária.

II. O Reinado de Amador Bueno I (1641-1655)

     A reação do novo governo português ao levante foi a possível: nenhuma. Muito mal o rei português conseguia manter seu trono e sua cabeça. Se nem a rica região açucareira ele esperava recuperar, o que dizer daquele território quase selvagem, que pouco rendia para os cofres reais. De mais a mais, aquilo parecia problema dos espanhóis, já que a Araucária ficava quase toda em seus domínios. Os espanhóis, por sua vez, não tinham condições sequer de reconquistar Portugal, que insistiam ser uma província espanhola, imaginem se iriam enviar tropas para subir uma serra no interior da América do Sul para combater índios e destituir um negociante de víveres que resolveu reinar entre selvagens? Para a Espanha, aquilo era pouco mais que uma pajelança, e enquanto não incomodassem o comércio no rio da Prata, pouco lhes dizia respeito.
     Assim, uma ou outra autoridade portuguesa foi destituída, mas a rotina logo foi retomada, e ficou estabelecida a primeira dinastia das Américas, com a Casa Real de Almería, fundada por D. Bueno I de Almería. Infelizmente a coroa não fez bem (como de costume) à cabeça do até então moderado Seu Bueno. Uma das únicas medidas relevantes de seu governo foi a expulsão dos jesuítas do novo reino, sob a alegação de que criticavam a escravidão indígena. As distantes missões foram toleradas, mas na região de São Paulo a presença dos jesuítas foi sumariamente proibida – algo que, cem anos depois, o governo do Marquês de Pombal repetiria para todo o Império Português. De onde se conclui que políticos são sempre políticos, não se pode facilitar. Mas o mosteiro beneditino continuou funcionando na vila de São Paulo e padres seculares susbstituíram aos poucos os membros da Companhia de Jesus.
      A coroação foi realizada na modesta igreja de São Paulo do Piratininga, sem a bênção de Roma, utilizando-se uma coroa de ferro forjada em Sorocaba. Como vimos, poucos anos depois, em nome de D. Bueno I, as legiões do Marechal Raposo Tavares defendu as missões de Itatim, no Mato Grosso do Sul, entre 1647 e 1648, estendendo os domínios do reino até aquela região.
     A independência da Araucária consolidou a liberdade comercial dos mercadores do porto de São Vicente, não tanto pelo fim de alguma repressão das autoridades portuguesas, mas pela extinção dos impostos pagos à metrópole. Moedas de prata boliviana se tornaram muito comuns nas vilas araucarianas e as trocas comerciais com os mercadores de Buenos Aires e de Assunção, que já eram expressivas, ganharam um novo impulso. Os chamados “engenhos de ferro” em torno da região de Sorocaba, cada um ocupando de três a oito trabalhadores, faziam utensílios domésticos, ferramentas agrícolas e instrumentos de lâmina: facas, machados, punhais, espadas, arpões, além de sinos, lampiões, pregos, trancas e até bacamartes de caça e de combate.
     Quanto à venda de escravos, foi no início uma atividade lucrativa, principalmente enquanto os holandeses estiveram presentes no Nordeste brasileiro. Após a Insurreição Pernambucana, entretanto (que confirmara a tese da Academia Araucária de que os reinos europeus teriam dificuldade de preservar suas colônias americanas, em caso de grandes revoltas), os reis portugueses proibiram o tráfico de escravos entre o Brasil e a Araucária, a fim de proteger os interesses dos traficantes portugueses na África.
     D. Bueno I morreu em 1655, em seu casarão, soberano de um território maior que duas Franças de Luís XIV, sem jamais ter visto suas praias atacadas por qualquer força militar europeia.

     Que curiosa história era aquela! Armínio se recordava muito vagamente de ter lido algo, ainda quando estudante, a respeito da “Aclamação de Amador Bueno”. Acreditou ter sido uma rápida menção, um episódio obscuro, quase anedótico, em meio às “revoltas nativistas”, caracterizadas como eventos que expressavam algum descontentamento dos colonos, mas que não chegavam a contestar a própria dominação colonial. Como assim?! Um movimento que chegou a ter um documento com a assinatura de seus participantes e a aclamação em praça pública de um novo rei, não contestou o domínio colonial?! Haja ilusionismo!
     Em contrapartida, a Inconfidência Mineira, que foi rigorosamente uma conjuração desmantelada pela polícia, algo que a população da época mal tomou conhecimento, merece um feriado nacional? E a Conjuração Baiana, que foi pouco mais que um quebra-quebra contra a prisão de pessoas inocentes numa cadeia de Salvador, por terem divulgado panfletos que não falavam uma palavra contra a soberania portuguesa, é classificada como uma das “Revoltas Anticoloniais”... Mais alucinações da historiografia brasileira na qual Armínio vivera por tanto tempo.
    Além disso aquela história que lhe ensinaram sobre um rei aclamado que preferiu fugir para um convento beneditino e se esconder atrás das saias do abade. Como ele pôde ser tão ingênuo para acreditar nessa bobagem? Existe, em toda história universal, exemplo semelhante? A História da Araucária falava de algo muito mais razoável e comum em todos os povos, um fato até banal: um levante político numa região remota, alguém do lugar assume o poder, vida que segue. É o que havia acabado de acontecer em Lisboa (que nem era tão remota assim). É o que sempre aconteceu por todo lado. Mas não em São Paulo! Não na cidade que acabara de conquistar sozinha três Espanhas na América. Ali o rei, já aclamado por seu povo, fugiu e implorou para lhe tirarem a coroa da cabeça e entregarem a um nobre desconhecido e desarmado, ainda não reconhecido rei nem em seu próprio país, no outro lado do oceano. Super convincente!

III. O Reinado de Da Teresa I (1655-1685)

     A forma de reinar de D. Bueno I fora muito simples, baseada em sua autoridade pessoal, em sua experiência mercantil e nas alianças comerciais que sabia estabelecer. Da. Teresa I, sua única herdeira e esposa de D. Álvares de Castro Mendonça, assumiu o trono da Araucária e imprimiu um governo mais sofisticado. Entre 1651 e 1653 D. Álvares havia estado em Londres, como Embaixador da Araucária, mantendo boas relações com o Chanceler republicano Oliver Cromwell, um sujeito interessado em disputar com holandeses, espanhóis e portugueses a influência sobre a América do Sul. A República de Cromwell foi o único Estado europeu que enviou um embaixador à Araucária, durante o século XVII. A vitória, por exemplo, da Armada inglesa contra a Armada holandesa, em 1654, esteve, evidentemente, por trás do sucesso da Insurreição Pernambucana contra os holandeses, naquele ano.
     A Coroa Portuguesa demorou algum tempo para se restabelecer, o que proporcionou a Araucária um longo período de paz. Porém, em 1679, o rei português ordenou um ataque à vila de Santos, acomanhado de uma expedição por terra. A Fortaleza de São Sebastião, equipada com canhões de bronze ali instalados por Da. Teresa I poucos anos antes, foi suficiente para frustrar o ataque marítimo português, enquanto o exército araucariano, comandado pelo Coronel Domingos Jorge Velho, derrotou as forças portuguesas na Batalha de Bananal, em 12 de fevereiro de 1679. No mês seguinte o Governador Geral do Brasil teve que assinar , em nome do rei português, o Tratado de Angra dos Reis, com o Reino de Araucária, reconhecendo formalmente as fronteiras vigentes.
     Um ano após a Guerra Luso-Araucariana de 1679, Da. Teresa I promoveu a fundação da Colônia do Sacramento, junto às margens do rio Uruguai, a fim de incrementar os negócios do reino com o vale do rio da Prata, competindo com a vila de Buenos Aires. Até então as fronteiras entre a Araucária e as colônias espanholas eram muito vagas, pois os araucarianos só haviam avançado efetivamente até a ilha de Santa Catarina. O reino espanhol, uma vez perdido o domínio sobre Portugual em definitivo, passou a considerar o Reino de Araucária um dique contra a expansão portuguesa na América do Sul, e não se esforçou muito em definir as fronteiras.
     Assim, um pequeno grupo de colonos descendo a costa do Atlântico em pequenas embarcações, chegou ao litoral uruguaio e, em janeiro de 1680, fundou um pequeno forte no local, batizando o novo assentamento de Colônia do Santíssimo Sacramento.
     Se o rei espanhol não tinha muita preocupação com aquele reino americano nas florestas sulamericanas, não era o que pensavam os argentinos, que não queriam saber de concorrentes. Num episódio conhecido como “a Noite Trágica”, na madrugada de 8 de agosto, o povoado foi arrasado por tropas portenhas. Ainda assim, os araucarianos pleitearam seus direitos e fizeram a Espanha assinar um tratado, em maio de 1681, autorizando a reconstrução do forte araucariano no Sacramento.
    Para a Araucária, essa iniciativa representou um novo estímulo de ocupação. O povoado catarinense de Laguna, por exemplo, surgiu em 1684, como Vila Antônio dos Anjos de Laguna, fundada por Domingos de Brito Peixoto, antigo morador e Capitão de São Vicente. Através da Colônia do Sacramento, os araucarianos podiam vender mercadorias aos argentinos, como açúcar, tabaco, algodão e ferragens, pagas com a prata boliviana, além de passar a explorar as ricas pradarias do sul, excelentes para a pecuária.

IV. O Reinado de D. Bueno II (1685-1703)

     Da Teresa I morreu em 1685, sendo sucedida por seu filho primogênito, que reinou como D. Bueno II de Almería, até 1703. Nessa época o governo do reino ficou a cargo do Conselho de Estado, liderado pelo Marquês de Santo Amaro. Em 1698, grupos de adversários (sobretudo comerciantes do litoral), pressionaram o rei para que fosse criado o Parlamento da Araucária, inspirado no que existia na Inglaterra. Era o primeiro Parlamento da América.
      As atribuições do Parlamento eram basicamente consultivas, não existindo ainda um Poder Legislativo bem diferenciado, mas os parlamentares contavam com o importante instituto da imunidade de expressão, o que lhes garantia falar livremente, durante as seções parlamentares, sem serem processados ou detidos, além de que suas residências eram consideradas invioláveis. Sobretudo as ações militares do reino e os impostos eram sempre discutidos no Parlamento, repercutindo em toda sociedade.
     Desde a fundação da Colônia do Sacramento, as questões da fronteira sul continuavam absorvendo o reino.
    Após a destruição das missões espanholas da região de Tape, houve um intervalo de várias décadas até um novo movimento de ação missionária no Rio Grande. Apenas no final do século XVII, atraídos pelas boas pastagens da região conhecida como Vacaria dos Pinhais, no norte do território, é que novos empreendimentos jesuíticos foram levados a cabo. Dessa vez, os religiosos vinham das áreas vizinhas da Argentina. Atravessando para a margem esquerda do rio Uruguai, eles retomaram a atividade missionária a partir de 1687, agora com um caráter um pouco mais econômico que religioso. A essa altura, o avanço dos araucarianos estava centrado no litoral, animados pela fundação da Colônia do Sacramento. As Sete Missões eram conhecidas pelos espanhóis como as Reduções Orientais, por estarem a leste do rio Uruguai. Essas missões estiveram na origem de cidades gaúchas como São Borges e Santo Ângelo.
     O governo espanhol estimulou a ação missionária jesuítica nas atuais terras gaúchas, pois julgava que tais missões deteriam o avanço dos colonos araucarianos sobre aquela região. Por algum tempo foi isso mesmo que aconteceu: enquanto o litoral gaúcho e uruguaio era ocupado por araucarianos, até Sacramento, o interior foi povoado por nações indígenas sob o governo direto dos jesuítas espanhóis.
     Durante o reinado de D. Bueno II, enquanto o Conselho de Estado patrocinava a colonização no litoral sul, a iniciativa de comerciantes e aventureiros araucarianos fomentava uma nova etapa da história econômica da América do Sul: a descoberta das minas de ouro.
     De fato, desde os trabalhos do Governador do Sul, D. Francisco de Sousa, no final do século XVI, a procura por jazidas de ouro jamais deixou de ser praticada pelos araucarianos. A célebre vida do bandeirante Fernão Dias, morto em 1681 em pleno sertão mineiro, foi exemplo eloquente desta ambição nacional. O primeiro bandeirante a ter sucesso nesta busca parece ter sido Antônio Rodrigues de Arzão (filho de outro bandeirante), nascido em Taubaté por volta de 1660. Penetrando pelo sertão mineiro por volta de 1692, Arzão chegou ao distrito de Caeté, “a cinco léguas do rio Doce” onde, nas areias de um córrego, encontrou fartas pepitas do metal precioso.
    Retornou pelo Espírito Santo, seguindo o rio Doce, até voltar a São Paulo, onde comunicou sua descoberta. Em 1694 outro bandeirante, Bartolomeu Bueno de Siqueira, o “Anhanguera” (parente de D. Bueno II), partiu de Taubaté e, seguindo as orientações de Antônio de Arzão, expedicionou pelo planalto mineiro, onde encontrou a serra de Itaberaba (pedra brilhante) próxima às futuras Ouro Preto e Sabará. Outro bandeirante araucariano que ganhou destaque nas descobertas foi Manuel Borba Gato. Vivendo foragido nas serras mineiras, foi um dos primeiros a atingir as jazidas de Sabará, onde permaneceu por vários anos.
     Apesar do comércio, da ferrarias e da pecuária, o quadro geral da atividade econômica da Araucária, no final do século XVII, ainda era modesto. Foi a descoberta do ouro nas Minas Gerais, com um enorme surto de atividade mineradora, que deu um novo impulso à economia araucariana. Muitos na época consideravam a atual região de Minas Gerais parte do território da Araucária, pois sua principal via de acesso passava por Taubaté e a presença de colonos portugueses ou espanhóis na região era nula. Borba Gato, nomeado por D. Bueno II capitão-mor da nova Província das Minas de Ouro, retornou ao rio das Velhas em 1701 e, no ano seguinte, foi promovido a superintendente de minas.

V. O Reinado de D. Álvaro I (1703-1710)

     O curto reinado de D. Álvaro I, filho e sucessor de D. Bueno II, foi marcado pela Guerra dos Emboabas. Sem dúvida, o êxodo de colonos araucarianos para a área mineradora foi imenso, causando mesmo um sério despovoamento da Província de São Paulo. Mas logo chegaram também os “emboabas” (como chamávamos os forasteiros). O governador da Bahia, D. Rodrigo da Costa, chegou a tomar providências para se impedir a migração de baianos para as minas, entre 1702 e 1707, sem sucesso: em dez anos, o número de colonos vivendo nas Minas Gerais chegou a 50 mil, entre araucarianos, nordestinos, cariocas e portugueses. Foi a primeira grande “corrida do ouro” da história mundial.
     Com o desordenado crescimento demográfico nas Minas Gerais, uma grande fome se instalou. Os preços de alimentos dispararam. Segundo o padre Antonil: “um alqueire de farinha em São Paulo custava 640 réis, mas em Minas 43.000 réis!” Para agravar a situação, o patriótico Governador Geral do Brasil, Arthur de Sá, tentou instituir um ineficaz monopólio dos açougues, privilegiando o comerciante Amaral Gurgel, o que tornou o já precário abastecimento de mantimentos ainda mais crítico.
     No início do século XVIII já eram comuns os crimes entre araucarianos e emboabas, acirrando-se a rivalidade mútua. Mas o conflito social tomou forma de uma nova guerra luso-araucariana, conhecida como Guerra dos Emboabas (1707-1709) – a guerra que decidiria se Minas Gerais seria brasileira ou araucariana. O conflito se iniciou com o linchamento de dois líderes araucarianos por uma multidão de emboabas, no Arraial Novo do Rio das Mortes. Com receio de vingança, os agressores fugiram para a floresta, mas os araucarianos limitaram-se a enterrar seus chefes.
      Esse fato cristalizou dois lados opostos, em disputa aberta pelo domínio das jazidas de ouro das Minas Gerais. Os araucarianos eram liderados pelo velho Borba Gato, principal autoridade constituída na região, enquanto os emboabas se reuniam em torno Manuel Nunes Viana, um baiano que enriquecera como dono de minas e comerciante de víveres. D. Álvaro I insistiu que uma guerra total contra Portugal não era a melhor opção: independente da soberania política sobre as Minas Gerais, os araucarianos teriam muito a lucrar com a atividade mineradora na região vizinha. O Conselho de Estado, pouco convencido, submeteu-se porém à autoridade do rei.
     A Guerra dos Emboabas degenerou às vezes em franca violência social, mas nos momentos mais intensos ocorreram combates entre batalhões inimigos. Em novembro de 1708, por exemplo, ocorreu a Batalha de Cachoeira do Campo (atual Ouro Preto). O combate se deu quando um grupo de araucarianos tentou subir o São Francisco com seu gado e foram atacados por colonos nordestinos. Os criadores de gado também estavam revoltados com o sistema de contratos com o objetivo de assegurar, com exclusividade, o fornecimento a açougues de animais para o abate e de arbitrar a venda da carne, o famigerado sistema de monopólio dos açougues, esse velho hábito brasileiro.
     Borba Gato baniu Nunes Viana da região do Rio das Velhas, sem sucesso. Os emboabas, ao contrário, decidiram desarmar todos os araucarianos, receosos de uma rebelião. Ao fim de 1708 os emboabas já tinham o controle de duas das três áreas de mineração mais importantes, tendo os araucarianos se refugiado no Rio das Mortes.
     Então o rei de Portugal nomeou Nunes Viana governador da região mineradora, desistindo de qualquer arbitramento diplomático para o conflito. Em seguida, nomeou Bento do Amaral Coutinho como capitão do exército, com a missão de expulsar os araucarianos da província, que se viram, assim, obrigados a migrar de volta para a Araucária.
     O episódio mais trágico da Guerra dos Emboabas ficou conhecido como “o Capão da Traição”, em 1709. Após a derrota dos araucarianos na Batalha de Ouro Preto, estes se renderam e foram expulsos da região das minas. Um grupo de cerca de 300 soldados araucarianos decidiu, entretanto, resistir à expulsão, e se fixou em um capão (clareira de mata baixa cercada de floresta), num local entre Tiradentes e São João del-Rei. Os araucarianos chegaram a armar uma emboscada e matar vários brasileiros, mas logo se viram cercados pelas forças do Capitão Bento Coutinho. Após resistirem por dois dias, se renderam, sob o juramento do capitão português, “pela Santíssima Trindade”, de que receberiam salvo-conduto para partirem. Assim que entregaram as armas, foram chacinados.

     “É curioso”, pensou Armínio naquele momento, “sempre se fala por alto da Guerra dos Emboabas, mas na história dos brasileiros ninguém explica isso direito. Que guerra foi essa, sem exércitos, sem batalhas, sem generais? Quanto ilusionismo!” Agora ele compreendia que, no mundo real, aquele foi um conflito como qualquer outro da história, uma guerra entre araucarianos e portugueses pelo domínio de uma região rica em recursos naturais.

     O confronto terminou em novembro de 1709, com uma nova derrota dos araucarianos em Rio das Mortes, seu último reduto. D. Álvaro I assinou com representantes do rei português o Tratado de Ouro Preto, em janeiro de 1710, reconhecendo a soberania portuguesa sobre o território mineiro: Minas seria brasileira.
     Os sobreviventes partiram para o oeste, descobrindo novas minas em Goiás e no Mato Grosso do Sul. Nunes Viana foi destituído e autoridades portuguesas assumiram o comando. Apesar da derrota, os domínios do Reino de Araucária ainda íam do Mato Grosso à Colônia do Sacramento, dividido entre as Províncias de São Pedro (no sul, até Santa Catarina) e de São Paulo, o restante do reino.


     Armínio memorizou a página onde parou e fechou o livro. Sentado no banco do carona, em meio a inesperadas missões secretas, ele ainda continuava intrigado. Armínio não lia um livro de história nem se lembrava a quanto tempo. E pensar que aquela era a história de... Sua região? Seu país? Sua terra? A Noite Trágica, o Capão da Traição, a aclamação de Amador Bueno, as primeiras fundições paulistas... será que são essas as coisas que compõem a história do “meu povo”, enquanto nós aprendíamos, no Mundo-Brasil, sobre os Irmãos Beckman, a Guerra dos Mascates, o Marquês de Pombal, o Quilombo dos Palmares, a Conjuração Baiana, a economia canavieira...
     - ...Ela chegou. Entre Virgínia.
     Quando viu Armínio no caminhão, ela entendeu o que aconteceria. O baú teve que ser deixado na garagem para não chamar atenção. Matias dirigiu direto para a produtora de TV que fazia o serviço sujo para o governo brasileiro.
     - Acha mesmo que está preparado?
     - Essa leitura da Verdadeira História até que tem me estimulado. Vamos conseguir.
     - Bem, se você é mesmo o Polemista, a hora de descobrir é agora. Boa sorte.
     Armínio e Virgínia, usando óculos escuros e sobretudos pretos, entraram corajosamente pela porta da frente e logo se depararam com a chapa inteira do DCE de uma universidade pública espalhada pelas escadarias da entrada, todos entretidos com seus celulares. Assim que os identificaram, foi uma torrente de chavões, perguntas idiotas, palavras de ordem, mapas da fome, xingamentos, acusações de ter quebrado o Brasil três vezes, falsas taxas de desemprego, 50 milhões de cadastrados no Bolsa-Família, aeroportos no quintal do tio, privatarias, ódio de pobres fazendo faculdade, de porteiros, de domésticas, agridem os nordestinos como os nazistas faziam, agressor de mulheres, pratos de comida da mesa do trabalhador sumindo para enriquecer banqueiros, roubar todo mundo rouba, sempre existiu corrupção, nada foi provado, Lava Jato é inconstitucional, a mídia trabalha para as elites, a educação de Minas é a pior do Brasil, Banco Mundial, se saiu na Veja é mentira, apesar de tudo o país melhorou, medicina cubana, transgênicos cancerígenos, democracia venezuelana... Era disparo pra todo lado, Armínio e Virgínia se esquivando com agilidade de câmara lenta, e respondendo fogo com fogo: urnas eletrônicas que são piadas no resto do mundo, apuração numa saleta fechada, sem fiscais da oposição, com um ministro do TSE de notória ignorância nomeado pela própria candidata do governo, aparelhamento dos Correios na campanha, pedaladas fiscais, gastança ilegal do orçamento em ano eleitoral, filho de ex-presidente de limpador de jaula a milionário, compra de votos em escala inédita na história universal, grande feirão de ministérios para os aliados, divisão de palanque com Collor, Sarney, Renan, Maluf, Kassab, Garotinho, Iris Resende, proposta ridícula na ONU de dialogar com o Estado Islâmico, empréstimos bilionários do BNDES a ditadores africanos e latino-americanos com cláusulas secretas, mensalão, petrolão, elotrolão, compra de refinaria-sucata, devoção à Nossa Senhora Aparecida às vésperas das eleições, transposição das águas de um rio que está morrendo, prejuízos bilionários da Petrobrás, segundo menor crescimento do PIB na América Latina, índice internacional de educação entre Uganda e Bangladesh, anão diplomático, promessa irreal de energia barata, presidente de honra criminoso eleitoral confesso, ódio à classe média, carga tributária de país rico, sucateamento da produção elétrica, controle da imprensa, custeio de blogs governistas com dinheiro das estatais, fronteiras abertas para o tráfico, imposto sindical, taxas de juros recordes no mundo, produção científica pífia, legislação penal leniente, 50 mil assassinatos por ano, tentativa de aparelhamento da Polícia Federal, Justiça mais lenta do planeta... No fim, o saguão estava reduzido a escombros, com uma profusão de lascas de pilastras pra todo lado, mas os dois passaram ilesos, e subiram até o estúdio.
     Lá estava Seu Stanislaw, cheio de cachaça nas ideias, enquanto era obrigado a assistir numa TV de plasma 60’’, com o som bem alto, a propaganda partidária do governo, em sequências intermináveis. Isso com três artistas da última novela do horário nobre declamando panegíricos ao ex-presidente.
     O velho já tava babando de lado, zonzo, nas últimas. Mas o fator-surpresa contava a favor dos dois: sem os discursos ensaiados, os artistas eram inofensivos, não sabiam o que dizer e ficaram ali embasbacados, sem ousar iniciar uma discussão de verdade. Ao se expor às emissões vindas do telão, Armínio sentiu imediatamente seu estômago embrulhar e sua taxa de paciência na corrente sanguínea cair perigosamente, a ponto dele quase se jogar pela janela. Então Virgínia tirou de baixo de seu belo sobretudo de couro uma pequena frigideira e uma colher e produziu uma vibração sonora que bloqueava parcialmente o ataque das ondas marquetéricas vindo do aparelho. Eles só resistiriam por alguns segundos: Armínio, usando todo seu autocontrole, pegou o pobre do Seu Stanislaw pelos ombros e o carregou para fora dali. Puseram o velho no carro, deitado, no banco de trás, semiconsciente, mas no carro só tinha lugar para mais um. Nesse momento, estavam chegando dois professores, avisados daquela ousada operação de resgate.
     - São eles Armínio! Entra no carro! Você não pode ser pego! Eu vou correr!
     - Não, Virgínia, entra aí! Matias, leve-os para Zion! Rápido!
     Matias, confuso e assustado, deu a partida e saiu disparado. Virgínia ainda gritou: “Corre”!
     Os professores se aproximaram e já se preparavam para correr atrás de mais um rebelde, mas, dessa vez, foi diferente. Armínio os encarou de frente. Eles pararam, intrigados. Armínio, ao invés de correr, assumiu uma posição defensiva, e os encarou.
     E aí os caras soltaram o verbo em cima do atrevido. Era “modo de produção capitalista” pra cá, “tomada de consciência da classe trabalhadora” pra lá, “socialismo científico”, “as veias abertas da América Latina”, “a luta do proletariado soviético”, “a luta do Hamas pela libertação do povo palestino”, “o cristianismo europeu contra o pensamento científico”, “o imperialismo industrial no centro da Primeira Guerra Mundial”... Foram, 10, 20, 30, 35, 40 minutos de falação naquela gíria esquerdista que diz “o encontro de diversos saberes de sujeitos sociais autônomos na construção de uma rede horizontal de sentidos aberta a novas leituras do real comprometidas com a pluralidade de um novo mundo possível” para dizer, “a conversa”.
    E Armínio, só olhando para o relógio, contando os minutos para acabar a ladainha interminável. Parecia até que o mundo estava em câmara lenta. Já se sentindo cambalear para trás, de tanto sono, Armínio se desviava daqueles argumentos decorados. As frases passavam todas à queima-roupa, cruzando o ar em ondas confusas, mas Armínio já havia aprendido a pensar por conta própria, e seus pensamentos eram mais ágeis que aquelas frases gastas. Esgotada inutilmente a munição da cartilha partidária, os professores por fim se calaram, impressionados com a falta de efeito de seus períodos mais recambólicos. Então, imóvel, em posição de combate, Armínio fez apenas um pequeno gesto com as pontas dos dedos: venham. Mas o ataque dos professores tinha um limite de tempo preciso: 45 minutos, que se esgotaram naquele exato instante. Terminado o tempo, os dois professores se desintegraram no ar e tudo que eles disseram foi deletado automaticamente da memória. Era como se os dois jamais tivessem existido.
     Dali Armínio pegou um ônibus lotado e foi até o bairro onde ficava a Zion. Discou o código na cabine telefônica e disse a senha, “chegamos”. Então desceu o bueiro e chegou à livraria, sem encontrar os membros da Resistência. Fez um rápido lanche na cantina, pensou um pouco nos últimos acontecimentos. Sem dúvida, o que ele acabara de realizar seria considerado uma proeza. Será que ele era mesmo o... De toda forma, parece que seu treinamento estava fazendo efeito. Já descansado, escolheu uma poltrona e abriu seu livrinho.

Capítulo V. A Dinastia de Albuquerque
I. O Reinado de D. Gonçalo I (1710-1731)

     A assinatura do Tratado de Ouro Preto foi o último ato relevante de D. Álvaro I no trono de Araucária. Antes que ele retornasse à São Paulo, um levante armado irrompeu entre jovens oficiais militares do reino, com apoio da maioria dos parlamentares, dos comerciantes e da população em geral da vila, insatisfeitos com os resultados desfavoráveis da guerra. A intransigência do rei em não promover uma grande invasão militar sobre Minas Gerais foi tomada como um sinal intolerável de absolutismo real, já que a literatura política inglesa circulava livremente àquela época na Araucária.
     Inspirados pela Revolução Gloriosa inglesa de 1689, os revoltosos se mobilizaram junto ao Parlamento Araucariano, que promulgou a destituição do rei e a aclamação da Dinastia Albuquerque, iniciada pelo Visconde de Paranaguá, agora D. Gonçalo I Ramos de Albuquerque. O Parlamento decidiu ainda instituir uma Declaração de Direitos, a quem D. Gonçalo I jurou antecipadamente lealdade, na cerimônia de coroação. Essa Declaração, tomada logo depois como a Carta Magna do reino - a primeira da América -, ficou pronta no início de 1711, diretamente inspirada na inglesa.
     Tudo foi feito às pressas e, ainda em Taubaté, D. Álvaro I foi informado da Revolução por mensageiros enviados pelo próprio parlamento. Agradeciam por todos os serviços prestados mas declaravam extinta sua dinastia, devido aos novos tempos e outras considerações desse tipo. D. Álvaro I seguiu dali para o porto de Caraguatatuba, onde pegou um barco, dias depois, para Buenos Aires. Na cidade portenha ele viveria ainda por 26 anos como um renomado importador de vinhos.
     Expulsos da região mineira, alguns araucarianos se lançaram a novas bandeiras em busca de ouro, e tiveram êxito. Já em 1718 partia de São Paulo a bandeira de Pascoal Moreira Cabral Leme, que, no ano seguinte descobriu ouro às margens do Rio Coxipó, no atual território do Mato Grosso. Logo foi fundado o Arraial da Forquilha, origem da futura cidade de Cuiabá. O governador da Província de Mato Grosso (que começava no rio Paraná e avançava sertão adentro), visitou Forquilha em 1726, mudando seu nome para Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Nessa época ocorreram também explorações de novas minas na região de Goiás, alcançada através do “Caminho Anhanguera”, aberto pelos bandeirantes.
     Durante esse avanço para o Oeste, surgiu na vila de Guaratinguetá a devoção dos católicos à Nossa Senhora Aparecida. Segundo relatos da época, em outubro de 1717, quando o rei D. Gonçalo I iria fazer uma visita àquela vila, um grupo de pescadores encontrou uma escultura da santa, sem a cabeça, vinda na rede de pesca. Um novo arremeço da rede trouxe a cabeça que faltava e, a partir dali, uma grande pescaria foi realizada, sendo atribuída a intervenção da santa “aparecida” nas águas do rio Paraíba. Desde então a veneração à santa cresceu. Em 12 de outubro de 1905, a Nossa Senhora de Aparecida foi coroada Rainha e Padroeira da Araucária. Atualmente a igreja construída para ela é o maior santuário católico do Hemisfério Sul – esse velho hábito araucariano.
     Com o início do povoamento colonial no Mato Grosso, surgiu um tipo de bandeira chamada de monções, por ser realizada sempre na época das chuvas, a fim de se aproveitar as cheias dos rios, pois elas consistiam em expedições fluviais. As monções levavam mantimentos, ferramentas, armas, munições, tecidos e até escravos aos novos povoados mineradores e retornavam com ouro e peles. Foram também as monções que introduziram os primeiros rebanhos bovinos no Mato Grosso do Sul.
     As primeiras monções pouco se distinguiam de bandeiras em busca de ouro, mas gradualmente organizaram-se lucrativas expedições periódicas de natureza comercial para o Mato Grosso. Eram empreendimentos complexos: a viagem de São Paulo a Cuiabá partia de Porto Feliz, no rio Tietê, passava pelos rios Paraná, Pardo, os afluentes do rio Paraguai, o rio São Lourenço e, por fim, o rio Cuiabá. Nos trechos encachoeirados, era preciso desembarcar e arrastar as canoas ou puxá-las por cordas rio acima.
     Estas monções estão também na origem dos primeiros povoados coloniais do Mato Grosso do Sul. Desde os ataques espanhóis às missões de Itatim, os araucarianos não retornavam à região, mas o percurso até Cuiabá passava por ali. Em 1722, D. Gonçalo I, indo à Cuiabá, visitou sítios junto ao rio Taquari, ao norte do Mato Grosso do Sul, onde concedeu algumas sesmarias. Ali se estabeleceu, em 1729, o Arraial de Biliago, origem da atual cidade de Coxim.
     A primeira tentativa de se rever o velho meridiano de Tordesilhas, traçado em 1497, foi o Tratado de Lisboa, de 1701, firmado entre a Araucária e a Espanha, que reconhecia “provisoriamente” a presença araucariana na margem oriental do rio Uruguai, com a Colônia de Sacramento. Esse entendimento foi aperfeiçoado no Tratado de Utrecht, de 1715, bem mais amplo, que englobava todas as negociações de paz estabelecidas entre as potências europeias da época, após anos de guerras devastadoras no velho continente.
      As difíceis negociações para se chegar a esse tratado foram acompanhadas de perto por Alexandre Gusmão, que servia a D. Gonçalo I em trabalhos diplomáticos. Gusmão, natural de Santos e Mestre de São Vicente, era talvez o homem mais ilustrado da América em sua época. Seu irmão, o padre Bartolomeu Gusmão, ficou famoso em Portugal por ter construído uma máquina voadora, movida a ar quente – fato que não despertou interesse em nenhum engenheiro lusitano. Irritado, Bartolomeu Gusmão viajou para Londres e acabou doando seu invento, como um brinquedo, para um rapazola que trabalhava duro tirando água das minas de carvão, um certo James Watt.
     O problema do acordo entre a Araucária e a Espanha foi o descontentamento dos colonos de Buenos Aires, que não toleravam a concorrência dos araucarianos na região. Decidiram inclusive fundar a vila de Montevidéu em 1726, numa clara recusa ao Tratado de Utrecht.

II. Os Reinados de D. Cristiano I (1731-1768) e D. Cristiano II (1768-1792)

    Com a morte de D. Gonçalo I, em 1731, num naufrágio no litoral uruguaio, subiu ao trono da Araucária seu filho, D. Cristiano I Ramos de Albuquerque. Em seu reinado se manteve tensa a questão das fronteiras do sul. Em 1768 o trono passou para seu filho, D. Cristiano II, que também enfrentou graves ameaças.
     Na década de 1740, foram trazidos colonos para a nova Província de Santa Catarina, desmembrada da Província de São Pedro do Rio Grande, a fim de consolidar o povoamento da região. Trazidos dos Açores, cerca de mil colonos chegaram, a partir de 1748, à vila de Laguna, de onde seriam redistribuídos pelas vilas do litoral.
     Laguna prosperou e foram construídos os primeiros moinhos de farinha de mandioca (que logo tomou o lugar da farinha de trigo nos hábitos alimentares dos moradores). A pesca, já praticada pelos açorianos, ganhou grande importância econômica, incluindo o comércio de peixe salgado. Desenvolveu-se também a pesca da baleia, um lucrativo comércio que os reis portugueses teriam monopolizado para a Coroa se a região ainda fosse uma das suas colônias.
     A vila de Nossa Senhora do Desterro, passou a se chamar Nova Angra, em referência a cidade açoreana de Angra do Heroísmo. Além da agricultura, uma nascente indústria manufatureira de algodão e linho floresceu, vendendo tanto para São Paulo quanto para Buenos Aires. O artesanato de rendas permanece até hoje como um traço marcante da cultura popular local.
     Ao sul da Lagoa dos Patos, desde 1720 já havia um pequeno núcleo urbano, formado por colonos catarinenses, origem da vila de São Pedro do Rio Grande. Com o tempo, a vila de Rio Grande logo se tornou o principal ponto de ligação entre Laguna e a Colônia do Sacramento e seria, por muito tempo, o maior centro urbano em terras gaúchas.
     Porto Alegre teve sua origem na mesma época, numa estância de vaqueiros estabelecida em 1732 num local chamado Campos de Viamão, onde terminava um caminho de tropeiros que desciam de Vacaria dos Pinhais até a Lagoa dos Patos.
     Mas tensões fronteiriças na região se arrastaram indefinidas até que, em 1750, Araucária e Espanha firmaram um tratado de fronteiras bastante detalhado, o Tratado de Madri, que fixou a fronteira segundo o princípio de utis possidetis, isto é, o direito do ocupante. Mas havia uma exceção: a Colônia do Sacramento teria que ser abandonada pelos araucarianos que, em troca, receberiam as terras dos Sete Povos das Missões, no sudoeste do atual Rio Grande. Essa decisão infeliz foi a causa da Guerra Guaranítica.
     Diante da justa resistência dos missionários, em 1754 os araucarianos prepararam uma “expedição colonizadora” para tomar à força as terras que a Espanha lhes havia cedido. Então sobreveio a guerra. Iniciado o conflito, até tropas espanholas se uniram aos araucarianos para encurralar e derrotar os moradores das missões. Mas a resistência dos índios foi fervorosa, mesclando antigos sentimentos anticolonias com uma poderosa convicção religiosa. Essa força moral, entretanto, não foi suficiente para derrotar o poderio militar de araucarianos e espanhóis unidos. Mais de vinte mil índios pereceram na região dos Sete Povos, incluindo mulheres e crianças. A maior parte das missões foi reduzida a escombros e ruínas. Na Europa a Ordem dos Jesuítas passou a ser vista como uma heresia dentro da Igreja, ao ponto de o rei português ordenar a expulsão dessa ordem de todos os seus domínios imperiais, em 1759 (com o costumeiro confisco de seus bens).
      Mal acabada a devastadora Guerra Guaranítica e o sul da Araucária já se envolvia em outro conflito, mas dessa vez em escala internacional. Em 1760 (ano de criação da Província do Rio Grande, desmembrada de Santa Catarina) subiu ao trono espanhol um novo rei, Carlos III, com conhecidas ambições imperialistas. Novas batalhas se seguiram, com o general espanhol Pedro de Cavallos à frente de milhares de homens em várias investidas. A maior delas ocorreu em 1776, já sob o reinado de D. Cristiano II (1768-1786). Valendo-se das dificuldades da marinha inglesa com a Guerra Americana de Independência, o Gen. Cevallos partiu da Espanha no comando de uma poderosa frota de 123 navios levando quase dez mil soldados bem armados, com a missão de conquistar o sul da Araucária, de Desterro ao Sacramento. Era a primeira grande ameaça à soberania da Araucária, desde a fundação do Reino.
     No dia 23 de fevereiro de 1777 as tropas espanholas desembarcaram e tomaram a ilha de Santa Catarina, novamente pegando a defesa araucariana de surpresa. Simultaneamente, o governador do Rio da Prata havia iniciado um ataque por terra à Rio Grande. Cevallos chegou a Montevidéu em abril e ordenou a união de todas as forças espanholas contra a cidade de Sacramento, cercada entre 22 de maio e 3 de junho, data de sua rendição.
     Logo em seguida, o exército espanhol, apoiado por sua força naval, avançou conta Rio Grande. Ao contrário das intenções do Gen. Cevallos, o rei espanhol, Carlos III, aceitou um acordo de paz proposto por D. Cristiano II (O Tratado de Santo Ildefonso, de 1777), que, mais uma vez, restabelecia as fronteiras do Tratado de Madri. A soberania araucariana sobre as províncias do sul estava, definitivamente, estabelecida.
     Enquanto se davam os conflitos nas fronteiras do sul do país, no norte o comércio progredia. Apesar de ter sido chamado na época de “D. Álvaro I, o Intransigente”, suas posições se confirmaram. Ganhando ou perdendo a Guerra dos Emboabas, o florescimento da atividade mineradora no Brasil promoveria um enorme incremento do comércio interno da Araucária.
     A mineração desenvolvida no Mato Grosso, em Goiás e, principalmente, em Minas Gerais, ao longo do século XVIII, fomentou a formação de um circuito de comércio e de produção manufatureira na Araucária. A navegação costeira se regularizou com a venda do charque, a carne bovina salgada produzida nas vilas em torno da Lagoa dos Patos, para o mercado brasileiro. Ao mesmo tempo, um vigoroso comércio interno praticado por tropeiros, estabeleceu rotas que subiam do Rio Grande e cruzavam o interior de Santa Catarina, Paraná e São Paulo, de onde seguiam para Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Esse comércio para o norte estimulou, inclusive, a criação da Província do Mato Grosso (incluindo o atual Mato Grosso do Sul).
     Por volta de 1760, Sorocaba, no interior paulista, se destacava como centro deste circuito de tropeiros. O abastecimento do mercado consumidor mineiro, cujos preços em ouro eram altos, manteve-se como uma atividade econômica importante para toda a Araucária ao longo do século XVIII. O livre comércio novamente promovia a integração regional das províncias araucarianas.
     Concomitantemente, a Província de São Paulo permanecia (como fora desde sua origem), uma região promotora de povoamento, tanto do resto do país, quanto das regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Enquanto a economia colonial brasileira era marcada pela produção exportadora e escravista em larga escala – a cana-de-açúcar e a mineração – a economia araucariana se constituiu assentada em bases distintas: o comércio interno, a navegação de cabotagem, a agricultura de abastecimento regional, a pecuária e as manufaturas.

III. O Reinado de D. Álvaro II (1792-1815)

     D. Álvaro II Ramos de Albuquerque, filho de D. Cristiano II, assumiu o trono num período de relativa estabilidade no continente. O antigo sonho dos aucarianos de estenderem seu território até o estuário do Prata, com a fundação da Colônia do Sacramento lá em 1680, estava defitivamente encerrado. A Araucária iria até o rio Chuí, e dali a fronteira se encotrava com o rio Uruguai, como a conhecemos até hoje. Montevidéu já havia superado Sacramento em população (sobretudo após as invasões espanholas) e essa questão parecia definitivamente concluída. Da mesma forma, as ricas terras das Sete Missões estavam agora plenamente integradas à sociedade araucariana.
     Internamente, o Parlamento Araucariano e a imprensa ecoavam as novidades vindas da recém criada República dos Estados Unidos da América – finalmente uma outra nação americana conquistava a independência! A Araucária, evidentemente, foi o primeiro país do mundo a reconhecer a soberania do novo Estado, segundo a célebre “Doutrina Andrada”, proclamada na Europa pelo geólogo araucariano José Bonifácio de Andrada, em 1802: “A América para os Americanos”. Foi a única grande tensão diplomática entre a Araucária e a Inglaterra, mas nesse ponto fomos firmes.
     José Bonifácio (1763-1838), nasceu em Santos, filho de um abastado comerciante local. Fazendo seus primeiros estudos em casa e aos dez anos matriculou-se na Escola de São Vicente, cujo diretor era Mestre Manuel da Ressurreição, dono de uma das melhores bibliotecas privadas do reino, além de dispor do acervo da própria escola.
     Aos 20 anos foi para Coimbra estudar Direito, Matemática e Filosofia Natural. Em suas poesias e crônicas estudantis, falava de Descastes, Newton, Leibinitz, Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Locke, Virgílio, Horácio, Camões. Como a maioria dos estudantes, elogiava a república americana, defendia a amizade com os índios e a abolição da escravidão.
     Concluído seu curso de Filosofia Natural em 1787, entrou para a nova Academia das Ciências de Lisboa e recebeu título de Mestre. Sua primeira monografia científica revelava seu interesse por um tema caro à economia araucariana: “Memória sobre a Pesca das Baleias e Extração de seu Azeite: com algumas reflexões a respeito das nossas pescarias”.
     De Lisboa Bonifácio seguiu para a Europa. Em 1790 esteve em Paris, onde viu de perto a Revolução em seus momentos mais generosos: a Constituição, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o fim dos privilégios feudais. Mas Bonifácio dedicou-se sobretudo aos estudos de Química, no momento em que Lavoisier lançava as bases científicas dessa área de pesquisa. Em Paris tornou-se membro da Sociedade de História Natural, para a qual escreveu artigos sobre os diamantes brasileiros. Estudou depois na Saxônia, no norte da Itália, em Pávia foi aluno de Alessandro Volta, foi à Suécia e Noruega (onde descreveu e batizou quatro novos tipos de minerais). Fez pesquisas na Dinamarca, na Bélgica, na Holanda, na Hungria, na Inglaterra e na Escócia, sempre se correspendo com diversas associações científicas europeias. Retornou a Portugal em 1800, onde, em poucos meses, lhe ofereceram uma cátedra de Metalurgia na Universidade de Coimbra, criada para ele, além dos cargos de intendente-geral das Minas e Metais do Reino, de membro do Tribunal das Minas, de diretor das Casas da Moeda, Minas e Bosques, de administrador das minas de carvão do Cabo Mondego, de diretor de fundições de ferro, de diretor do Real Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa e de superintendente das Obras Públicas de Coimbra. Recusou todas as ofertas, por perceber que, no quadro geral da administração pública portuguesa, seria impossível realizar qualquer trabalho minimamente razoável, e retornou à Araucária. Chegou em Santos em janeiro de 1801, com 37 anos e com o mais respeitável currículo científico da América do Sul. Dedicou-se por alguns anos ao Conselho Científico da Escola de São Vicente, sendo nomeado seu Mestre.
     Apesar das ofertas de D. Álvaro II, Bonifácio preferiu passar alguns anos administrando as terras da família e realizando pesquisas privadas pelo interior do reino, em companhia de seu irmão, o também mineralogista Martim Francisco de Andrada.
     Outra figura de destaque na cultura araucariana da época foi a de Hipólito José da Costa, nascido em 1774 na Colônia de Sacramento, três anos antes do Tratado de Santo Ildefonso determinar que aquela região pertenceria à Espanha. Filho de militar araucariano, Hipólito mudou-se com sua família para Rio Grande, onde realizou seus primeiros estudos. Aos 19 anos Hipólito matriculou-se na Universidade de Coimbra, onde formou-se em Direito e Filosofia Natural, em 1798. Com uma bolsa de estudos dada pelo governo, Hipólito partiu para a jovem república dos Estados Unidos.
     Na América ele pesquisou, durante dois anos, as culturas agrícolas e suas técnicas, especialmente do tabaco e do linho, observou instrumentos das novas manufaturas, obteve sementes promissoras que enviou à Araucária, entre as quais sementes de cochonilha, valorizada pela indústria de tintas. O diário de suas viagens, publicado sob o título Diário de viagem à Filadélfia, tornou-se muito popular na Araucária, entre agricultores, comerciantes e artesãos. Nessa obra o autor descreveu as cidades florescentes, os hábitos locais, falou dos debates diplomáticos, dos eventos culturais, do funcionamento das novas universidades americanas, dos presídios, das instituições políticas. Além de suas memórias, Hipólito escreveu artigos e enviou exemplares de jornais americanos para São Paulo, divulgando “as novidades da América”.
     Em seu retorno à Lisboa, Hipólito da Costa trabalhou na Tipografia do Arco do Cego e depois na Imprensa Régia. Em 1802 foi à Londres a serviço do governo português para adquirir livros e máquinas impressoras. Por ter se aproximado da maçonaria inglesa (o que era crime em Portugal), foi proibido de retornar. Então levou os livros e as máquinas adquiridas para a cidade de Rio Grande, onde viviam seus familiares, e fundou lá a maior tipografia da Araucária na época, publicando o Correio Araucariano, dedicado tanto a temas políticos quanto a artigos tecnológicos, econômicos e científicos. Nos 14 anos seguintes, até sua morte, foi o mais importante jornalista do reino. Hoje conta com o Museu de Comunicação José Hipólito da Costa, em Porto Alegre, para a preservação de sua memória.
    Entre as principais iniciativas do D. Álvaro II esteve a fundação de uma grande fundição, nas cercanias de Sorocaba (antigo centro metalúrgico araucariano, além de maior feira pecuarista do país). Trata-se da Real Fábrica de Ferro de Ipanema, inaugurada em 1811. Para criá-la, o rei contratou o engenheiro alemão Friedrich Varnhagen, que chegou à Araucária em 1809. Com a colaboração de José Bonifácio, Varnhagen (pai do primeiro grande historiador araucariano) fez o projeto inicial da Fábrica, assumindo sua direção em 1814. Construiu dois Altos Fornos (os primeiros da América do Sul) e duas forjas de refino, seguindo o padrão que conheceu na Europa. Produziu o primeiro ferro gusa em 1819, mas a fábrica, mesmo subvencionada pelo reino, não encontrava um mercado compatível com suas necessidades, sobretudo pela precariedade da infraestrutura comercial da época.

IV. O Período Joanino no Brasil (1808-1821)

     Durante o reinado de D. Álvaro II na Araucária, mudanças decisivas ocorriam no império português. No final de 1807 o exército de Napoleão invadiu Portugal para interromper os lucrativos negócios que os portugueses mantinham com a Inglaterra, grande concorrente da França.
    Uma opção simples para a família real portuguesa seria fugir para os Açores, um arquipélago português não muito distante de Lisboa e protegido pela marinha inglesa. Mas decidiu-se que o império português seria melhor governado a partir do Brasil, àquela altura já mais lucrativo para a Coroa que o próprio território português. A nova sede para a Côrte portuguesa seria o Rio de Janeiro, capital do Governo Geral brasileiro desde 1763.
      A chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em janeiro de 1808, acarretou um enorme aumento da carga tributária, a fim de financiar vultosos investimentos públicos na nova capital, incluindo teatros, jardins, bibliotecas, faculdades, missões artísticas, arsenais, praças, aquedutos, pontes, canais, palácios e, é claro, numerosos e generosos proventos. Os tributos foram tão pesados que causariam, em 1817, uma revolução separatista em Pernambuco, arquitetada pelos maçons vermelhos do Nordeste, mas sufocada a custo de prisões, torturas, chacinas e execuções sumárias pelas forças portuguesas, onde o nome do Coronel Raimundo Matos se destacou e se tornou temido em todo império.
     Ainda em janeiro de 1808, o príncipe regente D. João decretou a Lei de Abertura dos Portos brasileiros. A lei definia uma taxa alfandegária de 24% para as “nações amigas” (a Inglaterra e a Araucária) e de 16% para navios portugueses. Era o fim do monopólio comercial português. Finalmente os comerciantes brasileiros poderiam importar artigos estrangeiros e, principalmente, exportar suas mercadorias agrícolas sem depender dos intermediários portugueses. Outra decisão importante foi o Alvará de Liberdade Industrial, de 1º de abril de 1808, que revogava a proibição da atividade industrial no Brasil, vigente desde 1785. Assim, na mesma época que a Araucária fundava sua primeira siderúrgica, os brasileiros tentaram abrir a sua, em Minas Gerais, porém sem o mesmo sucesso.
     Em 1810 Portugal firmou os Tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação com a Inglaterra, baixando a taxa alfandegária sobre navios ingleses para 15%, o que propiciou um grande incremento nas importações brasileiras de produtos britânicos. Enquanto isso, a Araucária instituía o porto livre de Nova Angra, isento de impostos, a fim de atrair comerciantes e colonos europeus e de estimular o comércio catarinense.
     Naquela época ainda não havia partidos políticos na Araucária ou no Brasil, mas aglomerações de lideranças aconteciam em torno da única grande organização política existente, a maçonaria. Essa organização, já na Europa, estava dividida entre os maçons azuis, predominantes na Inglaterra e nos Estados Unidos, e os maçons vermelhos, predominantes entre os revolucionários franceses, como os jacobinos. Na Araucária predominava amplamente a maçonaria azul, onde funcionava o Grande Oriente da Araucária, que tinha por Grão-Mestre, justamente, José Bonifácio (sendo Hipólito da Costa outro dos membros mais eminentes). Já no Brasil predominava a maçonaria vermelha, do Grande Oriente do Brasil, liderada por Evaristo da Veiga. Os azuis defendiam a monarquia constitucional e a atividade política fundada nas leis e nos direitos individuais, a estilo britânico, enquanto os vermelhos, conhecidos também como o Partido Exaltado ou Jacobinos, exigiam em seus jornais a república imediata, além de acusarem seus adversários de “inimigos do povo brasileiro, corruptos, elitistas, servos do imperialismo inglês, escravocratas”, sempre exigindo que os azuis fossem todos destituídos e presos. Durante o reinado de D. Álvaro II o debate político na imprensa se acirrou profundamente e se dividiu entre azuis e vermelhos, e essa tensão só cresceria nas décadas seguintes.

     - Armínio! É você mesmo!
     Era o Dr. Walblastenn, ofegante.
     - Sim, por que o espanto?
     - É que me disseram que você havia sido capturado por professores.
     - Eu me safei. Tem notícias do Seu Stanislaw?
     - Ainda não. Acabei de chegar da Secretaria de Cultura. Nossa missão foi um sucesso, apesar do agente Toni Cruzes ter sido preso.
     - Ele foi pego? E como a missão foi um sucesso?
     - O prédio é fortemente vigiado. Há sempre dois guardas bem armados na entrada e vários outros pelos corredores. Então Toni Cruzes subiu no terraço de um edifício vizinho, fez uma tirolesa até o teto da Secretaria, usando um arco e flexa. Daí deslizou pela corda a uma altura de uns 60 metros, desceu no telhado, imobilizou dois seguranças com golpes certeiros, escalou uma coluna segurando-se em frisos de poucos centímetros e entrou pelos dutos de ventilação, arrastando-se até a Sala de Segurança, onde a chave eletrônica fica guardada. O lugar é todo controlado por raio laser e sensores ultrassensíveis. Ele desceu por uma corda amarrada na cintura, desviando dos raios e segurando a respiração. Precisou descer até uns dez centímetros do chão, ficando completamente na horizontal. Quando sentiu que uma gota de suor cairia de sua testa – suficiente para os sensores detectarem sua presença – ele mordeu o pé da mesa, fez um giro circense  com o tronco, chutou a chave com o pé esquerdo e a apanhou com a mão direita, sempre desviando dos raios. Finalmente subiu de volta ao duto e chegou ao elevador de saída, que o levaria à janela da escada de incêndio. Mas o elevador estava em manutenção. Ele acabou preso no fosso aguardando o zelador do turno da manhã para poder sair.
     - Mas então como você conseguiu entrar?
     - O arco e flexa do português era maneiríssimo. Eu o troquei com o guarda da entrada por uma hora sozinho no Salão de Alta Segurança.
     - Mas não eram dois guardas na entrada?
     - Nas noites de sábado eles fazem rodízio. Cada sábado um assina o ponto do outro.
     - E o que descobriu com a análise do Código Américo?
     - Os membros da Ordem dos Respeitadores se reúnem na Av. D. Pedro I, porque todos no quadro olhavam para D. Pedro; numa igreja, porque D. Pedro se levantou como se fosse a hora da leitura do Santo Evangelho; aqui mesmo em Curitiba, porque a posição dos cavalos formava uma letra C invertida (pois sabe-se que os gênios escrevem da direita para a esquerda) e as pernas dos cavalos sugerem as letras I e T; a reunião ocorre no início da manhã, porque estavam muito encasacados para as tardes de setembro; geralmente aos domingos, porque tinha muita gente à toa para aquele horário; um café é servido durante o encontro, porque um camponês com cara de padeiro aparecia no canto inferior esquerdo da tela, numa posição que corresponde às quinze para as nove em relação ao centro geométrico do quadro; e os membros da ordem costumam se reencontrar à noite, pois D. Pedro aparece no quadro, feliz pelo fim daquela reunião, perguntando quem topa tomar uma. Mas segundo a Escola Frankfuriana de Semiologia, esse braço erguido pode significar que haverá apenas uma pessoa para nos atender – infelizmente minhas pesquisas não puderam dirimir essa dúvida, já que eu só tive uma hora com o Código.
     - Puxa, esse negócio de Semiologia funciona mesmo!
     - Se conseguirmos a informação que tanto buscamos, talvez nosso ataque à C.I.D. seja amanhã mesmo. Voce consegue terminar seu treinamento a tempo? Saber como a Araucária se tornou uma república será muito valioso, quando você tiver que enfrentar as ondas marquetéricas durante o debate em cadeia nacional. Não queremos perder mais um dos nossos.
     - Eu estarei pronto.
     Foi quando Matias surgiu na Zion e também se espantou com a presença de Armínio. Já que eles conseguiram salvar Seu Stanislaw, a garagem ainda era segura. Por isso entraram no caminhão e seguiram para lá.
     Na garagem secreta só houve tempo para um banho rápido e um jantar sumário. Depois todos foram dormir. Armínio dormiu profundamente, mas acordou antes de todo mundo, lavou o rosto voltou à Verdadeira História.


Unidade 3 – Império Americano (1815-1842)
Capítulo VI – Os Reinos Unidos (1815-1822)
I. A Criação dos Reinos Unidos (1815)

     Na Europa, Napoleão Bonaparte havia sido derrotado e as monarquias absolutistas estavam novamente no poder. Exceto a Inglaterra, nenhum governo europeu reconhecia a soberania da Araucária, apesar dos inúmeros tratados feitos com a Espanha (considerados por ela “tréguas” e não “tratados”). A falta de reconhecimento travava o comércio araucariano e mantinha o reino em eterna vigilância, alvo permanente da cobiça das potências estrangeiras por aquelas “terras de ninguém”. Para solucionar essa situação, surgiu a proposta, no Foro de Viena (uma organização de forças absolutistas europeias para estabelecer grandes acordos que garantissem a manutenção de sua dominação no continente) de uma união entre Portugual, o Brasil (elevado a reino) e a Araucária.
     A proposta custaria a soberania nacional da Araucária, mas formaria um poderoso império na América do Sul, unindo as duas nações de fala portuguesa, o Império Luso-Americano. Na imprensa dos maçons vermelhos surgiram artigos em defesa da “pan-lusofonia” e protestos de amizade irromperam nos jornais de ambos os reinos. Por um momento, qualquer um que falasse contra a união dos reinos passou a ser acusado de “partidário do ódio separatista”. Se fosse um araucariano, seria ainda considerado um “adepto do preconceito contra os nortistas”.
     Ainda assim esse movimento não chegou a preponderar no Parlamento Araucariano, cuja maioria preferia manter a soberania. Aconteceu, porém, que, por estanha coincidência, o navio que trazia os dois filhos e os cinco netos do rei D. Álvaro II, vindos da Europa, desapareceu em algum local próximo do litoral pernambucano, uma trajédia que extinguiu a Dinastia Albuquerque e abateu profundamente o rei araucariano. Subitamente, a adesão à proposta de união imperial pareceu a muitos araucarianos menos pior que uma crise sucessória, e a proposta de união foi aprovada no Parlamento. D. Álvaro II, já viúvo, decidiu migrar para Londres, enquanto uma rainha louca, D. Maria I, recebia a histórica coroa de ferro da Araucária. No discurso da cerimônia de coroação  a rainha anunciou que superaria metas inexistentes e providenciaria o estoque de ventos para as caravelas.  Por toda a Araucária, a nossa bandeira foi recolhida para dar lugar à do Império. Com esse inusitado arranjo, nasciam os Reinos Unidos de Portugal, Brasil e Araucária, também chamado Império Luso-Americano, colocado sob a regência do príncipe, D. João de Orleans e Bragança.

     Nesse ponto da leitura Armínio não pode deixar de notar a ironia: ele se lembrava de ter lido qualquer coisa sobre um “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”. Então substituíram a Araucária por esse tal de Algarves, mas o Algarves nem é um reino meu Deus! Como ele pôde ser tão ingênuo com mais esse ilusionismo historiográfico? Quando a pessoa está sob aquele tal de raios ultrachatoniônicos acredita mesmo em qualquer asneira. Algarves? Fala sério!

b. A Anexação do Uruguai
     Aproveitando a invasão napoleônica à Espanha, as colônias espanholas americanas começaram a declarar independência uma atrás da outra. Em 1811 foi a vez do Uruguai, cujo povo não queria se submeter ao monopólio comercial de Buenos Aires. O general uruguaio José Artigas cercou Montevidéu, tomou a cidade e declarou a independência do novo país, separando-o do que, na época, eram chamadas Províncias Unidas do Rio da Prata, a futura Argentina.
      Pois, em 1816, D. Maria I bateu seu último pino. O príncipe regente se tornou D. João VI e, para comemorar, no meio da bebedeira, ordenou a invasão do Uruguai, na famosa Ordem da Taberna: “Que bela banda oriental morena!”, “deixe disso, Sua Majestade não dá mais conta dessas coisas”, “duvida eu mandar invadir aquela província? Fala duvido!” “Duvido!”, “Ordeno que invadam aquela p...@, ora pois!” Logo um gaiato rebatizou o lugar de Cisplatina (“o lugar para cá do rio da Prata”). E assim, lá tínhamos outra vez as fronteiras sulistas em pé de guerra.
     Seguiram-se sangrentas batalhas em solo uruguaio, entre três exércitos distintos: os próprios uruguaios, que queriam a independência, os argentinos e os imperiais (os reinos unidos), que desejavam ambos anexar aquela região para seus territórios. Em 1817 tropas portuguesas tomaram Montevidéu e forçaram a anexação da Cisplatina aos Reinos Unidos, mas os uruguaios continuaram combatendo no interior da província até 1820, quando suas forças foram derrotadas. No ano seguinte, após milhares de mortes e gastos imensos, um tratado de anexação foi imposto aos derrotados, oficializando a criação da Província da Cisplatina.

II. A Saída de Portugal dos Reinos Unidos (1822)

     Em agosto de 1820 eclodiu em Portugal uma revolta política (novamente promovida por maçons) chamada Revolução do Porto. Uma assembleia política foi instituída, chamada de Cortes portuguesas, que assumiu o comando do país. O novo governo exigiu o retorno imediato da família real a Portugal e convidou os brasileiros e os araucarianos a enviarem deputados para integrar as Cortes. Pela primeira vez, a Araucária iria enviar seus representantes a uma grande assembleia política na Europa. O pintor Óscar Pereira Silva compôs um quadro, “Sessão das Cortes de Lisboa”, onde podemos ver o deputado araucariano Antônio Carlos de Andrada num de seus discursos.
     Os maçons vermelhos do Brasil estavam exultantes com a Revolução do Porto, e tomaram as ruas do Rio de Janeiro para exigir que o imperador jurasse obediência a uma Constituição que ainda seria escrita. Pressionado pelas Cortes, D. João VI teve que deixar o Rio de Janeiro, em abril de 1821, (levando todo ouro que conseguiu reunir), mas deixou seu filho, D. Pedro, como Príncipe Regente. A Araucária continuaria, portanto, a ser governada a partir do Rio de Janeiro, mas agora por um príncipe de 22 anos.
     Apesar da participação de alguns deputados brasileiros e araucarianos, as Cortes tinham ampla maioria portuguesa e suas decisões tendiam para a completa recolonização dos reinos americanos. Em setembro, novas ordens chegaram de Lisboa, exigindo o retorno de D. Pedro e instituindo um novo ministério e novos comandos militares para cada uma das províncias brasileiras e araucarianas. O entusiasmo dos vermelhos pela Revolução do Porto revelava-se precipitado e aqueles que, antes, mais elogiavam os “irmãos revolucionários” se tornaram seus maiores agressores.
     O príncipe hesitou até janeiro de 1822, quando decidiu ficar no Rio de Janeiro. Os ministros portugueses renunciaram e D. Pedro instituiu um novo ministério, onde se destacou a figura do cientista araucariano José Bonifácio. Por conselho de Bonifácio, D. Pedro impôs sua aprovação real à todas as decisões vindas do governo português relativas ao Brasil e à Araucária, o que, na prática, tornava seu governo soberano. Também convocou, em junho, uma Assembleia Geral Constituinte, o que também implicava na soberania do seu governo. O próprio Bonifácio redigiu um manifesto enviado a governos estrangeiros exortando-os a reconhecerem a completa soberania do Príncipe Regente sobre os Reinos Unidos americanos.
     Em agosto de 1822 D. Pedro viajou a São Paulo a fim promover sua liderança na Araucária. Neste momento, chegava ao Rio de Janeiro um navio português com novas ordens, extinguindo a regência e instituindo um novo ministério. Tais decretos foram enviados com urgência para D. Pedro, junto com cartas de D. Leopoldina, sua esposa, e de José Bonifácio.
     O mensageiro encontrou-se com o príncipe, na tarde de sete de setembro, às margens do riacho Ipiranga, já retornando ao Brasil. Após aconselhar-se com o padre Belchior, que o encorajou, o príncipe afirmou: “...Nada mais quero do governo português e proclamo o Brasil e a Araucária para sempre separados de Portugal!” Ouviu por resposta a tropa clamar: “Viva a liberdade! Viva a união entre o Brasil e a Araucária! Viva D. Pedro!”
    Diante de sua guarda, disse então o príncipe: ‘Amigos, as Cortes portuguesas querem escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais!’ E arrancando do chapéu o laço azul e branco, decretado pelas Cortes como símbolo da nação portuguesa, atirou-o ao chão, dizendo: ‘Laço fora soldados! Declaro Portugal expulso da União! Declaro a criação do Império Americano’.
     D. Pedro e os soldados empunharam suas espadas, então o príncipe bradou: ‘Americanos, a nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte!’ E assim nascia, naquela tarde de sete de setembro de 1822, junto a um riacho araucariano, o Império Americano.
     Em seguida retornaram todos de volta a São Paulo, onde comemoraram o Grito do Ipiranga. Após 181 anos, as ruas paulistanas voltavam a aclamar um novo rei.

Capítulo VII – O Primeiro Reinado (1822-1831)
I. A Assembleia Geral Constituinte

     D. Pedro retornou enfim ao Brasil, onde se fez coroar Imperador Americano, em dezembro. Restava agora a questão das novas leis do império. Uma das maiores dificuldades da adesão da Araucária, em 1815, aos Reinos Unidos, foi a suspensão da sua Constituição. D. João garantira, na ocasião, que uma nova Constituição seria promulgada “em caráter de urgência”, o que não foi cumprido. Essa promessa havia sido, inclusive, uma das causas da Revolução Constitucionalista do Porto, em 1820.
     Mas agora, atendendo as reivindicações dos deputados paulistas nas Cortes portuguesas, D. Pedro I convocara, ainda em junho de 1822, eleições para uma Assembleia Geral exclusiva para os Reinos Unidos americanos. Agora aquela assembleia ganhava caráter de constituinte para seu novo império.
     Logo em seguida à convocação seu ministro, José Bonifácio, instituiu as Instruções que regulariam essas eleições, valendo-se de sua experiência como presidente da Junta Provisória de São Paulo, órgão que coordenara as eleições dos deputados paulistas para as Cortes portuguesas, considerado exemplar.
      As Instruções de 1822 tinham um caráter restritivo, mas sem as censuras raciais, religiosas ou estamentais, próprias do império português. As freguesias realizavam, segundo o número de residências, a votação para escolha dos eleitores, que depois, reunidos nos distritos eleitorais, elegiam os deputados de cada província. Um problema para a Araucária, porém, foi a própria composição da Assembleia Geral: de seus cem membros previstos, apenas 13 viriam da Araucária (além de 2 da Cisplatina) enquanto 85 seriam brasileiros. Esse desequilíbrio já sugeria as dificuldades que os araucarianos teriam pela frente.
     Reunida em maio de 1823, a Assembleia Geral elegeu, em sua primeira sessão, sua comissão mais importante, responsável por elaborar o projeto da futura Constituição. Apesar da reduzida bancada araucariana, o paulista Antônio Carlos de Andrada (irmão de José Bonifácio) foi o mais votado, com 40 votos, tornando-se por isso o relator.
     O projeto foi apresentado em 1º de setembro, constando de 272 artigos. Inspirado na Constituição francesa de 1791, (e não na jacobina, de 1793) sugeria uma monarquia parlamentar, com três Poderes autônomos, o catolicismo por religião oficial, a manutenção da escravidão e um sistema eleitoral bastante elitista, baseado no voto censitário que partia de eleitores com renda equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca. A figura do rei seria muito enfraquecida no império e as províncias teriam muito pouco poder. Isso refletia a situação da época, pois no norte do Brasil e na Cisplatina muitas revoltas armadas haviam eclodido contra o novo imperador. Os revoltosos preferiam voltar a ser colônias portuguesas a se submeterem ao novo governo instalado no Rio de Janeiro!
     Durante os trabalhos dos parlamentares no Rio de Janeiro, os ânimos políticos foram ganhando contornos dramáticos nas ruas da cidade. Os vermelhos publicavam panfletos e jornais acusando D. Pedro de “fora da lei”, mas seus alvos principais eram os líderes dos azuis, como José Bonifácio, acusado de todo tipo de traição e de conspiração. Havia ainda um grupo de políticos, comerciantes portugueses e militares ainda leais a D. João VI que não aprovavam a separação entre Portugal e o Império Americano. José Bonifácio tentou reconciliar maçons azuis e vermelhos em torno da defesa de D. Pedro I, a fim de enfraquecer os “portugueses” e garantir a independência. Conseguiu inclusive que o imperador, após aderir à maçonaria, fosse eleito subitamente o seu Grão-Mestre. D. Pedro I, entretanto, tinha seus próprios planos. Os líderes vermelhos podiam estar controlados, mas suas “bases” nas ruas estavam cada vez mais exaltadas, e ganhavam força na Assembleia. Então, em 23 de novembro de 1823, o imperador convocou todos os líderes maçons para uma reunião de urgência, apenas para prendê-los e, em seguida, mandar fechar a Assembleia Geral. José Bonifácio e outros cinco políticos foram exilados.
     A primeira experiência de debates constitucionais do Império Americano não resistira mais que uma primavera. No Nordeste os maçons vermelhos novamente promoveram uma grande rebelião, a Confederação do Equador, chegando a iniciar uma república por lá, mas foram, outra vez, massacrados pelas forças imperiais. No ano seguinte D. Pedro I outorgou uma Constituição, redigida por um Conselho de Notáveis. Na prática, essa Carta Magna lhe dava poderes absolutos, criando um brasileiríssimo Absolutismo Constitucional, disfarçado no eufemismo de Poder Moderador – o poder real de mandar nos demais poderes do Estado.

II. A Guerra da Cisplatina (1825-1828)

     Ao contrário do que ocorreu no norte do Brasil, na Araucária não houve conflitos armados entre partidários de D. Pedro I e de D. João VI: a separação entre Portugal e o Império Americano foi aceita de forma amplamente majoritária. No Sul, apenas na Província da Cisplatina, anexada a menos de dois anos, aconteceram sérios embates entre forças leais a Portugal e forças que aderiram ao Império Americano.
     A aclamação de D. Pedro em sete de setembro de 1822 nas ruas de São Paulo não foi aceita pelo Comandante de Armas português, D. Álvaro da Costa – que detinha na época o comando sobre a cidade de Montevidéu, desde que a Cisplatina fora anexada aos Reinos Unidos. Isso provocou um conflito aberto contra as tropas do general Frederico Lecor. Português e veterano de guerras na Europa, Lecor liderara a conquista de Montevidéu, em 1816, à frente da prestigiada Divisão de Voluntários do Rei, mas foi dos primeiros a aderir à secessão do príncipe regente, D. Pedro. Diante do conflito com as forças leais a Portugal, Lecor precisou recuar suas tropas para a Província do Rio Grande a fim de reorganizar uma divisão leal ao novo imperador.
     Feito isso, Lecor atacou seus antigos soldados, em novembro de 1823, retomando Montevidéu, mas a resistência dos portugueses ainda durou até março de 1824 (a última resistência portuguesa na América), quando D. Álvaro, cercado, se viu obrigado a se render.
     Apenas alguns meses após a rendição portuguesa, em abril de 1825, um grupo de militares uruguaios liderados por Juan Antônio Lavalleja iniciou um novo movimento separatista naquela província e um congresso clandestino declarou nula a anexação da “Província Oriental” pelo Império. Contando com apoio dos argentinos, o pequeno exército de Lavalleja derrotou as forças imperiais em 12 de outubro de 1825, na Batalha de Sarandi, dando início à longa Guerra da Cisplatina.
     Para apoiar Lavalleja, um exército argentino invadiu, por terra, o Uruguai, no início de 1826. Como o Império teve dificuldades para mobilizar um exército no Sul, ainda por conta das revoltas no Norte contra o novo imperador, os argentinos ganharam terreno e, em janeiro de 1827, Lavalleja avançou pelo Rio Grande. Apenas em 20 de fevereiro uma divisão imperial conseguiu enfrentá-los, na Batalha de Passo do Rosário, saindo porém derrotada. A província do Rio Grande ainda perderia, em 1828, para o exército argentino, a rica região dos Sete Povos das Missões.
     Apenas no mar o Império levava vantagem, garantindo com isso a defesa e o abastecimento de Montevidéu e da Colônia de Sacramento, as duas principais cidades uruguaias, ainda sob domínio imperial.
     Enfim, 12 anos após a anexação do Uruguai e sem condições militares, políticas ou financeiras para prosseguir naquela aventura iniciada por seu pai, o imperador consentiu, cinicamente, em “abdicar de seus direitos na Cisplatina”, em troca da devolução dos territórios perdidos no Rio Grande. Em outubro de 1828, um tratado de paz assinado no Rio de Janeiro por diplomatas imperiais e argentinos reconhecia a independência da República Oriental do Uruguai, pondo fim à guerra. Os inúteis e imensos esforços dessa guerra impopular foram um dos principais fatores da crise do reinado de D. Pedro I.

III. Novidades no campo científico

     No início do século XIX a Europa passava por uma fase de forte curiosidade científica. Naturalistas europeus percorriam diversas regiões do mundo em busca de descobertas e contribuições, animados por um humanismo ilustrado e otimista. A Araucária não ficou de fora: Nas pesquisas geológicas, Mestre José Bonifácio fora um pioneiro. Também o Barão Von Eschwege, renomado mineralogista, realizou importantes expedições geológicas em São Paulo na década de 1810. Eschwege foi o autor da primeira obra científica sobre a geologia araucariana.
     Entre os naturalistas, destacou-se o francês Auguste de Saint-Hilaire, que veio à Araucária entre 1820 e 1822, a partir de uma bolsa de pesquisa concedida pelo Museu de História Natural de Paris. Saint-Hilaire interessava-se por tudo que parecesse útil ou agradável aos homens comuns de todas as nações, das práticas agrícolas às plantas medicinais, do estudo das pragas à qualidade dos solos, dos fenômenos climáticos aos hábitos locais. Ele visitou as províncias araucarianas, de São Paulo ao Rio Grande, o que lhe rendeu as obras: Viagem à Santa Catarina, Viagem à Comarca de Curitiba e Viagem ao Rio Grande – trabalhos que mereceram grande atenção na Europa.
     Ainda na década de 1820 ocorreu outra importante iniciativa científica na Araucária, a expedição do Barão de Langsdorff, que refez o antigo trajeto das monções, da vila de Porto Feliz, até Cuiabá, seguindo depois para o Norte. Langsdorff fizera pesquisas no litoral catarinense, em 1804, mas foi em 1825 que iniciou sua audaciosa expedição pelo interior da Araucária. Ele reuniu uma notável equipe de especialistas, que contava com os artistas Rugendas, Thomas Ender, Aimé-Adrien Taunay, além do médico Carlos Engler. Rugendas abandonaria o projeto no início para realizar sua própria viagem ao Mato Grosso do Sul.
     Como os antigos tropeiros, a expedição seguiu pelos rios Tietê, Paraná, Miranda e Paraguai, até dar em Corumbá. Dali subiu o rio Cuiabá e seguiu para o Norte. Langsdorff chegou a Cuiabá sofrendo um colapso mental, pelo excesso de trabalhos e fadigas da expedição, mas uma rica literatura científica foi produzida nas décadas seguintes, incluindo os escritos dos demais membros da equipe. Até hoje essa expedição é considerada um marco na pesquisa geográfica sul-americana do século XIX.
     O francês Antoine Florence, membro da expedição de Langsdorff, se radicou depois na cidade de Campinas, celebrizando-se como tipógrafo, litógrafo, inventor e até fotógrafo (inventou, em 1833, um método fotográfico semelhante ao criado na França, na mesma época, por Mondé Daguerre).
     Enquanto a equipe de Langsdorff passava por apuros no Mato Grosso do Sul, os paulistas fundavam uma faculdade! Com a separação entre Portugal e o Império Americano, o costume de enviar jovens para estudar na Universidade de Coimbra estava prejudicado. A ruptura política impunha a necessidade de ser criar faculdades no Brasil.
     A ideia inicial, naturalmente, foi a fundação de uma faculdade no Rio de Janeiro, mas surgiram vozes discordantes. Após debates acalorados, venceu a proposta de serem abertas duas faculdades, uma na Araucária e outra no Brasil, em locais de fácil acesso, custo de vida barato e pouca agitação. Olinda foi escolhida para o Brasil e, para a Araucária, São Paulo. A proximidade da Escola de São Vicente, o fácil acesso para as cidades mineiras e até seu clima ameno, “europeu”, contribuíram para a escolha da cidade.
     A Faculdade de Direito de São Paulo foi fundada em 1827, provocando uma pequena revolução cultural na província. São Vicente perdeu a primazia para a capital e a instrução básica ganhou novo impulso, com a procura de jovens em busca de preparação para cursar a faculdade. De toda forma, como o primeiro Mestre a ser contratado para lecionar na Faculdade do famoso Largo de São Francisco veio da escola vicentina fundada por Mestre Leonardo Nunes, não seria incorreto concluirmos que a Faculdade de São Paulo foi a sucessora direta da Escola fundada por D. Henrique, em Sagres. A aula inaugural ocorreu em 1º de março de 1828. Como única instituição de ensino superior da Araucária, a Faculdade de Direito de São Paulo funcionaria como um celeiro de líderes políticos, de empreendedores e de escritores.
     A cidade fora, até então, pouco mais que um núcleo de emigrantes para o interior, uma cidade que, quase sozinha, incorporara às fronteiras do reino da Araucária, no dizer de Saint-Hilaire, “regiões mais vastas do que muitos impérios”. São Paulo, que nascera a partir de um colégio jesuíta, se tornava subitamente, com a Faculdade de Direito, o principal centro intelectual da nação.

IV. As Pedaladas Fiscais de D. Pedro I

     Custear a longa e inútil Guerra da Cisplatina já havia comprometido profundamente as contas do Tesouro Real. Antes, a repressão aos levantes armados em favor de D. João VI e a guerra contra os republicanos nordestinos de 1824, tudo com ampla participação de mercenários, também haviam custado verdadeiras fortunas para um império nascido de improviso, quase sem Forças Armadas e com um tesouro real raspado pelo último soberano.
    Outro motivo para a crise imperial foi o imperador levar o Império a assumir uma dívida de dois milhões de libras esterlinas que Portugal tinha com a Inglaterra, só para que os ingleses reconhecessem, em 1825, que D. Pedro já era imperador do Brasil e da Araucária. Isso aconteceria gratuitamente, no ano seguinte, com a morte do moribundo D. João VI, mas o que eram dois milhões de libras esterlinas?
     A política externa do imperador era outra fonte de graves desvios dos recursos reais. Em 1826, com a morte do pai, D. Pedro I herdou o trono português. Por alguns dias, os Reinos Unidos de Portugal, Brasil e Araucária estiveram restabelecidos, mas a oposição no Brasil obrigou D. Pedro I a passar o trono português para sua pequena filha, Da. Maria da Glória. O irmão de D. Pedro I, D. Miguel, reuniu um exército e tentou assumir o trono. Então D. Pedro I passou a usar os poucos recursos do Tesouro Americano para bancar um exército em Portugal a favor de sua filha – outro absurdo contábil que a Assembleia Geral brasileira, submissa, aprovou. Os gastos com as tropas do Exército haviam crescido enormemente, por conta das eternas guerras com as quais o imperador se envolvia – no Norte, no Nordeste, na Cisplatina. Mas mesmo após 1828, com a pacificação, as tropas foram mantidas, inativas e dispendiosas. Por fim, os próprios gastos pessoais de D. Pedro I exorbitavam todos os limites razoáveis a uma monarquia que se dizia em pleno ajuste fiscal.
     A inflação, como uma febre econômica, voltou a subir, junto com a dívida pública e a queda da atividade produtiva. Tudo que D. Pedro I sabia dizer era que “a crise externa na Europa estava afetando temporariamente o desempenho econômico imperial, mas que ele era otimista e tinha plena convicção de que poderíamos sair dessa, juntos, como já havíamos feito em tantas outras crises do passado, e que os pessimistas não iriam conseguir tumultuar o quadro político”.
     Em fins da década de 1820 a imprensa já tinha uma forte presença em São Paulo. Os dois periódicos diários que disputavam a preferência dos leitores paulistas eram O Farol Paulistano, fundado por José da Costa Carvalho, um jornalista brasileiro radicado na capital paulista e o Observador Constitucional, criado pelo italiano Líbero Badaró.
     Com seu jornal, Badaró divulgou a queda de Carlos X, o imperador francês, a partir de grandes protestos nas ruas de Paris. Seus artigos circularam pelas principais cidades do Império e foram vistos como um prenúncio da queda do próprio D. Pedro I. Em São Paulo, estudantes da Faculdade de Direito promoveram manifestações para celebrar a queda do “tirano francês”, o que levou o ouvidor Cândido Japiaçu a processar alguns deles. Badaró publicou artigos em defesa dos acusados. Logo depois, em 20 de novembro de 1830, o jornalista foi assassinado. Antes de morrer, Badaró proferiu uma célebre frase: “morre um liberal, mas não morre a liberdade”.
      A repercussão foi imensa. Mais de cinco mil pessoas foram ao seu enterro. Para a época, aquilo era um enorme Fora Pedro! Era a primeira vez que uma grande manifestação de rua não era liderada pelos vermelhos. Protegido pelo imperador, o ouvidor saiu impune, mas a popularidade de D. Pedro I despencou para menos de 10% e os súditos que achavam o governo de D. Pedro I “ruim ou péssimo” já passavam de dois terços da população. Em janeiro de 1831, tentando controlar os paulistas, o imperador nomeou Aureliano Coutinho como novo presidente da província paulista. Homem de confiança do imperador, Aureliano Coutinho era, até antão, uma figura desconhecida. Mas isso iria mudar nos anos seguintes, como veremos à frente.
    Numa viagem do imperador a Minas Gerais, feita em fevereiro de 1831, várias cerimônias fúnebres pela morte de Líbero Badaró foram realizadas, e os sinos das igrejas de Ouro Preto tocaram em homenagem ao jornalista morto. Mais uma vez, eram os azuis que lideravam aqueles atos, para surpresa dos governantes. D. Pedro I retornou à Corte em 11 de março e seus partidários portugueses organizaram uma festa para homenageá-lo, no dia 13, mas os populares da capital, exaltados a décadas pelas lideranças da maçonaria vermelha fluminense, promoveram enormes conflitos de rua, conhecidos como a Noite das Garrafadas, marcada pela ação dos violentos black bottles. Sem sustentação na Assembleia nem entre os oficiais do Exército, cinco meses após o início dos protestos, D. Pedro I acabou tendo que abdicar do poder. A oposição, enfim, podia festejar.

Capítulo VIII. A Regência Moderada (1831-1837)
I. A Regência Trina e o Ministério Feijó (1831-1835)

     A abdicação de D. Pedro I, em abril de 1831, provocou a criação de uma Regência Trina, conforme estava previsto pela Constituição do Império. Em caráter de urgência, os deputados então presentes na capital elegeram uma Regência Trina Provisória, cujo principal nome vinha da pequena bancada araucariana: o paulista Nicolau Vergueiro, um dos exilados de 1823. Os regentes restabeleceram o chamado “Ministério dos Americanos”. Pouco depois foi eleita a Regência Trina Permanente, que contava com o nome de José da Costa, editor do Farol Paulistano – numa clara homenagem póstuma a Líbero Badaró. Essa regência durou até 1835 e teve como principal nome à frente do Executivo, o paulista Diogo Antônio Feijó, Ministro da Justiça.
     Nesse período, apesar da oposição dos Restauradores (que defendiam a volta de. D. Pedro I e do absolutismo) e dos Exaltados (republicanos e todo tipo de heróis dos pobres e oprimidos), eram os Moderados que formavam a maioria na Assembleia e davam os rumos do Império Americano.
     A Araucária voltava, na Regência, a participar diretamente do governo sob o qual estava submetida, o que não acontecia desde 1815, quando abrira mão de sua soberania.
     O Ministro Diogo Antônio Feijó, à frente do Executivo, era uma liderança diferenciada no cenário político. Abandonado pelos pais muito novo, foi criado por padres e conduzido ao sacerdócio. Muito estudioso, tornou-se professor convidado na Escola de São Vicente e, pouco depois, recebeu o título de Mestre (o último daquela instituição). Com fama de “maior estudioso da Araucária”, elegeu-se para deputado nas Cortes portuguesas, em 1821. Em Portugal Feijó ganhou renome como veemente defensor de seu país e voltou à Araucária com boa bagagem em política internacional. Com tal preparo, coube a ele liderar o Plano Mil-Réis, estabilizando os mil-réis, demitindo funcionários públicos e dispensando um grande número de soldados, o que lhe rendeu os primeiros “Fora D.A.F.!” por parte da imprensa vermelha, que o acusava de eleitoreiro, liberal e privatista. Mas o Plano Mil-Réis foi um sucesso, a inflação baixou bastante e as contas públicas, profundamente abaladas pelo desgoverno de D. Pedro I, se equilibraram.
     Feijó também aprovou, ainda em 1831, a proibição do tráfico negreiro para o Império. Essa lei, porém, foi sumariamente ignorada pelas autoridades brasileiras, apesar das pressões inglesas. Em 1833, por exemplo, as ilhas do Caribe conseguiram forte redução das taxas alfandegárias para exportar açúcar para a Inglaterra (sendo o açúcar, na época, a principal mercadoria de exportação do Brasil, mas nada disso convencia os traficantes ou os cafeicultores fluminenses). Além disso, como o fim do tráfico negreiro coincidia com os interesses ingleses, Feijó passou a ser bombardeado pelos vermelhos de “submissão ao imperialismo inglês”.
      Em 1832 os moderados conseguiram aprovar o Código de Processo Criminal, que instituía a figura do juiz de paz, eleito localmente, com funções jurídicas e policiais. Isso conferia certa autonomia regional para o Poder Judiciário, então bastante submisso ao governo central. Feijó também criou a Guarda Nacional, uma força policial ligada diretamente ao Ministério da Justiça, estando suas tropas locais subordinadas ao juiz de paz. Ainda que elitista, a Guarda Nacional procurava disciplinar um estado de justiça privada já vigente em todo interior do império e lançar as bases de um sistema civil de segurança pública autônomo nas províncias.
     Finalmente, em 1834 foi aprovado o Ato Adicional, que criava as Assembleias Legislativas Provinciais (a maior reivindicação dos moderados). Apesar do presidente da província continuar sendo nomeado pelo governo imperial, agora cada província contaria com sua própria casa legislativa (antes da unificação, na Araucária só existia uma Assembleia Nacional. Nas províncias do Brasil, nem isso). Assim, em apenas três anos de Regência liberal, as províncias da Araucária e do Brasil passaram a contar com instituições próprias na segurança pública, no Judiciário e no Legislativo. Além disso, o Ato Adicional instituía um tipo quase republicano de governo: a Regência passaria a ser única e eleita para um mandato de quatro anos!
     As eleições regenciais de 1835 foram, sem dúvida, as maiores realizadas na América do Sul, em todo século XIX. A disputa se concentrou em dois favoritos: Holanda Cavalcanti e Diogo Feijó. O primeiro era pernambucano da cidade de Garanhuns (onde ainda existe o imponente Centro Cultural Alfredo Leite Cavalcanti), membro de uma das mais antigas e poderosas oligarquias do Nordeste. Feijó, um homem sem parentes, sem posses, de ideias independentes. Teve porém o apoio da Sociedade Defensora (como veremos abaixo) e, por fim, derrotou Cavalcanti por 2862 a 2251 votos. Enquanto Feijó foi muito bem votado nas províncias da Araucária (Rio Grande, Santa Catarina e São Paulo), além de Minas, Goiás e Mato Grosso, Cavalcanti liderou no Rio de Janeiro e nas províncias nordestinas, da Bahia ao Ceará. Naquela época, a Araucária ainda conseguia vencer uma eleição geral.
     O período da Regência Moderada coincidiu com uma novidade importante na cultura política do Império: a Sociedade Defensora. Em 1831, o que havia começado como uma grande manifestação pública e pacífica estava caminhando para quebra-quebras sem lideranças ou posições claras. As notícias da violência nas ruas do Rio de Janeiro e o surgimento dos black bottles (que contavam até com advogados pagos pela maçonaria vermelha) motivaram a fundação, na cidade de São Paulo, da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional, ainda em março de 1831. Seu objetivo era garantir que as críticas ao imperador fossem conduzidas dentro dos limites legais, valendo-se principalmente de petições assinadas e palestras públicas. Diante dos meios de comunicação social existentes naquela época (correios, impressos e encontros), aquela era a mais eficiente rede de livre interação entre cidadãos em torno de causas comuns. Ao contrário da maçonaria, a Sociedade Defensora pretendia agir à luz do dia, dentro da lei, aberta a qualquer um que apoiasse seus estatutos (inclusive às mulheres, segundo um artigo acrescentado no início de 1832).
     De São Paulo, a Sociedade Defensora se espalhou pelo interior. Entretanto, dois meses depois, a ideia foi copiada pelo deputado brasileiro Borges da Fonseca, que vivia no Rio de Janeiro. Ele criou uma entidade com o mesmo nome e os mesmos estatutos, pouco depois liderada por Evaristo da Veiga. Estando na capital do Império, a entidade fluminense logo se sobrepôs à paulista, como núcleo nacional da organização. Essa transferência de comando para o Rio de Janeiro inibiu as possibilidades iniciais da entidade, nascida antes de tudo para se contrapor ao excessivo poder do governo imperial. Ainda assim, seu sucesso foi enorme. De longe, a Sociedade Defensora foi a organização política de maior abrangência nacional do período. Seus manifestos chegavam aos jornais e às Câmaras Municipais de todo país. Seus opositores (os conservadores e os maçons vermelhos) chegaram a criar entidades concorrentes, mas sem o mesmo sucesso.

II. Novos Progressos da Araucária (1815-1835)

     No início do Período Regencial, enquanto o governo central enfrentava uma crise financeira gigantesca, a economia araucariana passava por um bom momento. Já na década de 1820, a cultura do café chegou a São Paulo pelo litoral, vindo de Parati, e avançou por Ubatuba, Caraguatatuba e São Sebastião. Nos anos de 1830 os cafezais já eram encontrados no vale do Paraíba paulista, onde as condições naturais eram muito propícias: solos orgânicos, temperatura média de 20º C, altitude entre 300 e 900m. A mão de obra escrava era barata, havia terra disponível (muitas vezes envolvendo a expulsão de antigas aldeias indígenas) e o escoamento da colheita podia ser feito por carros de boi e tropas de mulas até os portos da região. Sem nenhuma preocupação com os efeitos do desmatamento, as fazendas eram abertas em sucessão, num danoso avanço conhecido como “a marcha do café”.
     No mercado externo o café atingia bons preços graças ao aumento do consumo – reflexo do crescimento demográfico europeu e norte-americano e aos progressos da navegação. Os norte-americanos, desprovidos de colônias tropicais, se tornaram os principais clientes dos cafeicultores paulistas e logo a cafeicultura se tornaria a principal atividade econômica da Araucária. Atingindo o vale do Paraíba paulista na década de 1830, os cafezais foram trazendo o progresso para vilas como Bananal, Taubaté e Guaratinguetá. Taubaté, inclusive, se tornara o segundo maior centro urbano da província paulista, atrás apenas da capital.
     Inicialmente escravos eram adquiridos em Minas Gerais e Rio de Janeiro, mas logo o tráfico negreiro (mesmo ilegal), passou a fornecer os escravos necessários à lavoura. Os negros capturados na África, ao chegarem aos portos de Salvador e do Rio de Janeiro, eram transferidos para barcos menores e vendidos como escravos nacionais, ainda pagando uma taxa de 10% ao governo imperial, que, apesar das iniciativas de Feijó, pouco se interessava em averiguar a procedência daquela “carga”.
     O café não beneficiou apenas a província paulista. Como todo o transporte do café era feito por tropas de muares, milhares de animais passaram a ser adquiridos das províncias ao sul, por antigas rotas de tropeiros que terminavam em Sorocaba, fomentando outra vez a integração socioeconômica da Araucária.
     Eram duas as principais rotas comerciais do Rio Grande para São Paulo. A primeira, o Caminho das Missões, partia de São Borges, na fronteira gaúcha com a Argentina, passava por Chapecó, no interior catarinense e seguia até Ponta Grossa, no Paraná. A outra, o Caminho de Vacaria, partia da vila de Vacaria, no nordeste gaúcho, e seguia para o norte, atravessando o território catarinense, chegando a Ponta Grossa. Dali, uma única rota levava à Sorocaba, cruzando o interior paulista. Junto com o comércio de muares, essas rotas estimularam a exploração da erva-mate na região, promovendo seu desenvolvimento. A vila de Curitiba, por exemplo, não contava com 250 residências até o final da década de 1820, mas uma década depois esse número já havia dobrado, e continuaria crescendo. Nova Angra (com seu porto livre de impostos desde 1810) também progrediu nesse período, elevando-se a capital catarinense a partir de 1823.
      No Mato Grosso do Sul, uma expedição colonizadora abriu novas fazendas, na década de 1830, que logo dariam origem à vila de Três Lagoas, próxima ao encontro dos rios Tietê e Paraná. Na mesma época, os povoados já existentes de Miranda, Corumbá e Coxim receberam novas levas de colonos em busca de boas terras de pastagem, incrementando a colonização sul-mato-grossense.
     O Rio Grande, temporariamente pacificado, estava conhecendo um novo ritmo de desenvolvimento da pecuária, produtora de charque e de couro. Em Pelotas, a indústria do charque encontrava um novo impulso, apesar da alta carga de tributos imperiais sobre essa atividade. Para incentivar o povoamento da região, o governo imperial havia subsidiado a imigração europeia, e os primeiros colonos alemães chegaram em 1824, para fundar a Colônia de São Leopoldo (uma homenagem à imperatriz brasileira, Dona Leopoldina), junto ao rio dos Sinos, próximo de Porto Alegre. Novas levas de alemães continuaram a chegar, superando os 5300 colonos em 1830. A colônia alemã se notabilizou pelo fornecimento de frutas, leite e carne de porco às cidades litorâneas gaúchas e catarinenses, além do progresso de sua hábil produção artesanal, base da vocação industrial da província.
    Por fim, até mesmo a metalurgia ganhou um novo impulso, com a reabertura da Fábrica de Ferros de Sorocaba, em 1835, sob a direção de um engenheiro alemão trazido da Europa, o Sr. Carl Blowm.

Capítulo VIII. O Império...

     Finalmente os outros membros da Resistência começaram a acordar e o café foi posto.
     - Queria ligar para minha mulher.
     - Isso é impossível, Armínio, todos os telefones do Mundo-Brasil estão grampeados. Daremos um jeito de você passar em casa mais tarde. Antes, porém, vamos procurar os membros da Ordem dos Respeitadores.
     Em pouco tempo estavam no caminhão, a caminho da Igreja de Santa Bárbara, na rua D. Pedro I. Para não assustarem os possíveis confrades, o caminhão parou a algumas quadras e apenas Armínio e Virgínia seguiram até lá, a pé – o que significava expor-se um pouco aos raios ultrachatoniônicos. Mas em poucos minutos chegaram à igreja, que de fato possuía uma sala nos fundos, aberta.
     Não encontraram, porém, nenhuma reunião. Apenas uma velhinha, simpaticíssima, que parecia estar tirando o pó dos bibelôs ali expostos.
     - Com licença – arriscou Virgínia – a senhora sabe se há alguma reunião marcada para esse local, nesse horário? Parece que nos deram uma informação errada.
     - Não tenho certeza, minha querida, mas fiquem à vontade, a igreja fica aberta para visitas a manhã inteira e a missa será às doze horas. Mas a propósito, de qual informação vocês estariam falando?
     - É algo sobre um quadro do Pedro Américo – respondeu Armínio.
     - Um quadro? Bem, temos alguns quadros aqui na Igreja. Nosso pároco é um apreciador de arte, sabe? Aquele quadro de Daniel na cova dos leões, não é de cortar o coração? Venham meus filhos, se vocês gostam de quadros, venham comigo.
     Armínio e Virgínia ficaram um pouco confusos, certamente não havia nenhuma reunião da Ordem dos Respeitadores para acontecer ali. Seguiram a senhorinha mais por educação e chegaram a uma saleta bem bagunçada, entulhada de caixas e objetos religiosos onde mal cabiam os três.
      - Oh, oh, oh, perdoem-nos essa bagunça, meu Deus! Se o padre Francisco olhar isso eu levo uma reprimenda daquelas, oh, oh, oh. Mas vejam ali, na minha opinião, esse quadro da virgem Maria recebendo a visita do Anjo Gabriel... não há coisa mais bonita! Eu fico emocionada só de olhar.
    - Sim, minha senhora, é muito bonito. – Disse Virgínia. – Mas não queremos incomodá-la. Vamos dar mais uma olhada na igreja e, talvez, ficar para a missa.
    Antes de sair, porém, Armínio reparou numa ilustração um tanto empoeirada, no canto de uma estante cheia de outros papeis e objetos. Tratava-se de uma ilustração da qual ele se lembrava ligeiramente dos tempos de escola, onde um líder grego parecia fazer um discurso diante de outros homens, numa espécie de praça ou escadaria. Ele aproximou-se e notou que a ilustração, na verdade, era a capa de uma velha apostila. A velhinha silenciou subitamente e sorriu.
     - O que é isso? Posso ver?
     - Ora, são só uns papeis velhos... Eu nem sei direito.
     Mas Armínio pegou a apostila, datilografada em letras de máquina antiga. No título, Epístola aos Atenienses. A ilustração, de fato, era um clássico desenho do francês Phillipp Von Foltz chamado A Era de Péricles, comum em antigos livros didáticos de História, mas hoje considerada antiquada e politicamente incorreta.
     - Oh, meus queridos! Vocês encontraram! Sejam bem vindos! Então você é o Armínio, não é?
     Virgínia se admirou.
     - A senhora o conhece?
     - Nós os estávamos aguardando, meus filhos. Sabíamos que vocês iriam aparecer logo. Eu sou uma zeladora da Ordem dos Respeitadores, e há muitos séculos preservamos a verdadeira mensagem evangélica, centrada toda nesta carta. Peguem, vocês precisam lê-la.
     - Essa é a verdadeira Epístola aos Atenienses?
     - Sim, e estou certa que vocês saberão o que fazer com ela. Eu sou Maria Ernestina Feijó, descendente do padre, oh, oh, oh. Vocês sabem, Diogo Feijó sempre foi contra o celibato, e não era à toa. Ele e a Marquesa se conheceram nos tempos da Escola de São Vicente... Se aquelas curvas da estrada de Santos falassem, oh, oh, oh, mas estamos num local sagrado, depois eu conto essa história, oh, oh, oh. Mas, a propósito, não querem esperar um pouco para tomar um café com o padre Francisco? Ele sempre toma seu café as quinze para as nove, e fica muito feliz quando tem visitas.
     Os dois agradeceram muito, prometeram retornar para ouvir as histórias do padre Feijó e voltaram com a valiosa epístola. Ainda no baú do caminhão o grupo se reuniu para ouvir a leitura emocionada do Dr. Walblastenn.

Epístola aos Atenienses

            Aqui em Israel a coisa ta complicada. Andei por todo o reino defendendo minha proposta de mais respeito às pessoas, e nos últimos dias fizemos atos em Jerusalém pedindo “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”, pra ver se aliviam nos impostos. A Operação Lava a Égua até agora não prendeu ninguém e sobre o escândalo do Trigão, Pilatos só sabe dizer que lava as mãos. A turma do Barrabás fica batendo na tecla de que “se eu não fui bom para Nazaré, não serei bom para Israel”. Parece que nossa derrota em Nazaré foi o maior erro de nossas pregações e pode custar caro no final. Mas o pior é que quem vai presidir a apuração da aclamação popular é o Caifás, aquele juiz presidente do Sinédrio, barrabista doente. Dizem que esse sistema de aclamação é muito bom por dar o resultado na hora, mas e se eu quiser auditar o resultado? É por isso que nosso sistema de votação é motivo de piada aí em Atenas. Pra complicar ainda mais, eu soube que o Barrabás ofereceu 30 moedas de prata a um dos meus discípulos, o Joaquim Levita, para passar para o lado dele, a fim de dar um ar de seriedade àqueles zelotas aloprados. Será que o Joaquim seria tão traíra assim? Sei não, mas uma voz lá do alto me diz que isso não vai acabar bem pra mim.
     Meu conselho a vocês de Atenas é que preservem suas instituições democráticas e o livre debate na Ágora. E vão por mim, não votem nos candidatos dos tiranos nem nos seus aliados, os oligarcas. São todos joio do mesmo saco. Poucos anos atrás pediam as cabeças uns dos outros e agora estão todos dividindo palanques, mancomunados para mamar nas tetas do orçamento ateniense. Vejam aqui a Salomé, que pedia a cabeça de João Batista numa bandeja e hoje é ministra da agricultura. É um vale-tudo!
     Respeitem uns aos outros assim como eu vos respeitei. Que cada um cuide da sua vida e deixem meu Pai se virar com os pecados alheios. Andei sabendo que tem gente por aí dizendo que foi enviado por mim, que ficaram uns serviços pendurados e coisa e tal. Pois saibam que minhas contas estão todas pagas e eu posso morrer hoje – valha-me Papai – que não deixo nada em aberto. Então se aparecer por aí algum tesoureiro falando em meu nome, saiam fora que é treta.
     Então estamos conversados. O Respeito ao próximo é a base de uma polis decente. Para reerguer a Grécia, comecem cuidando da polis. Assim que der eu apareço no Baixo Pireu pra tomar um hidromel com a galera. Enquanto isso, tomem um vinho e comam um pãozinho de alho na grelha em memória de mim, pela nossa nova e eterna aliança. Se bem que, em verdade vos digo, depois do escarcéu com os vendilhões, não tô querendo nem ver um cálice por perto.
     Madalena ta mandando um beijo pra todo mundo.
     Segue em anexo um autorretrato desenhado com o mar da Galileia no fundo, comigo e João abraçados dando um V da vitória, que desenhamos quando lá estivemos no último verão.

Com muito Respeito,
Jesus de Nazaré.

P.S.: Eu profetizo que, no ano de 2015 depois do meu nascimento, pelo final de agosto estourando, um certo Armínio Lemos, casado, araucariano, natural de Guarapuava, Paraná, auxiliar de limpeza, RG 085..., membro de uma certa Resistência contra um certo Governo, aparecerá numa certa igreja de Santa Bárbara, numa certa cidade chamada Curitiba, (mas que na verdade se trata de Curitiba do Norte) atrás dessa mensagem. Em verdade eu declaro que este dito Armínio encontrará o que procura no prédio do Arquivo Municipal (o prédio novo, onde funcionava a Tesouraria do Planejamento), na dita cidade, no setor de Almoxarifado, sala 409, num armário perto da janela, terceira gaveta à direita (a chave estará num copinho branco, no beiral da dita janela).

     A profecia da Epístola aos Atenienses ainda precisaria ser enviada a uma equipe de especialistas em Exegese Bíblica para uma análise mais aprofundada, mas a urgência exigia que o grupo se contentasse com o espírito geral do que Jesus estava tentando dizer. Valendo-se de seu crachá de funcionário da limpeza, Armínio foi ao Arquivo Municipal, seguiu as instruções da profecia (pelo menos o que ele conseguiu interpretar antes de consultar os teólogos) e encontrou... a Lei Orgânica Municipal de Curitiba?! Ele conferiu a sala, o armário, a gaveta – estava tudo certo. Mas o que significava aquilo? Voltou cabisbaixo, pensando na decepção do grupo da Resistência. Na saída, porém, Virgínia passou apressada com o caminhão, chamando-o.
     - Mas o que houve agora?
     Armínio entrou e os dois saíram pelas ruas da cidade.
     - Seu Stanislaw estava sendo rastreado! Vários professores atacaram a garagem, estamos em perigo, venha.
     - E a Zion?
     - As brocas perfuradoras da Receita Federal chegarão lá em questão de horas. Todas as bases da Resistência estão sendo abandonadas. Vamos ter que partir para o plano de urgência.
     - E o que é isso?
     - Uma grande mobilização. Com ou sem raios ultrachatoniônicos, nossa única alternativa agora é deflagrarmos uma mobilização maciça contra a Máquina e tentar emperrá-la até um nível de impasse, a fim de forçarmos um grande debate, talvez um impeachment. Mas e lá no Arquivo, o que conseguiu?
     - Acho que a profecia estava errada, lamento. Tudo que tinha na gaveta era um velho exemplar da Lei Orgânica da cidade.
     - A Lei Orgânica Municipal?! Isso não vai ajudar muito agora.
     - E para onde estamos indo?
     - Para a Cantina do Carioca. Passaremos a tarde lá, é nosso último ponto de encontro. Na verdade o plano de deflagração envolve os jogos da Chapecoense, e o time jogará hoje, no fim da tarde.
     - Desculpe – interrompeu Armínio. - Chapecoense? Não entendi.
     - Nossa organização infiltrou alguns atletas altamente treinados na equipe daquele clube, para que ele consiga se manter na Série A do Brasileirão e servir como referência de mobilização da Resistência. Além de nossos próprios clubes, todos os membros da Resistência e araucarianos despertos que vivem no Polígono participam de pequenas torcidas locais da Chapecoense como uma forma discreta de nos mobilizar. Foi uma iniciativa do governo araucariano – a Confederação Araucariana de Futebol é sediada naquela cidade. Até a cor do clube ajuda, o verde com desenhos brancos.
     - Mas isso não pode dar problema?
     - E por que daria? No Nordeste não existe uma imensa torcida da “nação rubro-negra”? Fizemos da Chapecoense o primeiro símbolo público de nossas esperanças, a primeira brecha no Mundo-Brasil. Vamos avaliar quem escapou do ataque governista, reagrupar nossas forças e avaliar o que podemos fazer.
     Quando chegaram à cantina, ela estava sem nenhum freguês. Só seu Antero, lá no fundo, preparava alguma coisa. Armínio pegou uma água no freezer e se sentaram. De toda forma, Armínio tinha mesmo algumas perguntas que não pudera ainda fazer no meio de tanta correria.
     - Você também foi abduzida né?
     - Sim. Seu Stanislaw me despertou, como você.
     - Então você não se lembra de nada a respeito da Araucária?
     - Eu não lembrava, mas estive lá por dez meses, sendo treinada pelo nosso governo para cooperar com a Resistência brasileira e tentar despertar os araucarianos que vivem imersos no Mundo-Brasil.
     - Mas por que nosso governo não promove logo uma guerra contra a Máquina e nos resgata a todos?
     - Enquanto os raios ultrachatoniônicos estiverem sendo emitidos, seria muito complicado. Como resgatar pessoas que nem se lembram quem são? Nossa única chance é cooperar com a Resistência. De qualquer forma, as pessoas já estão começando a despertar. De dois anos pra cá tem sempre aparecido gente nova na Zion.
     - Dois anos? E o que houve?
     - As passeatas de 2013. Lembre-se, a Máquina estava no controle desde 2003, produzindo as ilusões do Mundo-Brasil. Vivíamos sob a melhor conjuntura internacional da história republicana. A presidenta era mostrada indo à Europa dar aulas de política econômica a embasbacados chefes de Estado. Lula era apontado para o prêmio Nobel e incensado pelo presidente dos EUA. Um “mapa da fome” que nem os petistas jamais haviam ouvido falar de repente apareceu na ONU só para dizer que o Brasil saiu dele. Dilma, a ‘faxineira’, a ‘gestora’, a ‘técnica’ já atraía setores da classe média e prometia superar até o lulismo velho-republicano. A ditadura moral do socialismo atingiu níveis estratosféricos, sobretudo nos setores populares. Seu maior adversário, o “picolé de chuchu”, não ameaçava ninguém, derrotado por uma ministra invencível, repaginada, devota de Nossa Senhora, sem histórico de governança e de um passado “esquisito” mas que a colocava como heroína da “luta contra a ditadura” e mãe do PAC. O povo nunca soube o que significa PAC mas a imagem de mãe agradou. Na Venezuela, Chaves ainda era o bom líder, abarrotado de petrodólares, que distribuía bondades para os fracos e oprimidos. Até nos programas de humor, a presidenta, ao invés de ser alvo de piadas como todo político, aparecia como uma simpática condutora de metrô.
     Então, em 6 de junho de 2013, ocorreram protestos de um desconhecido MPL, meros distúrbios violentos de mais um grupo radical como tantos outros, sob o apadrinhamento da Máquina e a indiferença da nação. A imprensa ainda falava em vandalismo.
     Foi quando nossos espiões conseguiram sabotar o sistema de irradiação ultrachatoniônica, no dia 10 de junho, uma segunda-feira. No dia seguinte, a polícia militar foi vista na TV agredindo centenas de pessoas comuns, inexperientes em manifestações. Aquelas cenas foram vistas por uma classe média (não foi um protesto “popular” em sentido abstrato) previamente acuada por um partido totalitário gramsciano, encastelado no poder, nas universidades, na mídia social, na imprensa, nos tribunais, no Congresso, nas estatais, nas embaixadas, nas escolas.
     É curioso notar que a revolta não foi direcionada claramente contra o governador de São Paulo – afinal a autoridade que comanda a polícia paulista. Os cacetetes e sprays foram vistos como “sinais de uma ditadura que se avizinha”, de um poder de Estado totalitário que já começava a querer tornar comuns as agressões policiais contra cidadãos desarmados. Uma parcela da nação – não o “povo”, repito – foi tomada de um temor profundo: “estamos às portas de uma ditadura!” Esse temor foi compreendido instantaneamente pela classe média em todo país, e a revolta ganhou as ruas, de Norte a Sul (quero dizer, os araucarianos do Polígono que acreditam estar vivendo no Sul). Nas pequenas e médias cidades, não havia black blocs nem militantes socialistas, só gente que não costuma protestar. E nas grandes cidades, não foram os radicais que invadiram as manifestações, mas ao contrário, multidões anônimas invadiram os protestos violentos e os transformaram em atos públicos. A destruição das bandeiras do PSTU e outras semelhantes foram o primeiro sinal de dissonância. Pessoas lembraram a queda do Muro de Berlim, os protestos de Pequim e a Primavera Árabe.
     Os radicais tentaram promover um “sentimento difuso no ar”, mas tudo que conseguiram foi a explícita antipatia ao partido governista. Dado o recado, não havia mais o que fazer “nas ruas”. Todas as tentativas esquerdistas de se esticar o movimento numa versão socialista fracassaram miseravelmente. Era hora de retornar para casa e deixar que a polícia cuidasse da turba do quebra-quebra.
     O mais surreal, entretanto, foi a tentativa do partido governista de apresentar aqueles imensos protestos republicanos como um grande ato socialista clamando por mais aparelhamento das instituições! Quanto aos radicais, após verem que a festa que montaram para os mais pobres – seus clientes – foi invadida pela “odiosa classe média”, desistiram por algum tempo de tentar organizar protestos de rua com “pauta difusa”, como adoravam fazer até então. Pela primeira vez, eles passaram a temer as ruas. A esquerda foi pega tão de surpresa que só conseguiu ver nas Jornadas de Junho um movimento fascista – única explicação que encontraram na cartilha do partido. Um filósofo consagrado da USP do Norte, palestrando num Encontro Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, teve o descalabro de afirmar que o povo “perdera a capacidade de esperar” e que a esquerda brasileira, “obrigada a governar e a fazer conchavos à portas fechadas” estava em posição desvantajosa – “assimétrica” foi o termo usado – para responder a “uma direita livre para apresentar seus princípios sem o fardo da governança”. Na esquerda chamam isso de filosofia.
    Armínio ouviu aquela análise política e ficou feliz em saber que a Resistência estava tendo algumas vitórias. Ficaram quietos alguns instantes, até que Armínio arriscou retomar a conversa noutra direção.
     - E como é a Araucária? Você disse que esteve lá por dez meses?
     - Isso. Retornei para o Polígono ano passado para cooperar com a Resistência, e aqui estou eu de novo.
     - Então me fale de lá.
     - A Araucária é nosso país, isso é o mais importante. Você não vai demorar para conhecê-la e compreendê-la, porque, na verdade, você já a conhece, só não consegue se lembrar claramente. O que você gostaria de saber?
     - Bem... Não sei... Somos um bom país?
     - Que pergunta subjetiva! Tem coisas boas e ruins, mas posso dizer que somos um país do qual nos orgulhamos.
     - Sério?
     - Isso te surpreende?
     - Muito. É um sentimento que os... brasileiros... Não estão nada acostumados. Mas e os políticos de Araucária? Vocês se orgulham dos seus governantes?
     Virgínia sorriu. Aquela devia ser uma pergunta típica dos recém-despertos.
     - Nós nos orgulhamos dos governados. Os governantes são mais ou menos iguais em todo lugar. Mas eu diria que, como na Araucária damos menos poder aos políticos que no Brasil, é mais comum entre nós que pessoas de bem se interessem pela política. O prefeito de Curitiba, por exemplo, é um executivo licenciado de Blumenau. Interrompeu sua carreira para tentar ser prefeito em Bajé, lá no sul. Foi eleito e fez um belo trabalho. Então foi convidado pelo PSDA à concorrer à prefeitura de Curitiba, e venceu. De fato, está se revelando um bom administrador.
     - Mas que estranho! Então um executivo de Blumenau que foi prefeito em Bagé é agora prefeito de Curitiba? O que ele sabe de Curitiba?
     - Ele nunca havia vindo a Curitiba antes, e este foi um dos pontos fortes de sua campanha. Venceu no primeiro turno.
     - E dá para ser um bom prefeito de uma grande cidade, sem conhecê-la?
     - Se ele fosse candidado em Blumenau, difilmente venceria. Por mais honesto que seja, todas as suas ligações profissionais estão lá, você sabe como é.
     - Entendo... E o que é o PSDA?
     - É o Partido Social Democrático de Araucária, um dos três grandes partidos do país. Os outros são o PL, os liberais, e o PNA, Partido Nacional de Araucária, que reúne o eleitorado mais tradicional. E tem vários outros, uns vinte eu acho.
     - E todos têm direitos iguais nas eleições?
     - É claro. Em Araucária a lei é igual para todos.
     - Então eles têm o mesmo tempo de TV?
     - Refere-se à propaganda gratuita? Ah, isso não existe lá, nunca existiu. Nem fundo partidário. Aqui no Brasil o governo federal possui horários de publicidade para fazer auto-promoção, as estatais gastam milhões para divulgar slogans governistas, as universidades públicas funcionam como imensos centros de defesa do governo financiados pelo Tesouro, fortunas são gastas em verbas publicitárias para manter os órgãos de comunicação reféns do partido governista, grandes centrais sindicais promovem seus candidatos abertamente, apesar de ser uma prática ilegal, existem quase cem mil cargos comissionados distribuídos a cabos eleitorais na União e, é claro, há horários eleitorais e fundos partidários milionários que privilegiam os grandes partidos, conchavados com o Governo. Se conseguirem transformar em criminoso um cidadão que resolva colaborar com a campanha eleitoral de seu vizinho para a Câmara Municipal, aí será o fechamento completo do sistema eleitoral, uma espécie de monopartidarismo estatal disfarçado de democracia.
     - E as doações de campanha na Araucária, o que diz a legislação eleitoral?
     - Legislação eleitoral? Nem temos isso por lá.
      - Como assim? Em nosso país não existe legislação eleitoral?
      - Bem, consideramos que campanha eleitoral é um assunto privado. Nós dois não estamos aqui conversando sobre política? Isso é campanha eleitoral? Acha que perguntamos aos nossos governantes o que podemos e o que não podemos conversar entre nós? Como eu disse, na Araucária não damos muito poder aos governantes.
     Armínio achou aquilo um tanto estranho mas, ao mesmo tempo, ele sentia que, de fato, aquele parecia ser seu país real. Como dissera Virgínia, ele “já sabia daquilo”, só não conseguia enchergar claramente.
     - Então as empresas podem fazer grandes doações eleitorais?
     - Poder elas podem, mas raramente o fazem.
     - Mas por que? Financiar políticos pode ser um bom negócio.
     - Financiar políticos poderosos, você quer dizer. Esse é um dos motivos para não darmos muito dinheiro aos políticos. Se o Governo faz poucos negócios, e todos bem transparentes, por que as empresas gastariam seus lucros com política?
     - Mas me diga, lá não existem esquerdistas?
     - No sentido que você dá à palavra esquerdista, existem muitos poucos. Nosso povo não leva muito a sério a ideia de transferir muito dinheiro e muito poder aos governantes e, de mais a mais, nossa Constituição limita as possibilidades desses partidos. Agora, na Araucária falamos em direita e esquerda, mais como valores pessoais que como política de Estado. Direitistas são os que defendem a importância de se investir, estudar a vida toda, adiar gastos, acompanhar as oscilações da Bolsa... são os “adoradores do deus Investimento”, como dizem seus adversários. Esquerdistas são todos os que acreditam num ritmo de produção mais leve, mais horas de lazer, esportes, família, cultura... São considerados irresponsáveis e infantis por seus adversários. É um pouco como a fábula da formiga e da cigarra. São discussões intermináveis entre os dois grupos. Eu, por exemplo, sou francamente esquerdista lá. Para mim, o desenvolvimento de um país se mede pelo número de horas não trabalhadas. Carpe dien! É o que eu chamo de evolução. O velho Adam Smith, para mim, era um senhor frugal que sonhava com um futuro de muito tempo livre para todos. O capitalismo, até onde eu entendo, é uma eficiente ciência econômica, mas não uma filosofia de vida.
     - Entendo... Mas e a questão da solidariedade, da proteção aos mais pobres?
     - A solidariedade é uma grande virtude! Essa história de que somos todos egoístas foi inventada para se denunciar a hipocrisia dos reis e dos cardeais, que se apresentavam como protetores dos fracos e oprimidos. O mesmo argumento foi usado depois pelos socialistas, e mais uma vez o elogio ao egoísmo foi usado para denunciá-los, mas isso virou uma religião entre alguns republicanos. Denunciar a hipocrisia é uma coisa, negar a própria personalidade é outra. Afinal, até quem denuncia alguma coisa já mostra algum sentimento. Os verdadeiros egoístas estão na praia tomando água de coco e azarando as meninas, e não debatendo com a esquerda. Eu não tenho nenhum problema em assumir minhas preocupações com a sorte alheia, mesmo sob o risco de passar por hipócrita. Agora, daí a fazer disso uma defesa da tirania vai uma distância enorme. Essa é uma opinião bem estabelecida entre os araucarianos, não usamos os governantes para conduzir nossas virtudes. Governos cuidam do básico, cabe a nós fazermos, com nossos próprios recursos, a bondade que julgamos correta.
     - Como assim? O governo da Araucária não tem programas de proteção social?
     - Nenhum, nem sequer estatais. Nossa Constituição veta essas ambições governistas. Quem se sente motivado a ajudar a sociedade, que mobilize recursos entre voluntários. Dinheiro público pertence a todos, o que significa que só pode ser usado para fins gerais. Trata-se de um princípio básico do nosso Estado. Eu tenho o direito de odiar meu vizinho, mas não o de dispor do dinheiro que também é dele para fazer caridade. Para isso, se eu quiser que ele ajude em alguma causa social, preciso bater na porta dele e pedir. Simples assim.
     - Interessante, mas nem estatais?
     - E para que governantes precisam de estatais. Existem milhares de pessoas, todos os dias, tentando criar novas empresas, e um número ainda maior se esforçando para tocar as empresas que já existem. Acredite, boa parte dessa multidão é melhor nisso que nossos políticos jamais serão. Mas o mais importante dessa discussão não são tanto os princípios teóricos sobre o que funciona melhor. O que eu mais aprecio na Araucária é que crianças e jovens são formados com a convicção de terem que construir seu próprio caminho, buscar suas vitórias, perseguir seus objetivos. Não temos vergonha de precisar da ajuda eventual de outra pessoa, mas não projetamos nossas vidas segundo esse princípio.
     - Talvez eu precisasse ver isso na prática para ter a mesma confiança que você numa sociedade tão competitiva.
     - Não vejo nossa sociedade mais competitiva que a brasileira. Apenas competimos em condições mais livres, enquanto aqui cada um compete por benefícios, promoções, nomeações, subsídios, verbas, concursos públicos... Existem pessoas muito competitivas e outras nem tanto, e isso é assim por toda parte. Aliás, com mais qualidade de vida, acho até que os araucarianos são menos competitivos, apesar da ampla concorrência econômica por lá. No fim das contas, o trabalho lá vale mais que aqui. Nesse assunto de gente muito pobre, nosso maior problema são com os brasileiros que migram aos milhares para nossas cidades em busca de emprego. Veja só, eles se consideram super humanistas, ultradefensores dos humildes, mas, no fim das contas, quem gera riqueza e paga os melhores salários somos nós, os desumanos.
     - Vocês são contra imigrantes? Isso não é uma atitude de extrema-direita?
     - Extrema-direita?
     - É, nazistas, racistas, machistas, xenofóbicos...
     - E o que essa gente tem a ver com a direita?
     - Ora, são da extrema-direita, os grupos radicais da direita, não são?
     - Já viu um nazista defender menos poder para os governantes?! Ou um racista dizer que somos todos iguais? Ou machistas defenderem que, no mercado livre, o mérito vale mais que o gênero? Ou um xenofóbico defender as multinacionais? Confundiram sua cabeça com um monte de propaganda de cartilha autoritária. Foi a direita que inventou o conceito de direitos naturais dos indivíduos, que os esquerdistas, ao mesmo tempo, chamam de “metafísica burguesa” e rebatizam de “direitos humanos”, onde enfiam todas as suas reivindicações de poder num mesmo saco. Aqueles grupos que você chamou de extrema-direita são apenas gangs autoritárias que sonham com poder e tirania. Tente convencer um racista a respeitar a propriedade privada de um negro, ou um nazista a respeitar os direitos civis de um judeu, e você verá se eles têm algo com a direita.
     - Pode ser, mas e os imigrantes? Será que o povo de Araucária não tem preconceito com os nordestinos, por exemplo?
     - Enfim chegamos ao “tema-limite” do Mundo-Brasil. É o ponto para o qual todos os despertos convergem. A ideia é: se você não tem nada contra alagoanos, baianos, paraibanos, paraenses, acreanos, como poderia ser um cidadão de Araucária? Se for para se tornar um preconceituoso estúpido – você está pensando – é melhor ficar longe desses araucarianos. “Eu não sou um esnobe”. Não é isso?
     - É, talvez, é um pouco isso...
     - Então me responda, você acha que os bolivianos se consideram melhores que os brasileiros?
     - Não sei, mas acho que não.
     - Então eles deveriam aceitar unir a Bolívia ao Brasil. Ou eles têm preconceito contra os brasileiros?
     Armínio coçou o queixo.
     - Mas os bolivianos não são brasileiros.
     - Se os territórios fossem unidos, eles passariam a ser. O que é ser brasileiro? E, no entanto, eles preferem preservar seu país próprio. Daí você deduz que eles se consideram superiores a nós?
     - Não sei... Quem defende muito separação deve se sentir melhor que os outros.
     - Armínio, se as fronteiras separassem povos “bons” e “maus”, o mundo deveria ser um país só, pois ser humano é sempre ser humano. As fronteiras não são isso. Elas só dizem até onde uma lei vai e onde começa a outra. Os brasileiros amam suas leis sociais, acham horrível que alguém tenha coragem até de questioná-las. Ótimo para eles, que vivam sob tais leis. Nós, araucarianos, preferimos leis centradas nos cidadãos, é a nossa escolha, é no que acreditamos. Só isso. Mas aqui no Polígono, imersos no Mundo-Brasil, os araucarianos são sempre derrotados no Parlamento, nas eleições majoritárias, nas universidades, na escolas... derrotados e obrigados a viver sob as leis brasileiras. Ora, “separatistas” não se acham melhores. Apenas desejam viver sob as leis nas quais acreditam. Isso é crime? Os brasileiros nos acusam de separatismo desde o Levante Paulista de 1842. É cômodo acusar quando se é o dominante. Se eles querem tanto uma união verdadeira, é simples: adotem as leis araucarianas. Por mim a América do Sul inteira caberia no mesmo país. Da mesma forma, se o povo de algum dos Estados brasileiros desejar aderir à Araucária, serão bem vindos. Se a Resistência daqui vencer, acabou o problema. Mas isso os brasileiros não aceitam: “Aquela legislação selvagem e individualista, Deus nos livre e guarde!” É fácil defender a “união”, quando se tem o controle.
     - Mas e se alguma província da Araucária resolvesse se separar do resto do país?
     - Paciência, mas não vai acontecer. Todo anseio por autonomia é, no fim das contas, uma luta contra algum tipo de tirania. Nenhuma das províncias da Araucária é tiranizada pelo nosso governo nacional. O que vem acontecendo, ao contrário, é uma aproximação crescente com os países vizinhos. Já temos até uma moeda comum, a plata. Cidadãos e empresas de nações republicanas tendem a se integrar. Você sabe, governantes...
     -... com pouco poder, é, entendi.
     Armínio ficou ali, sentado, matutando naquela conversa. Para os padrões da Araucária, Virgínia era esquerdista, por sua defesa do tempo livre. Mas no Brasil ela seria considerada uma direitista das mais “cruéis”. Provavelmente ele próprio comungara daquelas ideias antes de ter sua memória reprogramada. Engraçado como o caminho que uma nação segue acaba influenciando tanto as opiniões de seus cidadãos... Mas se é assim, então qual caminho histórico foi esse dos araucarianos? O que fizera com que araucarianos e brasileiros chegassem ao século XXI pensando de forma tão diferente?
     Era o que faltava descobrir.

Capítulo VIII – O Império Contra-Ataca
I. A Preparação

     Desde que D. Pedro I abdicou, em abril de 1831, os poderes centrais do Império Americano se enfraqueceram sensivelmente, permitindo a ascensão das forças provinciais. A partir da Regência Trina até o início da Regência de Diogo Feijó, as conquistas moderadas foram se acumulando, o que parecia conduzir tanto o Brasil quanto a Araucária para um período de contínuo progresso. Entretanto, por baixo das atividades mais visíveis da vida política, articulações e longos preparativos eram tomados com metódica frieza.
     O nome por trás de toda esta articulação, pouco notado no início, mas gradualmente destacado, foi o de Januário da Cunha Barbosa, o Cônego da Capela Real de D. Pedro I. Mas quem era Januário da Cunha? Nascido em Niterói, em 1780, ordenou-se sacerdote em 1803, quando passou um ano e meio em Portugal, onde encantou-se pela majestade do trono imperial e encheu-se de sonhos políticos. Seu nome começou a ser conhecido quando ele se iniciou na maçonaria vermelha, no início de 1821, usando o nome de Kant. Logo já era o braço direito do Grão-Mestre vermelho e o principal redator do jornal maçom, o Reverbero Constitucional Fluminense, que difundia as ideias revolucionárias francesas no Rio de Janeiro. Pelo seu talento, foi eleito orador da maçonaria em 1822. Seus artigos eram célebres pelos ataques impiedosos a todos que julgasse “inimigos do povo”.
     Mesmo após a independência, em setembro daquele ano, continuou um intenso trabalho de agitação política na capital, mobilizando protestos e exigindo avanços. Por fim, foi perseguido e preso, sob acusação de “incitar a anarquia e a guerra civil”. Passou um mês na Fortaleza de Santa Cruz, conhecida como “os porões da ditadura imperial”. Dali foi embarcado para a França.
     No exílio, entrou em contato com revolucionários europeus e começou a reelaborar suas estratégias. Não apostaria mais no conflito, e sim na tomada gradual do poder. Quando retornou ao Brasil, a maçonaria estava na ilegalidade, e ele precisou agir com cautela. Abandonou os discursos panfletários e passou a defender o imperador – justamente no momento em que D. Pedro I afundava em escândalos e impopularidade. Ainda bom orador, tanto adulou seu antigo inimigo político que conseguiu cair nas graças de D. Pedro I, sendo nomeado Cônego da Capela Real, o que significava que se encontrava cotidianamente com o imperador, muitas vezes de forma reservada.
     Além de Cônego, Januário da Cunha ainda se elegeu deputado, em 1826, com atuação discreta num momento de efervescência oposicionista e crise política. Não conseguiu se reeleger em 1829, tamanho foi seu isolamento político em defesa do “herói da nossa Independência!”. Para seu consolo, ele obteve do imperador a estratégica função de diretor do Diário Fluminense, o jornal oficial do governo, além de controlar a tipografia real. Prudente, o Cônego Januário rearticulava a maçonaria vermelha sigilosamente, sem se indispor com D. Pedro I, seu ingênuo protetor.
     Em abril de 1831, mais pela firme oposição dos moderados azuis, D. Pedro I abdicou. Era o que o Cônego Januário esperava. Ainda em 1831 ele, aproveitando a liberalidade do período regencial, reorganizou o Grande Oriente Brasileiro – a maçonaria vermelha. Com a imagem de perseguido pela Ditadura, ex-preso político e exilado, o Cônego Januário elegeu-se Venerável da Loja do Grande Oriente. A partir dali se mostraria um duro adversário de D. Pedro I e de seus últimos aliados no Brasil, os Restauradores. Ter sido cônego pessoal do imperador e diretor de seu órgão de imprensa oficial era passado.
     Mas o tempo dos protestos acalorados também havia passado (a não ser em momentos pontuais e convenientes). Ele e os vermelhos apenas haviam mudado de estratégia. Que os moderados cuidassem do dia-a-dia do governo parlamentar, e se desgastassem mutuamente. Enquanto isso, seu grupo se preparava para o verdadeiro poder. Sim, nada menos que o Absolutismo, exercido através de uma criança no trono e, futuramente - por que não? – com um simples golpe palaciano com militares bem selecionados, instituir a República! A poderosa República Jacobina com a qual os vermelhos jamais deixaram de sonhar.
     Os maçons azuis também estavam se reorganizando, sob a liderança de José Bonifácio. Isso era um contratempo. Januário propôs que os azuis viessem para sua loja, pois – dizia – o tempo das diferenças partidárias estava superado, sendo hora de se pensar no Brasil, mas a liderança de Bonifácio ainda era suficiente para inviabilizar essa estratégia. Se era guerra que Bonifácio queria, guerra ele teria. Apesar do novo figurino civilizado, os vermelhos não tinham esquecido como soltar a coleira da turma das garrafadas.
     Em 1833 o Cônego conseguiu colocar o Aureliano Coutinho (aquele presidente de São Paulo nomeado por D. Pedro I durante os protestos que levaram à abdicação) num dos Ministérios da Regência moderada, tudo em nome da reconciliação nacional, é claro. Coutinho, então com 33 anos, se destacou pelo rigor contra os últimos motins militares dos restauradores, “aquela corja a serviço do tirano”. Ainda em dezembro daquele ano, um quebra-quebra de “manifestantes” na sede do clube militar, uma associação assistencial da categoria, destruiu janelas, móveis, documentos. Dias depois, outro quebra-quebra “dos movimentos sociais” danificou a tipografia de um periódico simpático aos militares e aos azuis. Enfim, numa apresentação do Teatro Imperial, onde Bonifácio levara o jovem príncipe para assistir ao espetáculo, um grande “tumulto espontâneo” deu margem a acusações de que o tutor oficial expusera seu pupilo a riscos inaceitáveis. Foi o suficiente para a prisão domiciliar de José Bonifácio, na ilha de Paquetá, e a perda do cargo de tutor (pequena vingança contra o homem que o exilara para França). Seu substituto seria um homem escolhido a dedo pelo grupo político que o Cônego Januário já manobrava no governo, enquanto os moderados se distraíam com “as grandes questões da política imperial”.

II. A Tomada do Poder

     O próximo passo: a Regência. Em 1835 estavam previstas eleições, agora para um regente único. Essa seria uma etapa mais difícil, pois Diogo Feijó, um dos favoritos, não fazia parte do grupo de poder articulado pelo Cônego Januário. O próprio Cônego sabia que, pessoalmente, não tinha a mínima chance numa eleição nacional e carecia de um nome de maior aceitação entre os eleitores, mas que, ao mesmo tempo, fosse manipulável. O nome escolhido pelos vermelhos foi Holanda Cavalcanti, um vaidoso deputado pernambucano da vila de Garanhuns, com ares de reformador e crítico das elites, sujeito gordo, barbudo, de pouca leitura e muito palavrório. No futuro ele ganharia algum destaque por apoiar os revolucionários pernambucanos na Revolução Praieira, mas naquela época não era levado muito a sério por ninguém. O Cônego Januário conseguiu convencê-lo a concorrer e prometeu amplo apoio da maçonaria, agora toda sob sua liderança. Sujeito de poderoso clã nordestino, não lhe faltava ambição, e Holanda aderiu.
     Subitamente, os antigos “inimigos do povo” se tornaram aliados de palanque. Todos os velhos oligarcas regionais eram agora “aliados estratégicos numa ampla frente de renovação política do Império contra o imperialismo inglês”. Sim, porque Feijó, o inimigo do tráfico negreiro, era acusado de querer entregar as riquezas imperiais de mãos beijadas para a Marinha Mercante inglesa. Além disso, ainda havia muitos portugueses e ingleses no comércio brasileiro, e tanto os grandes comerciantes quanto os exaltados vermelhos eram contra a presença “antipatriótica” de ingleses e portugueses no comércio nacional, posição com a qual, decididamente, Feijó e os moderados não concordavam.
     A disputa foi acalorada, e o jingle dos vermelhos fez sucesso: “Holandá, meu primeiro voto prá fazer...” mas, como vimos, apesar de todas as articulações oligárquicas, Holanda foi derrotado pelo “pai do Plano Mil-Réis”. Então era hora do plano B.
     Apesar dos avanços liberais promovidos pelo regente Diogo Antônio Feijó (o D.A.F.), o Império, de uma forma geral, permanecia um poder ainda bastante centralizado e dispendioso. A bancada brasileira detinha mais de quatro quintos da Assembleia Geral, ficando os araucarianos com menos de um quinto, e os impostos não baixavam em lugar algum. Os abusos dos líderes políticos e autoridades regionais também não ficavam muito para trás. E, acima de tudo, haviam a escravidão e o tráfico.
     O resultado das eleições, com a vitória de Feijó, se deu em abril, ainda em clima pacífico. Até o final daquele ano, porém, rebeliões provinciais eclodiram no Rio Grande, Pará e Bahia, além do descontentamento geral difuso por toda parte. Até rebelião muçulmana teve em Salvador. No ano seguinte ainda explodiria outras, no Maranhão e, mais uma vez, na Bahia. Estava decidido: Diogo Feijó assumiria, mas não governaria. D. Pedro I morrera um ano antes, extinguindo o grupo dos Restauradores. Naquele cenário, qualquer projeto de poder central parecia bom aos conservadores, e quem tinha, naquele momento, um projeto de poder central absoluto guardado na gaveta? Até a defesa do tráfico negreiro “nacional” passou a ser uma bandeira dos vermelhos – claro, para audiências específicas. Com os grupos populares, os vermelhos continuavam falando em república, abolicionismo, revolução. Onde era possível algum conflito, qualquer um, ele foi disseminado. As oligarquias do norte foram encorajadas a resistir ao “governo irresponsável do padre Feijó”, enquanto os exaltados foram liberados para escrever seus artigos incendiários e tentar tomar o poder, na esperança que o novo regente “negociaria” qualquer coisa. O grito de ordem era “Fora D.A.F.!”
     No início da regência de Feijó, os vermelhos, por um momento, pareceram ter voltado aos tempos da luta pela independência. Dos seus jornais pingava sangue. O velho Feijó, que mal caminhava naquela época, oscilou entre medidas repressivas e conciliadoras, e foi se isolando. Os próprios moderados, meses antes vitoriosos em uma disputa nacional dificílima, agora abandonavam o barco do governo. Alguns aderiam publicamente aos conservadores, novo nome da oposição. Em setembro de 1837, adoentado, isolado, em conflito com os traficantes de escravos, incapaz de obter soluções pacíficas para as rebeliões e sem ânimo para liderar uma guerra em defesa do governo imperial, Feijó renunciou.

III. O Poder Vermelho

     Para a regência interina que o substituiria, nenhum liberal se apresentou, e quem assumiu foi o conservador Pedro de Araújo Lima, membro de outro grande clã da política nordestina. Com ele não haveria hesitação: era exterminar as revoltas no fio da espada. Novas eleições regenciais foram convocadas, mas eram uma caricatura da anterior. Os dois principais concorrentes eram o próprio Araújo Lima e, de novo, Holanda Cavalcanti – quase vizinhos em Pernambuco. Numa eleição que despertou pouco interesse e que foi prejudicada pelas próprias rebeliões que ela prometia resolver (não ocorreram votações em diversas partes do Império), saiu vencedor Araújo Lima, enquanto Holanda era eleito, logo depois, Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil, espécie de Presidente de Honra dos maçons, num grande arranjo de conservadores e vermelhos. Enquanto isso, a Sociedade Defensora, tão importante nos tempos moderados, se extinguiu.
     No Palácio, o Cônego Januário ampliava sua influência, criando, em torno do pequeno rei a Facção Áulica, liderada por ninguém menos que Aureliano Coutinho, seu braço direito. Essa Facção Áulica era um grupo palaciano que monopolizou o acesso ao rei e assumiu o controle definitivo sobre os ministérios e as nomeações. Subitamente, centenas de políticos, jornalistas e funcionários públicos ligados à maçonaria vermelha trocaram as ferozes críticas ao governo pelo conforto de um bom cargo público ou uma verba de publicidade governamental.
     Entre os militares, os vermelhos cooptaram o Gen. Raimundo Matos, diretor da Academia Militar e “herói” da repressão à Revolução Pernambucana de 1817. Principal formulador da Doutrina de Segurança Imperial do Estado Maior das Forças Armadas, o Gen. Matos aproximou-se gradualmente do Cônego Januário, perdendo suas antigas resistências a uma aliança com os líderes vermelhos. Unidos, o Clero e o Exército viabilizavam um projeto de Grande Império Continental que seduzia sobremaneira o velho militar. O general passou a enxergar no Cônego Januário, cada vez mais, o líder capaz de conduzir o Império para fora do caos em que se encontrava, como dizia, “por conta das irresponsabilidades e falta de patriotismo dos venais moderados”.
     Mestre da adulação, o Cônego Januário não deixava de lastimar o pouco prestígio dado a um “leal herói da nação contra os sediciosos de 1817”, um homem que merecia um espaço maior que o de diretor de uma escola, ainda que fosse a inestimável Academia Militar. Era de homens como ele que o Império precisaria, “nos momentos de maior perigo para a pátria”. Com tal tipo de argumentação, o Gen. Matos se tornou mais um dos “homens do Cônego Januário” na Corte imperial.
     Mas o Gen. Matos era velho e cauteloso demais para ser o verdadeiro líder que o Cônego Januário buscava nas Forças Armadas. Apesar dos ataques imperiais, as rebeliões provinciais ainda resistiam em várias províncias. Foi nesse momento que surgiu no cenário político a figura de Luís Alves de Lima e Silva. Em 1835, aos 32 anos e com uma vida dedicada aos treinamentos militares, Lima e Silva era considerado o melhor oficial já formado pela Academia Militar. Filho mais velho do Gen. Lima e Silva, um dos Regentes do governo Moderado, o jovem Lima e Silva vinha servindo com grande bravura e distinção à Regência, tendo liderado o principal Batalhão de Oficiais que defendeu as reformas de Diogo Feijó, combatendo diversos focos de motins e sublevações, inclusive na Marinha. Em 1832, foi nomeado Comandante do Corpo de Guardas do Rio de Janeiro. Foi ainda escolhido instrutor de esgrima e hipismo do pequeno D. Pedro, por conta de sua célebre habilidade nas artes militares.
     Sempre o observando e o estudando, o Cônego Januário apenas aguardava o momento exato para aproximar-se de Lima e Silva, pois o considerava indispensável em seu projeto pessoal de poder. No início, o Cônego iniciou Lima e Silva na maçonaria, submetendo-o a todos os ritos e cerimônias secretas daquela instituição, emprestando a cada detalhe um ar solene e venerável. Depois explorou seus sentimentos de lealdade para com o pequeno rei. Então o transferiu para a Ilha das Cobras, isolou-o, confinou-o, cobrou-lhe disciplina, colocou-o a provas físicas e morais, pressionou-o, promoveu-o a Coronel, bajulou-o, seduziu-o, doutrinou-o. No início de 1837, após dois anos daquele intensivo programa de reeducação, Lima e Silva havia se passado para o lado imperial das Forças Armadas, tornando-se um frio e implacável chefe militar, pronto a executar qualquer ordem do Cônego Januário.
     Em março de 1837 veio sua primeira prova de total submissão ao Império. Lima e Silva foi enviado ao Maranhão para liquidar uma revolta popular, a Balaiada, que explodira como um barril de pólvora e se espalhara por toda província. As autoridades imperiais maranhenses foram rechaçadas por aquela onda de violência social e os balaios ganharam terreno. Milhares de ex-escravos estavam se unindo aos camponeses e aos pequenos artesãos das vilas rurais em busca de um governo separado do Império, republicano, abolicionista e constitucional. A própria capital, São Luís, caíra nas mãos dos Bem-te-vis, como eram chamados os Exaltados da província (encorajados pelos próprios vermelhos do governo Imperial). O Cel. Lima e Silva recebeu o Comando de Armas da Força Imperial do Maranhão, Piauí e Ceará, e agiu rápido. A repressão caiu como uma tempestade tropical, em várias cidades simultaneamente, sem fazer perguntas ou prisioneiros. Os líderes políticos foram comprados ou exilados, mas no interior seria a lei da espada. Os moradores que não tomassem a iniciativa de se apresentar para jurar submissão eram assassinados sumariamente. A cidade de Caxias, base de toda resistência maranhense, foi especialmente abatida, num banho de sangue que os séculos futuros não apagariam. Antes do fim de julho, a Balaiada, como rebelião provincial, estava derrotada completamente, restando apenas a repressão rotineira aos focos dispersos de quilombos e aldeias, o que duraria ainda alguns anos – um serviço a cargo de subalternos. Em agosto, o Coronel enviado pelo Cônego Januário já podia retornar ao Rio de Janeiro, deixando no Maranhão, como únicas leis, o Império, a Escravidão e o Absolutismo.
     Ao grande comandante imperial foi dada uma honra inédita: caberia a ele escolher o nome do título de nobreza que lhe era oferecido pelo agradecido rei. Ele não hesitou em fazer referência à maior carnificina jamais promovida em qualquer outra cidade da América do Sul. Daquele dia em diante não existiria mais nenhum Luís Alves de Lima e Silva. Agora o Império e seus inimigos conheceriam apenas o Duque de Caxias.
     Apesar de todo poderio bélico, o Cônego Januário sabia que, no fim, uma vitória só é definitiva quando os próprios corações dos vencidos são conquistados. Se não os corações daqueles que combateram, ao menos os dos seus filhos e netos. Para isso, o líder dos vermelhos decidiu fundar uma nova instituição cultural, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), com a tarefa explícita de criar uma História Brasileira, reunindo num único enredo as histórias da Araucária e das diversas províncias brasileiras. A rica memória coletiva de uma formação histórica própria e distinta da Araucária teria que ser, não só negada, mas apagada completamente de todos os registros. Caberia ao IHGB, portanto, não apenas elaborar e difundir uma História e uma Geografia Brasileiras (e a ideia de uma “Geografia Brasileira” era ainda mais artificial que a de uma História), mas também abafar, interditar, eliminar qualquer iniciativa de preservação da memória araucariana, com a requisição de toda e qualquer documentação que pudesse representar algum valor histórico, monopolizando tudo num único e bem controlado centro de produção histórica imperial. O IHGB também serviria para formar os professores responsáveis pela replicação dessa doutrina entre todos os jovens submetidos ao domínio imperial.

    “IHGB”, pensou Armínio, “o Matias me falou desse instituto ontem. É onde são fabricados os tais professores...”

     Para a fundação desse instituto tão estratégico, o Cônego Januário contou ainda com a colaboração valiosa do Gen. Matos, diretor da Academia Militar e o mais fiel militar de seu círculo de poder. Os dois juntos, como altas autoridades do Clero e do Exército, se apresentaram como cofundadores desse poderoso centro de formação do pensamento imperial, além, é claro, do próprio imperador, rapaz que prezava muitíssimo qualquer coisa que lhe conferisse ares de ilustração à la cultura europeia.
     Outra instituição que servia ao projeto de conquista dos corações das futuras gerações era a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). Longe de fomentar o livre talento e a livre expressão dos melhores artistas da nação, essa academia era de fato um centro de produção de obras dentro de um preciso programa temático: a exaltação da família imperial como símbolo maior da própria nacionalidade, algo como uma agência de peças publicitárias a serviço do imperador, mantida pelos recursos públicos. Diante da dificuldade de se exercer uma carreira artística independente no Império, a AIBA representava praticamente um novo monopólio estatal, agora no campo da produção de quadros, não havendo uma produção artística concorrente que pudesse rivalizar com aquela versão oficial da arte.

Capítulo IX – A Guerra do Rio Grande (1835-1842)
I. O Rio Grande no Império Americano

     Apenas uma peça daquele grande quebra-cabeças planejado pelo Cônego Januário ainda não se encaixava: o Rio Grande. A rebelião ali iniciada foi simultânea à deflagrada em todo Império em meados de 1835, mas no Sul ela teve características próprias e não caíra sob controle dos vermelhos. O líder dos farroupilhas era o próprio Capitão da Guarda Nacional do Rio Grande, Bento Gonçalves, nomeado em 1832, ainda sob o Ministério de Feijó, portanto um moderado – caso único em todas as rebeliões provinciais na Regência. Bento Gonçalves chegou a ser acusado, em 1833, de ser “protetor de uruguaios”, tendo que ir ao Rio de Janeiro se defender. Na capital do império, ele não só se defendeu como aproximou-se de Feijó, acertando com o Regente o nome do novo presidente gaúcho. Nos meses que passou no Rio de Janeiro, em 1833, Bento Gonçalves estabeleceu também uma franca amizade com o jovem Lima e Silva, Capitão da Guarda Municipal e filho do Regente Lima e Silva, aparentados a famílias importantes no Rio Grande.
     No Sul a tensão entre o governo provincial e o Império era mais antiga, mais profunda, mais enraizada, ligada à própria formação histórica da região. A “Batalha dos Tratados” se iniciara ainda na fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, e se estendera sem paz verdadeira até às vésperas da Regência, com a Guerra da Cisplatina e a independência definitiva do Uruguai, em 1828.
     Geograficamente, os territórios do Uruguai e do Rio Grande são bastante semelhantes, ambos muito propícios à pecuária. Historicamente, a província pertenceu aos domínios espanhóis por mais de dois séculos e seria possível o Rio Grande ter se tornado parte da América Hispânica. Todavia, o desinteresse espanhol e o vigor inesperado do bandeirantismo paulistano fizeram daquela região parte da Araucária.
     Assim, a independência do Uruguai criou uma situação difícil para os gaúchos. O Rio Grande permanecia dominado por um longínquo governo a 1500 km de trilhas serranas ou por um mar inóspito, interessado tão somente nos tributos que porventura pudesse cobrar dos gaúchos, enquanto o Uruguai passava a se organizar como uma república independente e às portas da imensa bacia hidrográfica do Prata-Paraná, dotado de planícies de pastagem ainda melhores que as gaúchas. Nesse contexto, as indústrias de charque e de couro eram atraídas naturalmente para Montevidéu. A independência do Uruguai significou, assim, um imenso desafio aos gaúchos.
     O autoritarismo de D. Pedro I não ajudou em nada à superação das dificuldades gaúchas. Para começar, a imposição da Constituição de 1824 (que provocara, no Nordeste, mais uma insurreição separatista naquela região), também causou sério descontentamento no Sul. Se fossem participar do Império, que ao menos fosse um Império autenticamente constitucional, e não uma monarquia absolutista fantasiada de constitucional, com aquele inacreditável Poder Moderador (e aqui, “Moderador” era exatamente o oposto de “Moderados”).
     Depois, com o início da Guerra da Cisplatina, em 1825, o inexperiente imperador decidiu ir pessoalmente ao Rio Grande, a fim de comandar seu exército. Logo após as primeiras dificuldades, regressou ao Rio de Janeiro, mas nomeou um português para o comando das tropas, desdenhando da enorme experiência militar das lideranças gaúchas naquela região de larga tradição bélica. A derrota imperial naquela guerra foi, portanto, imputada pelos gaúchos ao teimoso e inábil imperador.
     A Regência ajudou a reduzir a tensão no Rio Grande. O Ato Adicional, proposto por um deputado araucariano, instituiu as assembleias provinciais, os juízes de paz e a Guarda Nacional, dotando os gaúchos de instituições necessárias à sua autonomia, mas a eleição local do Presidente das províncias, que constava no projeto inicial, foi vetada pelo Senado, à época dominado pelos Restauradores (contrários à autonomia das províncias).
     Outra dificuldade dos gaúchos era a política econômica, tanto fiscal quanto cambial, do Império – uma área onde os moderados estavam desunidos no Parlamento e o Senado conseguia controlar. As principais oligarquias econômicas do país – mesmo a paulista – tinham interesses em atividades produtivas ligadas à exportação (café, açúcar, tabaco). Assim, mesmo sob a Regência, o governo imperial adotava uma política voltada ao mercado externo, com tarifas alfandegárias baixas e moeda desvalorizada, mas não era capaz de baixar, como forma de compensação, os impostos sobre os produtos destinados ao mercado interno.
    Dessa forma, tanto o charque quanto os artigos de couro produzidos no Rio Grande tinham que pagar altos impostos, enquanto os uruguaios quase não taxavam os seus produtos, conseguindo exportá-los para o Brasil a preços baixos. Essa situação simplesmente arruinava a nascente atividade industrial gaúcha.
     Como nem os impostos no Sul baixavam, nem se aumentavam as taxas sobre as importações concorrentes, a tensão contra o governo imperial cresceu. Em 1830, ainda sob o reinado de D. Pedro I, ocorreu uma pequena sedição em Porto Alegre, organizada pelo são-borjense João Manoel de Lima e Silva, tio do futuro Duque de Caxias. A revolta contou com apoio de colonos alemães e proclamou uma república independente, mas foi rapidamente reprimida.
     Os conflitos políticos aumentaram quando, em 1833, o ex-ministro da guerra de D. Pedro I, o português Pereira Valente, mudou-se para Porto Alegre, onde organizou uma filial da Sociedade Militar, acusada pelos opositores (de forma exagerada) de apoiar a reunificação entre Brasil e Portugal. A verdade é que a carreira militar era muito pouco valorizada pela elite agrária no Império e atraía sobretudo jovens de famílias humildes. A Sociedade Militar tratava especialmente de iniciativas de assistência mútua. De toda forma, João de Lima e Silva novamente organizou uma revolta popular na capital da província, com o apoio do tenente Luís José dos Reis Alpoim, o fundador do Partido Farroupilha. Ambos acabaram presos, mas o prestígio da causa gaúcha cresceu.
     Ao mesmo tempo, os maçons gaúchos difundiam os ideais republicanos na província, liderados, a partir de 1833, por Bento Gonçalves, o comandante da Guarda Nacional no Rio Grande. Por ser uma província muito periférica no Império e muito próxima das repúblicas platinas, no Rio Grande a ideia de uma Monarquia Constitucional, mais aceita entre os maçons das outras províncias da Araucária, não tinha muita adesão. Assim, naquela província, por motivos específicos, a proposta republicana conseguia adeptos mesmo entre os maçons azuis, como única alternativa viável de se conquistar alguma autonomia. Nesse contexto, Bento Gonçalves e muitos outros líderes gaúchos moderados, viam a proposta republicana como uma das alternativas políticas para o Rio Grande.

II. O Início dos Conflitos

     Em 1835 foi nomeado um novo presidente da província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga. Apesar de vagas simpatias liberais, Fernandes Braga entrou em atrito com os líderes gaúchos logo na primeira sessão da Assembleia Provincial, em abril, acusando os “exaltados” de planejarem unir o Rio Grande ao Uruguai. Foi o estopim para o acirramento das divergências entre moderados e imperiais. Em 18 de setembro uma reunião secreta de líderes farroupilhas decidiu tomar Porto Alegre e destituir Fernandes Braga. Ainda não havia a decisão de se proclamar a separação do Rio Grande, apenas de se impor um nome mais alinhado aos interesses gaúchos na presidência da província. O conflito foi breve e, em 20 de setembro de 1835, após a curta Batalha da Ponte da Azenha, Porto Alegre foi tomada. Era o início da Guerra do Rio Grande.
     Fernandes Braga fugiu de Porto Alegre e Bento Gonçalves assumiu o governo da cidade. Quase toda a província aderiu imediatamente ao novo governo, ocorrendo poucos casos de resistência. Em 25 de setembro Bento Gonçalves enviou uma carta ao regente Feijó solicitando a nomeação de um novo presidente provincial e sugerindo uma conclusão pacífica para o conflito.
     O regente Feijó (mal informado por burocratas palacianos) enviou para o Rio Grande um novo presidente, José de Araújo Ribeiro, mas acompanhado de uma enorme força militar e de um capitão de mar e guerra experiente. Encontrando falta de apoio em Porto Alegre, Araújo Ribeiro pensou em retornar para o Rio de Janeiro, mas acabou convencido a assumir a presidência, na cidade de Rio Grande, ao sul da província, em janeiro de 1836. Os farroupilhas não reconheceram aquela posse fora da capital, e mobilizaram seus soldados.
     Diante daquela sublevação, Araújo Ribeiro reuniu militares gaúchos contrários aos farroupilhas, ordenou o fechamento da Assembleia Provincial e destituiu Bento Gonçalves. Em seguida, enviou uma forte divisão militar pra retomar Porto Alegre, o que foi conseguido em junho. Os farroupilhas insistiriam na retomada de Porto Alegre por mais de três anos, até levantarem o cerco e se retirarem para Piratini, em dezembro de 1840.

III. A Independência do Rio Grande

     Em 10 de setembro de 1836 ocorreu a primeira grande batalha da Guerra do Rio Grande, próximo à fronteira com o Uruguai, chamada Batalha de Seival, vencida pelos farroupilhas e com muitas baixas entre os imperiais. Essa batalha ampliou muito a convicção de que já não havia alternativas para os gaúchos senão proclamarem uma república independente do Império, inclusive com a abolição da escravatura, como havia no Uruguai. Notícias do Norte falavam em outras rebeliões provinciais contra o governo imperial e o novo regente único, Diogo Feijó, era um araucariano moderado, talvez disposto a aceitar um tratado reconhecendo a República Rio-Grandense, como o Império havia feito nove anos antes com o Uruguai. Assim, o líder local dos farroupilhas, Antônio de Sousa Neto, foi convencido a escrever a Proclamação da República Rio-Grandense, lida para sua tropa no dia seguinte.
     Logo depois foi estabelecida a capital da nova república, a vila de Piratini. Os revoltosos se autointitularam Exército Republicano Rio-Grandense e o que nascera como uma revolta contra um presidente de província se tornava, inadvertidamente, uma guerra contra o Império. O movimento ainda carecia de um forte engajamento popular nas cidades litorâneas, sendo a princípio o esforço dos estancieiros e tropeiros do interior e de seus típicos vaqueiros. Militarmente, possuíam uma excelente cavalaria, por conta de suas tradições pecuaristas, mas eram deficientes em infantaria, em artilharia e em forças navais, não podendo, portanto, conquistar o litoral.
     Muitas Câmaras Municipais, ao serem informadas da Proclamação de Independência Rio-Grandense, declararam sua adesão oficial ao novo país. Bento Gonçalves seguiu às pressas para Piratini, a fim de assumir a presidência da nova república, mas foi capturado pelo exército imperial durante a travessia de um rio, em outubro de 1836. O líder farroupilha e outros chefes militares foram enviados prisioneiros para o Rio de Janeiro e o governo imperial, triunfante, noticiou o fim da rebelião no Rio Grande.
     Apesar disso, em seis de novembro, mesmo preso e distante, Bento Gonçalves foi eleito presidente da República Rio-Grandense, numa eleição ocorrida em Piratini. O vice-presidente eleito, José Gomes Jardim, assumiu interinamente a presidência e convocou uma Assembleia Constituinte para consolidar o novo governo. Os combates entre soldados imperiais e farroupilhas só se ampliou.
     Os uruguaios simpatizavam com a causa separatista da República Rio-Grandense e rapidamente estabeleceram-se boas relações econômicas entre os dois “países”. O gado rio-grandense era conduzido e vendido às charqueadas uruguaias, que forneciam charque ao mercado brasileiro.
     Em janeiro de 1837, desapontados com a continuidade da rebelião gaúcha mesmo com seu líder preso, sob a firme orientação do Cônego Januário e em oposição ao Regente Feijó, o imperador substituiu o moderado Araújo Ribeiro pelo brigadeiro Antero de Brito na presidência do Rio Grande, o que equivalia a desistir de qualquer solução pacífica para o conflito. A repressão nas cidades litorâneas se tornou violenta e muitos militares gaúchos acabaram aderindo à República Rio-Grandense. Até a cidade catarinense de Lages (estratégica por controlar o Caminho de Vacaria), aderiu ao movimento separatista diante dos métodos violentos de Antero de Brito.
     Em abril, o Exército Rio-Grandense cercou e conquistou a bem defendida cidade de Caçapava, que servia de centro militar das tropas imperiais – uma vitória surpreendente que consolidava o domínio republicano no interior da província. Aquela derrota inesperada provocou reações contrárias à liderança do Cônego Januário no governo imperial e o Parlamento deu uma nova chance a Feijó, que nomeou o catarinense liberal Feliciano Nunes Pires para a presidência do Rio Grande. Homem de larga cultura, Nunes Pires havia se destacado como eficiente presidente de Santa Catarina entre 1831 e 1835 e chegava com a disposição de promover a paz. A queda de Feijó e o estabelecimento de um governo conservador no Rio de Janeiro alteraram essa orientação e causaram a substituição de Nunes Pires pelo Marechal Miranda e Brito, militar português veterano da repressão à Revolução Pernambucana e da Guerra da Cisplatina. A ordem era resolver o conflito ao fio da espada.
     Enquanto a guerra se desenrolava no Rio Grande e noutras províncias, Bento Gonçalves e um grupo de farroupilhas chegavam como prisioneiros ao Rio de Janeiro, em novembro de 1836. Foram levados imediatamente à Fortaleza de Santa Cruz, enquanto chegavam as notícias da eleição de Bento Gonçalves à presidência gaúcha e da continuidade das lutas no Sul. Aquele líder gaúcho se tornava o principal adversário do Império, no momento em que os conservadores chegavam ao poder regencial com a incumbência de varrer do mapa todas as rebeliões.
     As condições de sobrevivência na Fortaleza de Santa Cruz eram deploráveis e alguns prisioneiros morriam em poucos dias, mas os farroupilhas mostraram boa resistência. Depois de dois meses de degradação, o Cônego Januário ordenou a transferência dos prisioneiros para a Fortaleza de Laje, ainda mais inacessível. Ainda assim os farroupilhas conseguiram organizar uma perigosa fuga, mas um dos prisioneiros, gordo, não foi capaz de passar pela abertura da fuga, e Bento Gonçalves decidiu permanecer preso, com seu companheiro, enquanto os demais fugiram e retornaram a Rio Grande.
     A notícia enfureceu o Cônego Januário, que ordenou uma transferência secreta e solitária de Bento Gonçalves para o Forte do Mar, em Salvador, acompanhado pelo seu principal chefe militar, o Duque de Caxias, recém-chegado do Maranhão. Por meses, Bento Gonçalves ficou acorrentado, isolado e mal alimentado, enquanto o próprio Caxias o pressionava, com os recursos misteriosos da maçonaria vermelha, a passar para o lado imperial das Forças Militares: “Conosco você conhecerá o que é poder! Controle absoluto, domínio de todo continente! O Regente é um inválido! O Parlamento é um asilo de anciãos indefesos! O rei é um menino tolo que esmagaremos com uma só mão! Os rebeldes eu estraçalho com minhas botas, como baratas! O próprio Cônego Januário é um velho que não há de durar muito, e quando ele se for, eu instituirei uma República da Espada e serei chamado o Marechal de Ferro! Você nasceu para o comando, Bento, una-se a mim! Sinta o poder! É inútil resistir!! Sinta a agressividade fluir em seu peito!!! Mude para o lado imperial das Forças Armadas!!!!”
     Mas Bento Gonçalves era inflexível: “Tu falas assim porque tu te tornastes um frouxo, uma boneca tchê! Se tu fostes um verdadeiro gaúcho da fronteira, maacho, não falarias jamais destas frescuradas. E se tu continuares com esta conversa de mudares de lado comigo tu vais levar um coice no pé da orelha que tu nem imaginas! Gaúcho não muda de lado nem para cruzar com parelha de boi brabo, a gente passa por cima”.
     Enquanto isso, nos muros do Forte, sentinelas vigiavam. Até que surgiu uma bela rapariga carregando uma larga bandeja de acarajés, de andar dengoso e olhar faceiro, falando com aquele jeito cantado que a baiana tem. “Querem não meninos?” Quando os dois soldados se aproximaram, animados, a mulher puxou uma espada da bandeja e os enfrentou num combate árduo. Com perícia invejável, matou os dois antes que pudessem pedir socorro, então jogou uma corda que levava no turbante para seu companheiro escalar o muro. “Buon trabalho Anita!” Logo os dois, Anita e Giuseppe desceram pelos corredores, enfrentaram e mataram novos guardas e chegaram ao calabouço. “Garibaldi! Aqui!” Gritou Bento. Giuseppe deu a Bento seu estimado sabre, enquanto Anita abria as grades. Eles desceram pelo muro até o barco, onde o índio Xubiquara os esperava. O barulho das espadas, porém, despertou o bem treinado Caxias, que correu para os muros. Giuseppe e Anita já haviam descido, mas Bento estava ainda lá e um combate de sabres que brilhavam ao sol se iniciou. Giuseppe quis subir para auxiliar o amigo, mas barcos militares se aproximavam e eles precisaram zarpar, contornando o forte.
     O combate entre o Duque de Caxias e Bento Gonçalves foi terrível! Nenhum dos oponentes obtinha um ataque decisivo, até que, num último esforço, Bento conseguiu dar uma estocada que deixou Caxias sem sentidos por alguns instantes. Ele poderia tê-lo matado ali, mas ainda se lembrava da amizade que travaram no Rio de Janeiro. Então Bento subiu numa das torres do Forte e saltou para o mar. Dali ele nadou até o barco de Giuseppe e foi resgatado. “Mas será que essa banheira velha pode nos tirar daqui, guri? Ma tu estás brincando? Si esse velero non for il veículo mais veloz dos mare, io quero que mia madre seja una porca maledita! Xubiquara, aponte la rota para il quadrante sul, e panos de vela em dobra quatro, e andiamo!”. Em poucos instantes eles desapareciam no horizonte. Dias depois estavam aportando em Montevidéu, rumo à República Rio-Grandense.

IV. O Auge do Separatismo Gaúcho (1838-1839)

     Chegando em Piratini, Bento Gonçalves logo assumiu a presidência da República, além de experimentar um novo prazer: Seu filho, Caetano Gonçalves, então com 18 anos, acabara de ingressar na Cavalaria Rio-Grandense, como Tenente de pelotão de lanceiros. Em março de 1838 o Exército anexou a cidade catarinense de Lages, que garantia seu comércio com o litoral e com os paranaense. Em maio, conquistam a bem defendida cidade de Rio Pardo (a Tranqueira Invicta), onde mais de 1200 soldados imperiais estavam aquartelados, na Batalha de Barro Vermelho. Rio Pardo era a segunda maior cidade da província, menor apenas que Rio Grande. Além de estratégica, essa vitória elevou muito a moral dos republicanos. Nessa grande conquista começou a ganhar fama o nome de Joaquim Teixeira Nunes, Capitão do Batalhão de Lanceiros Negros, um corpo de cerca de 400 ex-escravos extremamente habilidosos com lanças e boiadeiras de arremesso.
     Controlando ainda a cidade de Rio Grande e a entrada da lagoa dos Patos, o governo imperial conseguia manter o controle dos mares. A fim de enfrentar essa situação, o governo republicano decidiu uma ação ousada: a criação de uma marinha de guerra, num pequeno estaleiro às margens do único rio com acesso à lagoa dos Patos que controlavam, o rio Camaquã. Dois pesados lanchões, dotados de 4 canhões cada um, foram construídos e, numa operação difícil e arriscada, cruzaram a lagoa dos Patos e foram transportado, por terra, pela barra do Tramandaí, até o oceano Atlântico, com a participação de Garibaldi, de Anita e de marujos uruguaios.
     No dia 15 de julho de 1839 os dois navios da marinha republicana chegavam ao mar, após uma trajetória épica. Rapidamente rumaram para o norte, a fim de conquistar a cidade de Laguna, em Santa Catarina, dotando a República Rio-Grandense de uma saída para o mar. Uma forte tempestade pôs a pique um dos navios, causando muitas mortes, enquanto um grande ataque imperial capturou o único estaleiro dos republicanos, no rio Camaquã.
     O único navio de guerra da Marinha Rio-Grandense finalmente atacou o porto de Laguna, dando apoio ao ataque por terra de uma divisão do Exército, logrando uma rápida conquista da cidade, em 22 de julho de 1839. Neste ataque, três navios de guerra imperiais foram capturados e integrados à Marinha Rio-Grandense. A população de Laguna apoiou amplamente os republicanos (apoio que faltou na cidade de Rio Grande para uma vitória rápida dos republicanos gaúchos). Já no dia 29 de julho, proclamou-se ali a criação da República Juliana, confederada à República Rio-Grandense. Aquela tendência de expandir o movimento separatista indicava um sentimento latente em toda Araucária para um retorno à independência geral do país, extinguindo-se a União.
     Lages, que já era controlada pelos republicanos gaúchos, passou a integrar a república criada em Laguna. Surgia assim, finalmente, uma ligação de vital importância entre o litoral e a República Rio-Grandense. Os republicanos tentaram ainda, sem sucesso, conquistar a capital catarinense, Nova Angra, já bem defendida pelos imperiais. Eleições foram rapidamente realizadas para a presidência, sendo eleito o tenente-coronel Joaquim Xavier Neves, ainda em 7 de agosto daquele ano. A situação da cidade, porém, era precária, pois seu comércio marítimo estava bloqueado pela guerra.
     Todos aqueles avanços, naturalmente, exasperavam o governo imperial, que triunfava contra todas as demais regiões. Mas o Cônego Januário e sua Facção Áulica, o grupo que passara a comandar os numerosos maçons vermelhos na Corte, preparavam-se para responder a tamanho desafio. O maior perigo para o governo imperial era que aquelas vitórias no sul provocassem um levante em toda Araucária.
     Consolidado o poder dos vermelhos no coração do Império, era hora de acabar com a festa dos úteis Exaltados, os que ainda viviam nas velhas ideias do Primeiro Reinado, para os quais o caminho para o poder eram artigos incendiários e garrafadas. Cabanos, Malês, Balaios, a Sabinada, tropas amotinadas, republicanos, black bottles... O sangue correu solto. Era hora de provar aos militares que os vermelhos também sabiam governar. A carnificina comandada e propagandeada pelo Duque de Caxias naquela cidade maranhense deu o tom do que viria pela frente para quem ousasse erguer a cabeça. No final de 1837 se iniciou a reação imperial e em meados de 1839 as rebeliões já estavam praticamente liquidadas, exceto num lugar: o Rio Grande. Ali, não só os rebelados acumulavam vitórias, como ainda haviam expandido seu movimento para Santa Catarina, com a fundação da República Juliana. Em todo imenso território imperial restava apenas um último nome a ser batido: Bento Gonçalves.
     Dessa vez, a Facção Áulica se reuniu no Palácio junto com o Regente Araújo Lima para longas deliberações. Não seriam toleradas falhas! O plano de ataque foi detalhado à exaustão e os cofres do Tesouro (além do crédito imperial) foram colocados à disposição. Os grandes navios negreiros que cruzavam o Atlântico com suas cargas humanas foram recrutados para participarem daquela “Cruzada” contra os traidores do sul e seus intoleráveis batalhões de soldados negros.
     Uma esquadra de 13 fortes embarcações foi colocada sob o comando do Duque de Caxias, ainda furioso pela fuga de Bento Gonçalves em Salvador. Ele fora o único homem a quem o Duque estendera a mão e oferecera uma aliança, mas Bento Gonçalves o humilhara com sua recusa – que pagasse agora o preço. Por terra, uma Divisão de cinco mil soldados avançaria para o sul, a partir de Paranaguá, comandada pelo Gen. Matos. A ordem era simples: dizimar os revoltosos de forma exemplar.
     Os ataques se iniciaram em setembro, ainda nas últimas semanas de mal tempo na costa catarinense. A resistência republicana foi valente, cobrando um alto preço dos agressores para cada milha avançada, mas nada poderia deter tal poderio bélico. Garibaldi, naqueles dias, parecia um titã, estava em todos os lugares, sempre e sempre combatendo. Naufragou três vezes, para três vezes escapar e voltar em outro barco – incluindo um roubado dos próprios inimigos. Por fim se feriu numa batalha homem a homem, repelindo mais uma tentativa de desembarque das tropas imperiais, e foi levado para uma base defensiva. Laguna foi retomada pelas forças imperiais em outubro, tendo que suportar a ira de um comandante militar que não admitia tamanha resistência a seus avanços. Gradualmente a Marinha de Guerra Rio-Grandense, que ali combatia ao lado dos catarinenses, ia sendo extinta. Laguna era a cidade onde Anita nascera e de onde fugira de um ex-marido bêbado e agressivo, para unir-se a Giuseppe. Entre as vítimas dos ataques imperiais à cidade, estavam seus últimos familiares. De um pequeno veleiro, junto com o índio Xubiquara, ela viu a casa de seus pais queimar numa enorme labareda, e só não se lançou num ataque derradeiro contra aqueles assassinos, porque sabia que Giuseppe a esperava no hospital de campo.
     A sul de Laguna não havia mais litoral sob domínio rebelde, até a fronteira com o Uruguai. O Duque de Caxias chegou a pensar num ataque à Montevidéu, mas as ordens imperiais eram precisas. Não avançar para além das fronteiras – o Cônego Januário, ardiloso, gostava de derrotar seus adversários um por um, isoladamente, e sabia esperar a hora certa de atacar os uruguaios.
     Os republicanos sabiam que a batalha naval estava perdida, mas era em terra que o desfecho principal daquele avanço se daria. Por isso Bento Gonçalves concentrou suas forças na serra catarinense, entre Nova Angra e Laguna.
     Aquela estratégia tinha um alto custo. Significava condenar o litoral à bárbara conquista inimiga. Numa guerra, é preciso fazer escolhas difíceis. A cavalaria rio-grandense era excepcional, mas a escassez de armas e munições impunha a busca de combates diretos, com armas brancas – exatamente o que o Gen. Matos evitava, cerrando fileiras bem munidas, avançando devagar, erguendo paliçadas, abrindo fossos. Era um tipo de guerra incomum nos pampas, mas eficiente em terreno montanhoso. Quase não havia linhas de suprimentos para os republicanos, enquanto a marinha imperial despejava homens, suprimentos e armas na região, a partir do litoral. E assim, semana a semana, a Divisão de Guerra do Gen. Matos foi conquistando terreno, até tomar todo o sul catarinense: a República Juliana não existia mais. Continuando para o sul, o objetivo era a própria República Rio-Grandense. A partir de Vacaria, porém, o cenário mudava, e as pradarias dos pampas se abriam no horizonte. Ali era a Terra dos Cavaleiros e nem com o dobro dos homens o Gen. Matos poderia palmilhar toda aquela extensão, como vinha fazendo até ali.
     Só que as ordens do Palácio eram claras: a cabeça de Bento Gonçalves na ponta de uma lança. O Gen. Matos preparou um destacamento avançado, para atrair os gaúchos, e outro, mais numeroso, para apanhá-los ainda em combate. Bento Gonçalves conhecia essa tática desde sua infância, mas tinha o tempo contra si: por quanto tempo a República suportaria tamanho esforço de guerra? Com apoio de seu melhor cavaleiro, Teixeira Nunes, Capitão do Batalhão de Lanceiros Negros, considerado o melhor lanceiro da Araucária, partiu para dizimar o mais rápido possível o destacamento inimigo, preparando, ele também, um pelotão de reforço para fazer frente à novos ataques. A tática era arriscada. Mesmo com uma forte carga de cavalaria, os soldados imperiais só precisavam cerrar fileiras e suportar, prudentemente e pelo maior tempo possível, até a chegada dos reforços. Audaciosamente, Bento Gonçalves, o jovem Caetano, o Capitão Teixeira Nunes e os demais lanceiros atacaram com toda fúria contra os inimigos e mataram muitos deles, mas o próprio Bento se feriu.
     O Gen. Matos aproximava-se velozmente com seu exército. Teixeira Nunes e seus lanceiros agiram depressa e dispersaram os últimos combatentes, mas não haveria tempo de esperar seus próprios reforços.
     - Caetano! Leve seu pai daqui! Se o pegam dessa vez ele nem chega vivo ao Rio de Janeiro! Vamos, façamos depressa uma fileira, hoje os abutres farão um banquete!!! Comigo homens!!!
     Bento Gonçalves, ainda consciente, só gritava exasperado: “Deixem-me lutar! Larguem-me teus cobardões! Teixeira Nunes, tu não passas de um negro desgraçado, eu mesmo puxarei a corda em teu pescoço quando tu voltares para enfrentar a corte marcial! Quando já se viste um gaúcho dar as costas a uma peleja tchê? Larguem-me! Minha espada! Mas que barbaridade!
     E gritando imprecações impublicáveis, Bento Gonçalves foi levado à força para um local seguro, enquanto os lanceiros suportavam o primeiro ataque inimigo. Vários tombaram na primeira carga, mas conseguiram deter o avanço inimigo por alguns minutos, enquanto o reforço se aproximava. Nesse curto momento Teixeira Nunes teve a perna ferida e foi capturado, instantes antes do Gen. Matos ordenar a retirada. Os mortos entre seus homens eram contados às centenas, e esse tipo de batalha revelava-se inviável naquelas campos abertos. Não importa o que dissessem na Côrte, era hora de voltar. A Campanha de Santa Catarina estava terminada.

Capítulo XI. O Fim do Império Americano
I. A um Passo do Poder Absoluto

     O novo regente, apesar de aliado, não era exatamente um homem submisso à estrutura de poder criada pelo Cônego Januário. Foi útil como líder conservador para fazer terra arrasada dos moderados, mas ele não deveria se tornar um concorrente ao comando do Império Absoluto. Chegara a vez de Araújo Lima cair.
     Apesar de apresentar publicamente os resultados dos ataques à República Rio-Grandense como um sucesso, com a reconquista de Santa Catarina, era evidente no Governo Imperial um tom de frustração. Mais uma vez, os rebeldes gaúchos resistiram. As enormes listas de mortos vindas com os navios, inéditas pela dimensão, causaram também um impacto negativo na população, que já murmurava contra tantos conflitos, tantas mortes.
     Nesse clima quase fúnebre de retorno das tropas, trazendo centenas de prisioneiros farroupilhas, a imprensa fluminense apresentou uma curiosa notícia, em 14 de agosto de 1839, talvez não muito notada na época: “O comerciante Irineu Evangelista de Sousa transportou secretamente, e por sua conta, comida para os prisioneiros de Santa Cruz”. No dia 14 de novembro um artigo ainda mais direto acusava-o de dar abrigo a fugitivos em sua casa, no Morro de Santa Teresa. Irineu, então com 27 anos e dono de uma das principais casas comerciais da capital imperial, era também um gaúcho de fortes convicções liberais e membro da maçonaria azul. Essas acusações evidentemente o ligavam à rede de simpatizantes que os farroupilhas possuíam no Rio de Janeiro. Instruído por líderes farroupilhas, Irineu conseguira comprar o capitão Teixeira Nunes, subornando autoridades carcerárias que nada sabiam sobre a existência – absurda no Rio de Janeiro – de negros capitães de brigadas da cavalaria. Irineu se passou por um simples revendedor de escravos para cafeicultores e adquiriu o prisioneiro, que ficou escondido em sua casa, em Santa Teresa, para se recuperar dos ferimentos e dos maus tratos.
     Mas não se tratava de um ato humanitário apenas. Irineu tinha seus próprios planos para tentar ajudar à causa farroupilha, não como um soldado, mas como um empresário. Estava de partida para a Inglaterra, mas antes de viajar deu algum dinheiro a Teixeira Nunes, uma trouxa de roupas e instruções precisas do que esperava dele. Aconteceu porém que, logo após Irineu embarcar para Londres, em março de 1840, o chefe de polícia, Eusébio de Queiroz (um angolano de antiga família de traficantes que se radicara no Brasil e fora escolhido pelos conservadores para chefe de polícia justamente para não cumprir a lei de 1831  de proibição do tráfico, mas que, na historiografia alucinógena dos brasileiros, é o homem que dá nome à Lei do Fim do Tráfico Negreiro!!!), já estava de olho naquele “negro fujão” e o capturou na primeira vez que ele pôs os pés fora da casa. Acorrentado, Teixeira Nunes foi conduzido para a feira dos escravos.
     Enquanto isso o Cônego Januário, agindo através de seu auxiliar direto, Aureliano Coutinho, manipulava as últimas esperanças dos moderados na capital imperial, para responsabilizar o Regente Araújo Lima pela “incapacidade de promover a paz e o diálogo com as províncias, arrastando a nação a uma guerra entre irmãos”. Os moderados morderam a isca, e se uniram pela primeira vez à Facção Áulica numa “Campanha pela Maioridade” do rei, então com 14 anos. Coutinho prometeu aos moderados a formação de um Ministério Liberal. Araújo Lima e os conservadores, responsabilizados pela decepção da Campanha Catarinense, não tinham como combater publicamente uma proposta que, oficialmente, favorecia o próprio rei. Se a maioridade de D. Pedro II representava a pacificação do Império e a reaproximação entre brasileiros e araucarianos, como eles poderiam se opor? E, assim, em julho de 1840, foi aprovada na Assembleia Geral a Lei da Maioridade (redigida pelo próprio Aureliano Coutinho), que extinguia a regência do conservador Araújo Lima, para entregar o trono ao novo imperador, D. Pedro II. Como o jovem imperador vivia sob rígido controle da Facção Áulica, aquilo representava o domínio completo do Estado pelo grupo de poder em torno do Cônego Januário.
     Um breve ministério de moderados foi criado, com a única função de desalojar “a gente do Araújo Lima” dos cargos públicos espalhados por todo país. Segundo o mineiro Teófilo Otoni, “Ainda ressoavam os vivas da festa, e já o governo pessoal se inaugurava com a nomeação do chefe da Facção Áulica, o Sr. Aureliano de Sousa Coutinho, para ministro dos Negócios Estrangeiros”. Poucos meses depois, no início de 1841, os conservadores voltariam ao poder, mas agora selecionados entre os mais alinhados à verdadeira autoridade política do Império, que da Capela Real ditava seus rumos. Sob o firme comando dos vermelhos, o Parlamento aprovou leis que aboliam os avanços políticos do governo moderado, como a “Interpretação do Ato Adicional” e a “Reforma do Código de Processo Criminal”. Basicamente, as novas leis transferiam quase toda autoridade sobre a Administração Pública, o Sistema Judiciário, a Polícia e a Guarda Nacional para o governo imperial, reduzindo os governos provinciais a repartições cumpridoras das ordens vindas da capital. Sem falar, naturalmente, do sistema de arrecadação de impostos, sob controle total do Império.
     Aquelas leis não poderiam deixar de preocupar a oposição moderara, fragilizada na capital, mas ainda viva e acuada nas províncias, sobretudo na Araucária. Dessa vez o Cônego Januário – talvez já sem a mesma paciência que demonstrara antes, ao invés de promover uma política liberal para isolar e derrotar a República Rio-Grandense, decidiu apostar no confronto. Talvez a melhor forma de derrotar os gaúchos fosse, primeiro, dominando de uma vez por todas os paulistas, obrigando-os, à força das espadas, a se engajarem mais decididamente na guerra contra os “traidores do sul”. Mas era uma aposta arriscada, e ele sabia disso. Então, ainda em 1841, promoveu ainda mais o discurso de pacificação e desarmamento geral, enquanto preparava uma grande ação militar. A angelical figura do rei louro ajudava, e o Cônego passou a citar mais os Evangelhos do que fizera até então, tomando ares de pastor da paz. Com isso, ordenou a retirada dos canhões de todas as fortalezas do litoral paulista, sob a alegação de estarem sucateados e precisarem ser substituídos com armas mais modernas. O Presidente de São Paulo, o Barão de Vista Alegre, foi orientado a promover uma ampla desmobilização da Guarda Nacional (que, com a nova Reforma do Código Penal, estava submetida diretamente ao Governo Imperial).
     A opinião pública paulista, após cinco anos de notícias sobre revoltas provinciais e no meio de uma guerra entre o Brasil e a República Rio-Grandense, tendeu para apoiar aquele “apelo clerical aos corações dos homens de boa vontade”.
     Tudo ocorrera exatamente como o Cônego Januário havia premeditado, ainda em Paris, 17 anos antes. Ou quase tudo.

II. Uma fábrica fora dos planos imperiais

     Naquele ano de 1841 havia ocorrido uma nova eleição para a Assembleia Geral, onde o tema geral dos debates foram as leis centralizadoras aprovadas na Capital. Reagindo a elas, os eleitores das províncias elegeram, após vários anos, uma maioria moderada, a fim de reverter aquela tendência. A vitória dos moderados irritou profudamente os líderes vermelhos, já acostumados com o poder desmedido do governo central, e estimulou ainda mais os preparativos para um golpe definitivo contra a oposição. A própria Assembleia Geral começava a destoar dos planos absolutistas da Facção Áulica e precisava ser calada. O cerco ia se fechando.
     Foi quando chegou ao Rio de Janeiro um discreto engenheiro, o Sr. Thomas Bishop, que procurou o Ministério da Fazenda com a proposta de adquirir a antiga Real Fábrica de Ferros de São João de Ipanema. O funcionário do ministério sequer se lembrava dessa fábrica, uma simples oficina esquecida no planalto paulista, que nunca dera lucro e mal produzia alguns instrumentos agrícolas. Como o valor da oferta era boa e o Império, como sempre, estava precisadíssimo de libras esterlinas, o negócio foi rapidamente fechado, antes que o tal Bishop se desse conta do abacaxi que estava adquirindo.
     Com o título de propriedade e um bom saldo num banco inglês, Thomas Bishop dirigiu-se para Sorocaba e apresentou-se ao surpreso diretor, o Eng. Carl Blowm, alemão da Saxônia. O fato é que Bishop era representante de Irineu Evangelista, que comprara a fundição com planos ambiciosos. Em Sorocaba movara o velho Feijó, na casa do Brigadeiro Rafael Tobias Aguiar, dois importantes líderes políticos da região. Numa reunião conjunta entre os quatro, Bishop explicou que seu sócio, Irineu Evangelista, possuía informações seguras sobre grandes encomendas de armas realizadas na Europa pelo Império Americano. Não havia nenhuma dúvida, o Império estava se preparando para uma ação militar de grande envergadura, no exato momento em que a província paulista estava se desarmando.
     “E o que poderiam fazer?” A única alternativa, dizia Bishop, era “retomar a antiga tradição paulista, a tradição do ferreiro Bartolomeu Fernandes, vindo ainda nas caravelas de Martim Afonso de Sousa, de Afonso Sardinha, descobridor de ferro em Sorocaba e pioneiro da fundição nessa cidade, de D. Francisco Sousa, Governador do Sul do Brasil, dedicado pessoalmente ao progresso das fundições, de José Bonfiácio, maior mineralogista da história araucariana e entusiasta da siderurgia paulistana, de Friedrick Varnhagen, primeiro diretor Fábrica de Sorocaba... Irineu Evangelista decidira comprar aquela fábrica para se tornar o maior industrial da América do Sul, e tinha levantado os capitais necessários ao empreendimento. Se os paulistas precisavam de armas, que as fabricassem.
     Muito bem, a ideia era grandiosa e animadora. Havia recursos para investir; demanda para a produção; matéria-prima no próprio município; o carvão podia-se resolver... mas o velho problema da mão-de-obra persistia. Comprar escravos estava fora de cogitação, e eles nem eram qualificados. Trazer imigrantes da Europa, muito caro. Os camponeses brasileiros jamais tinham visto uma verdadeira fundição...
     Então o eng. Blowm pediu a palavra. “Talvez eu possa resolver este problema. Eu cheguei a Araucária em 1820, após trabalhar para D. João VI e ficar sem ser pago. Eu trabalhei muitos anos na cidade de Santos, como técnico de armas, mas em 35 eu vim para Sorocaba para ser diretor desta pequena fundição. O que eu sei é que Araucária não é como quando eu cheguei. Conterrâneos meus chegam todos os anos em Rio Grande, Porto Alegre, São Leopoldo, Laguna, Nova Angra, Paranaguá, Curitiba e nas cidades paulistas. São trabalhadores qualificados, seriam muito úteis à Fundição Ipanema”.
    E assim lá foi o engenheiro alemão a percorrer a Araucária a procura de mão-de-obra entre os imigrantes que chegavam há mais de 10 anos em busca de oportunidades. Gradualmente foram chegando a Sorocaba pequenos grupos de migrantes vindos do Sul do país, com cartas de recomendação do próprio Blowm. Quando o engenheiro retornou, em outubro de 1841, havia 180 trabalhadores na fábrica, e o número ainda subiria para 300 até março seguinte. Em pouco tempo havia seis setores ativos na fábrica: fundição de ferro, fundição de cobre, ferramentas agrícolas, acessórios, caldeiraria e armas. Faziam-se pontes de ferro desmontáveis, canhões para fortes e navios (já que os “novos canhões” prometidos pelo Império jamais chegariam), peças náuticas, embarcações fluviais, projéteis, utensílios, ferramentas. Até providências de apoio, como depósitos, hortas, alojamentos, roda d’água, marcenaria, açougue, cozinha, sanitários, lavanderia, galinheiro e padaria surgiram em torno da fábrica.
     As prefeituras da região foram as primeiras clientes, mas o Brigadeiro Aguiar revelou-se um grande agente comercial, enviando amostras das armas fabricadas para fazendeiros e comerciantes e convencendo-os a armarem “seu pessoal”.
     Após 250 anos de tentativas, finalmente Sorocaba tinha sua fábrica de verdade.

III. O Ataque Final

     As informações de Irineu Evangelista não estavam erradas. Ao longo de 1841, grandes empréstimos foram levantados pelo governo imperial para armar o maior exército já reunido na América do Sul até então. A esquadra, comandada agora pelo Gen. Matos, teria 16 navios dotados de canhões, além de muitos barcos de apoio. Os grandes traficantes, mais uma vez, foram intimados a participar daquele esforço de guerra, ainda sem compreender qual o verdadeiro alvo das operações. De toda forma, prometeram-lhes que os navios partiriam “cheios de soldados” e retornariam “cheios de escravos”, fossem quais fossem os termos de rendição.
     Quanto ao Exército, contaria com 8 mil soldados, comandados pelo Duque de Caxias, com a ordem de retornar “morto ou com a missão cumprida”. As duas forças deveriam atacar simultaneamente.
     Mas o Cônego Januário sabia que o ataque a São Paulo precisava de um fato motivador, e sabia exatamente como provocá-lo. Em abril de 1842 uma nova legislatura assumiria seus cargos na Assembleia Geral, e os moderados haviam conquistado a maioria das cadeiras, já que os eleitores provinciais não aprovaram as novas leis centralizadoras. Outra vez, apesar da reduzida bancada de deputados araucarianos, o presidente da Assembleia eleito era um paulista, o moderado Martim Francisco de Andrada, irmão do velho Bonifácio, falecido anos antes.
     Então a Facção Áulica deu seu golpe decisivo e exigiu do Imperador uma ordem para fechar a Assembleia, mesmo antes que ela tivesse tomado qualquer medida polêmica. Simplesmente, uma maioria de deputados moderados “não era conveniente à Vossa Alteza”. O Imperador, como sempre, seguiu precisamente as ordens daquele grupo palaciano, e a Assembleia foi fechada.
     A consequência era previsível: revoltas liberais em São Paulo e Minas Gerais, as duas províncias de maiores bancadas moderadas. Em Minas, a revolta irrompeu em 10 de junho, a partir da cidade de Barbacena, escolhida como sede do governo revolucionário. Os rebeldes destituíram o presidente mineiro do imperador e elegeram outro, José Feliciano da Cunha. Na vila de Queluz, em 4 de julho, o Exército Mineiro derrotou as guarnições imperiais. Logo outras cidades aderiram ao governo rebelde e organizaram seus próprios batalhões militares: Santa Luzia, Santa Quitéria, Santa Bárbara, Itabira, Caeté e Sabará.
     Em São Paulo, o centro do levante foi Sorocaba. A rebelião se iniciou em 17 de maio (pouco tempo após a dissolução da Assembleia Geral), e ao levante aderiram logo muitas cidades, como Itu, Itapeva, Porto Feliz, Itapetininga, e Capivari. Chamados pelos sinos das igrejas, as lideranças locais se reuniram na Câmara Municipal e aclamaram o Brigadeiro Tobias Aguiar o novo presidente de São Paulo, numa ação idêntica ao início da Guerra do Rio Grande, anos antes.
     O Brigadeiro Aguiar nomeou seus próprios comandantes militares, despachou emissários para outras cidades e suspendeu as “leis centralizadoras”. Naturalmente tais medidas extrapolavam muito a autoridade ordinária de um presidente de província. Estava claro que, a partir daquele momento, havia um governo independente de fato em São Paulo, sediado em Sorocaba.
     Rapidamente, o Brigadeiro Aguiar reuniu uma divisão militar, a célebre Coluna Libertadora, com 1500 soldados – cidadãos proprietários de suas próprias armas ou obtendo-as com vizinhos mais abastados – a fim de marchar para a cidade de São Paulo e depor o presidente nomeado pelo Imperador, o Barão de Monte Alegre. Diogo Feijó ficou em Sorocaba como dirigente civil do novo governo e redator do seu órgão de imprensa oficial, O Paulistano. Em 27 de maio Feijó publicou a Proclamação de Independência da Araucária, uma breve carta de princípios que deveriam nortear as decisões e iniciativas necessárias naquele momento.
     Mas tomar a cidade de São Paulo não seria fácil. Como ocorrera em Ouro Preto, o presidente paulista do Império havia sido alertado antes sobre o plano de fechar a Assembleia Geral e sabia que uma revolta seria inevitável. Antes mesmo que as primeiras notícias do levante de Sorocaba chegassem, o presidente Monte Alegre ordenou o fechamento da Câmara Municial e da Assembleia Provincial, em caráter preventivo, e mobilizou os soldados nas entradas da cidade.
    Quando se soube do levante em Sorocaba, tudo parecia já sob controle na capital, até que surgiu nas ruas um panfleto entitulado “Academia Araucária”, editado às pressas pelos estudantes da Faculdade de Direito, apoiando o novo governo e aclamando Diogo Antônio Feijó como “Presidente da República da Araucária”. No texto, o famoso brado de Amador Bueno era atualizado: “Braços firmes, homens! Por por nossa Honra, por nossa Terra, por nossa Gente, baixar a cabeça nunca mais! Viva a República da Araucária!” Nas ruas, o apelo de todos era “Presidente de Província Tem Que Ser Eleito na Província”. Rapidamente uma grande multidão de populares se formou à frente da sede do governo, pedindo a renúncia de Monte Alegre, em nome do novo governo. A comoção era completa, como nunca se vira antes na cidade. Antigos sentimentos, esquecidos por anos de enganação política brasileira, renasciam com força inesperada.
     Foi nesse clima de ruas tomadas que a Coluna Libertadora encontrou a capital, em 21 de maio, entrando na cidade sem encontrar resistência. Monte Alegre temeu pela própria segurança e achou por bem fugir.  A Câmara Municipal e a Assembleia Provincial foram reabertas, confirmando a posse do Brigadeiro Aguiar (que já havia sido presidente de São Paulo, no curto Ministério Liberal de 1840*). Com isso a adesão das outras cidades paulistas foi geral. No dia 25 de maio, pela manhã, a Coluna Libertadora, agora com 2 mil soldados, marchou para São Vicente, a fim de preparar a defesa do litoral.
     Após longas mobilizações, o Exército imperial sob o comando do Duque de Caxias partiu no dia 03 de junho. Dessa vez o próprio Cônego Januário decidira acompanhar a invasão para “testemunhar sua vitória”. No dia 10, quando passavam por Taubaté, estourou a revolta em Minas Gerais. O Cônego decidiu desviar para os sertões mineiros e ordenar que a esquadra permanecesse no porto, aguardando o retorno do Exército. Ele julgava imprescindível um ataque coordenado conta os paulistas.
     Os combates em Minas foram mais demorados do que os imperiais previam, sobretudo por conta da intrincada geografia mineira. Foi preciso um longo jogo de posições e movimentos para que as colunas do Exército Imperial conseguissem derrotar os últimos rebeldes mineiros, na cidade de Santa Luzia, em 6 de agosto. Daí partiu para o alvo principal, a província paulista.
     Durante o avanço para Sorocaba, o Duque de Caxias recebeu uma mensagem de Diogo Feijó. A carta se iniciava com uma provocação: “Quem diria que, em qualquer tempo, o Sr. Luís Alves de Lima seria obrigado a combater o padre Feijó? Depois protestava contra “os vilipêndios que tem feito o governo aos paulistas e às leis anticonstitucionais da Assembleia”; Garantiu Feijó que “estaria em campo com minha espingarda, se não estivesse moribundo, mas faço o que posso”. Apelou por fim para que fosse poupada a população de sua cidade, e que “se descarregue sobre mim todo o castigo”.
     Caxias respondeu-lhe de pronto: “Quando pensaria eu, em algum tempo, que teria de usar a força para impor a ordem ao Sr. Antônio Diogo Feijó? As ordens que recebi de S. M. o Imperador foram (...) que levasse a ferro e fogo todos os opositores que encontrasse, e as cumprirei”.
     Mantendo o Gen. Matos informado sobre o andamento dos combates em Minas, o Cônego Januário foi capaz de sincronizar, como ele fazia questão, os dois ataques. A marinha atacaria a cidade de São Vicente enquanto as forças do Duque de Caxias devastariam Sorocaba. O plano era as duas forças, já vitoriosas, se encontrarem na capital paulista.
     No fim da tarde do dia 11 de agosto, a cidade de São Vicente, escolhida como alvo de desembarque,  assistiu à aproximação de diversos navios de guerra, que posicionaram-se com seus canhões apontados para elas. Seis mil soldados aguardavam a ordem de desembarcar e tomar a cidade. O forte da cidade estava sem canhões, pois ainda não havia sido possível trazer novos canhões da fundição de Sorocaba. O Gen. Matos deu ordem para que os soldados do Brigadeiro Aguiar depusessem as armas até o nascer do dia segunite, ou seus homens invadiriam a cidade, após seus navios a terem reduzida a escombros.
     Naquela mesma tarde, o Cônego Januário, acompanhado do Duque de Caxias e de três soldados, apresentaram-se diante dos defensores da cidade de Sorocaba e exigiram uma conferência com o próprio Feijó, o “líder dos traidores”. Então foram recebidos no Casarão do Brigadeiro Aguiar, onde estava morando o velho Feijó, em sua cadeira de rodas. O Cônego, exultante, acusou aquele padre licenciado e enfermo de todos os crimes e baixezas, num acesso de cólera reprimido por anos. Então pegou sua vítima pelo ombro e a jogou no chão, ameaçando-o levá-lo arrastado à Corte, onde Feijó terminaria seus dias num escuro calabouço, a meditar o erro de ter-lhe feito oposição por toda a vida. O padre, no chão, não largava um rosário de Nossa Senhora Aparecida, recusando-se a qualquer gesto de súplica ou derrota.
     Aquela cena perturbou o Duque de Caxias. Ali ele via o arrogante Cônego gritando e sacudindo o pobre padre, de joelhos, inválido, submetido a tais insultos. O Cônego não conseguia quebrar a têmpera de seu velho adversário, mesmo ali, alquebrado, derrotado, armado apenas com seu rosário. Então os antigos sentimentos de honra e justiça voltaram a aflorar em Caxias e, num ímpeto, ele se lançou contra o Cônego e acudiu Feijó. Prontamente os soldados atacaram Caxias, dois deles perfurando-o com as espadas. Mesmo assim o duque empunhou seu sabre e, num ato furioso, vibrou-o no ar em arcos mortíferos, fazendo os três oponentes tombarem inertes. O Cônego, tremendo da cabeça aos pés, saiu dali cambaleando, prometendo retornar com seu imenso exército e fazê-los se arrempeder.
     Mal o Cônego saiu em galope, Caxias perdeu as forças e desabou ao chão. “Padre”, disse ele “preciso de seu perdão”. Não se aflija Caxias, vou chamar um enfermeiro... “Espere, fique... Luís Alves, meu nome é Luís Alves... por favor, reze comigo uma Ave Maria”.
     E assim eles rezaram juntos até o fim: “... Agora e na hora de nossa morte, Amém”. E ali, em seus braços, o padre Feijó lhe ministrou a Extrema Unção. Luís Alves de Lima e Silva reencontrara, no fim, a paz.
     Enquanto os navios da esquadra imperial, já noite alta, vigiava a cidade de São Vicente, um pequeno veleiro vindo do sul aportava no esquecido porto das Naus, em Cananeia, no sul do litoral paulista. Local de má fama, frequentado por ladrões, desertores, solitários, nenhum comerciante, nenhum sacerdote, nenhum magistrado. Um povoado proscrito de gente de bem desde os tempos em que Turiguaré  e seus homens se recusaram a lutar ao lado do Capitão Pero Lobo, o primeiro bandeirante, e da Revolta de Cananeia, em 1535, quando os cananeus se rebelaram contra a autoridade de Martim Afonso de Sousa e tentaram destruir a vila de São Vicente, atacando o povoado e matando centenas de inocentes.
     São Vicente sobreviveu e prosperou, mas Cananeia e seus moradores nunca mais recuperaram o respeito da região. Historiadores a consideraram uma das “cidades mortas do litoral paulista do século XVIII”. O veleiro que ali chegava era o de Giuseppe Garibaldi e de sua mulher, Anita, além do índio Xubiquara. “Tem certeza mesmo, Anita? Acho que eu é que deveria cuidar disso”. “Já te expliquei, Giuseppe. Tem que ser eu”. Então Anita desceu sozinha e caminhou para o interior, logo chamando a atenção dos dispersos moradores dos casebres locais. Enquanto isso, o veleiro afastou-se e seguiu para São Vicente, não muito distante dali.
     Anita avançou, sabendo que estava sendo seguida, e foi direto até o cemitério, o mais evitado lugar de toda província. Em pouco tempo estava cercada por uma multidão hostil. “O que veio fazer aqui, estranha?” “Não gostamos de visitantes”, “Irás morrer!” “São Vicente está sendo atacada. Vim pedir que lutem comigo para salvar a cidade”. “Essa luta não é nossa, nada ganharemos com seus conflitos”. “Vocês recuperarão a honra de seus ancestrais se lutarem a meu lado. O espírito de Turiguaré e dos seus homens ainda está preso a esse lugar e jamais poderão descansar, enquanto não recuperarem a honra perdida”. “Perdemos nossa honra quando nossos ancestrais se recusaram a lutar pelo Capitão Lobo. Escolheram se apartar”. “Não será lutando com uma estranha que recuperaremos nossa honra”. E avançaram contra Anita, para matá-la, mas ela desembainhou e ergueu sua espada. “Uimberaba!!!”, “Sim, Uimberaba, a Flexa Brilhante”. “Mas essa espada estava desaparecida”. “Eu a recuperei nas praias do sul, e agora ela é minha”. “Com que direito você porta a espada de Martim Afonso?” “Por casamento, me chamo Anita Garibaldi, e por nascimento, Anita Monteiro Peixoto, única descendente viva de Domingos de Brito Peixoto, o Capitão vicentino que fundou Laguna, minha cidade. Nesta noite, a Uimberaba voltará a ser empunhada pela mão da herdeira de um Capitão vicentino, em defesa da cidade que Martim Afonso fundou e que vossos ancestrais tentaram destruir. Lutem comigo, e eu juro que declararei paga essa dívida. Então as almas dos homens aqui enterrados poderão, enfim, descansar”.
    Enquanto isso, num lugarejo longe dali, um fato ainda mais notável acontecia. O Capitão Teixeira Nunes havia sido escravizado desde novembro de 1839, sem jamais ter conseguido avisar a ninguém de sua sorte. Sofria bastante por sua insubmissão, mas acima de tudo desejava fujir para cumprir a importante missão que havia recebido de Irineu Evangelista. Naquela noite, ele estava sendo transportado para uma fazenda de café em Limeira, para onde fora vendido, depois de “causar problema” em várias outras fazendas. Apesar de cativo, as notícias circulavam e ele sabia da guerra em São Paulo, o que o deixava inda mais exasperado, pois sabia que tinha um dever a cumprir.
     Pois aconteceu que, no caminho, a carroça que o transportava, acorrentado, passou diante da capela de Nossa Senhora Aparecida, em Guaratinguetá. Profundamente angustiado com a sua situação, Teixeira Nunes contemplou aquela capela, da qual já muito ouvira falar, o pediu àquela santa que o ajudasse a recuperar a liberdade, se não por ele, que tanto sofria desde que fora aprisionado, ao menos pelas pessoas que ainda precisavam dele. Instantaneamente, e diante de seu proprietário, mal ele terminara sua oração, e as grossas correntes se abriram, indo ao chão. Ele estava livre. O traficante nunca fora religioso, mas todo homem que carrega grandes culpas tem lá suas superstições, e o sujeito considerou aquilo uma espécie de dízimo que a santa lhe cobrava. Um escravo a menos por algum crédito com Nossa Senhora não lhe pareceu um mal negócio, e assim Teixeira Nunes pode pegar sua velha trouxa de panos e partir para onde o diabo o carregasse. O Capitão da Cavalaria Rio-Grandense, prontamente, procurou o pároco, lhe explicou sumariamente quem era e o que precisava. Impressionado com o milagre (até hoje contado na paróquia) o pároco lhe forneceu o que aquele ex-escravo pediu: um cavalo e uma das lanças usadas nas festas religiosas da paróquia.
     Enfim, naquela noite de fatos estranhos, este não parecerá dos menores. Em São Vicente, mal caída a noite, e os homens do Brigadeiro Aguiar, aquartelados a espera de um combate terrível ao amanhecer, testemunharam uma cena inesperada. Do alto da serra surgiu uma coluna de muitos índios marchando para a cidade. Era um grupo de 800 arqueiros Tupis, vindos das dispersas aldeias do planalto paulista. “Viemos em nome da antiga Aliança dos Homens da Floresta com os Homens do Mar, firmada pelo Grande Cacique Tibiriçá e o vosso primeiro líder. Sabemos que a Era dos Homens da Floresta está terminando e que começa a Era dos Homens do Mar, por isso meu povo partirá para terras distantes, descendo o grande caminho Tietê, onde encontraremos nossos antigos irmãos. Encerrada entre o imenso país dos brasileiros, ao Norte, e os grandes domínios espanhóis, ao Sul, essa Terra Média deixa de ser boa para a nação Tupi. Combateremos mais esta última batalha juntos e, então, partiremos honrados”.
     E assim, pela última vez em sua história, São Vicente receberia o auxílio da nação Tupi. Os arqueiros posicionaram-se no alto das casas, de onde tinham posição privilegiada contra inimigos vindos da praia, e aguardaram.
    Então transcorreu o prazo dado pelo Gen. Matos. Em poucos minutos, o sol nasceria atrás da linha do horizonte. Como ninguém na cidade pensou em depôr as armas, era certo que os canhões fariam seu trabalho, e nenhum defensor sabia exatamente o que fazer. Centenas de botes já haviam sido descidos, para preparar o desembarque das tropas imperiais, que se seguiriam imediatamente após um pesadíssimo ataque de canhões.
    Os céus sobre o oceano imenso já ruborizavam-se, anunciando que o sol não dardaria, trazendo uma alvorada que não prometia um bom dia. Foi quando surgiu um cavaleiro a todo galope descendo a trilha da serra. O desconhecido atravessou a cidade sem nada dizer e foi direto ao forte da praia. Desceu do cavalo, subiu as escadarias aos saltos e posicionou-se no ponto mais alto do mirante, junto ao pequeno farol, que passara a noite aceso. Daí o homem, mais negro que a noite, amarrou um pano em sua lança e a agitou em largos movimentos. Era a bandeira da Araucária, que ninguém desfraldava desde 1815, ano que o reino perdera sua soberania! Mas o que aquele estranho pretendia com tal gesto? Os homens só entenderam quando, segundos depois, grandes explosões foram ouvidas, vindas do mar distante: Bum! Bum! Bum! Bum! Um grande número de explosões. Eram canhões, mas não os canhões dos navios imperiais, eram da grande esquadra da  Marinha Real Inglesa, postada mais distante, oculta até então pela escuridão da noite, que atiravam contra aquela concentração de navios negreiros a serviço de um país escravocrata contra um reino que dera amplas mostras de favorecer a abolição, como o próprio Batalhão de Lanceiros Negros do Exército Rio-Grandense e os esforços do antigo Ministro Feijó pelo fim do tráfico.
     Irineu Evangelista havia passado um bom tempo na Inglaterra conferenciando com empresários e autoridades daquele país, até convencê-los que, numa guerra entre a Araucária e o Brasil, não havia dúvida de qual lado os britânicos deveriam ficar. Mas os ingleses precisavam de um sinal de que de fato os araucarianos possuíam um exército e que estavam dispostos a lutar: era a única condição para a intervenção inglesa. O gesto de Teixeira Nunes fora o sinal combinado.
     Os navios imperiais, sem qualquer canhão apontado para seus oponentes ingleses, foam alvos fáceis e começaram a afundar, um a um. Ainda assim, os seis mil soldados desembarcados nos botes representavam uma séria ameaça à cidade, que contava apenas com a Coluna Libertadora e os arqueiros Tupis, menos que a metade dos contingentes inimigos.
     Antes, porém, que os soldados imperiais pisassem em terra firme, uma coluna de uns mil homens foi vista aproximando-se velozmente pela praia, vinda do sul. Eram os cananeus, liderados por Anita. Com esse reforço e a vantagem das posições defensivas tomadas por ordem do Brigadeiro Aguiar, os araucarianos conseguiram, após duas horas de combate, forçar a rendição inimiga. Ao fim, Anita dirigiu-se aos cananeus, que baixaram os olhos: “Agora seus ancestrais podem descansar. A horna dos homens de Cananeia está recuperada”. Desde então, Cananeia voltou a ser uma vila respeitada e estimada.
     O Capitão Teixeira Nunes, cheio de ferimentos da batalha mas feliz pelo desfecho, quis encontrar-se finalmente com o velho amigo Garibaldi, que se juntara à peleja, e com Anita, mas recebeu apenas uma mensagem escrita, que não era capaz de decifrar, enderaçada a Bento Gonçalves. Disseram que os dois haviam ouvido rumores de que um levante popular estava para irromper na Itália, contra os reis de lá, e que tinham subido num dos navios ingleses que seguia para a Europa, deixando o veleiro mais veloz dos mares para o índio Xubiquara.
     Quanto aos arqueiros Tupis, passaram aquele dia cuidando de seus feridos, honrando seus mortos e comemorando a vitória com os moradores locais. À noite, porém, partiram para o planalto, onde estavam suas canoas e milhares de sua gente, rumo a terras distantes, de onde não mais voltariam. Naquela noite o Brigadeiro Aguiar jurou ter visto, sobre uma grande pedra na serra, enquanto os Tupis partiam, a silhueta de um índio alto, portando uma lança com três penas de pavão, e fumando um longo cachimbo no canto esquerdo da boca.
     Naquela madrugada em que os navios imperiais ancoravam perto de São Vicente, aguardando o prazo final para o ataque, o gigantesco Exército Imperial, agora comandado diretamente pelo Cônego Januário, preparava-se para cercar e “destruir cada alma vivente daquela cidade”, como dizem as Sagradas Escrituras. Somado ao ódio sempre alimentado contra o padre Feijó, havia agora a dor de ter perdido seu mais precioso pupilo, o Duque, esculpido laboriosamente à sua imagem e semelhança, quase como um filho.
     Que fosse. Por acaso o irmão do Luís Alves, chamado Joaquim Lima e Silva Sobrinho, era um dos líderes militares daquela campanha, e seu título já estava escolhido: Duque de Sorocaba, posto que a matança que pretendia promover por toda região haveria de superar o feito do primeiro duque.
     Mesmo a espetacular vitória obtida pelos araucarianos em São Vicente não garantia muita coisa. O exército imperial nas cercanias de Sorocaba era suficiente, com sobras, para derrotar a parca defesa daquela cidade interiorana e ainda vencer qualquer exército que o Brigadeiro Aguiar pudesse reunir. E agora não haveria ajuda nem da Marinha Real Inglesa, nem dos Homens da Floresta e ainda, provavelmente, nem da Nossa Senhora Aparecida.
     Na cidade, Feijó estava preocupado. Ele sabia o que o Cônego planejava para Sorocaba, um lugar de gente pacata, artesãos, horticultores, criadores de galinhas, ferreiros. Publicou uma edição final do Paulistano, enquanto a Marquesa de Santos coordenava a evacuação da cidade, mesmo sabendo que a maioria não tinha para onde ir. Apenas os operários da Fundição Ipanema se recusaram a partir, passando toda a madrugada executando os últimos preparativos defensivos, sob o comando de Carl Browm. O Cônego soube dos progressos da fundição e enviou um mensageiro para dizer ao diretor que, caso aderisse ao Império, seria nomeado Ministro da Indústria. No início da noite, o eng. Brown deu sua última tarefa ao intendente Thomas Bishop. “Vá às colônias do Sul, onde vivem as famílias de meus homens, e leve nossa mensagem”. “E o que devo dizer?” “Que lembrem-se de nós”. Então uma placa de ferro foi levada à entrada da cidade, com os dizeres ainda quentes pelo trabalho dos ferreiros: “Viajante, vá contar aos Araucarianos que jazemos aqui, por obedecer às suas leis”. Quanto ao mensageiro imperial, foi levado à caldeira e informado que não se renderiam. “Mas o que é isso? – espantou-se o arauto. “Isso é Sorocaaaaabaa!” – E foi jogado dentro da caldeira.
     Diante do pedido de Feijó para que abandonassem a cidade, Browm afirmou que agora a Araucária era a terra daqueles 300 colonos e de suas famílias e de seus concidadãos que um dia deixaram suas antigas terras para ali construir uma nova nação. Eles não esperavam deter o exército inimigo, mas queriam dar um testemunho de bravura contra a tirania e, talvez, atrasar o avanço brasileiro até que os soldados do Brigadeiro Aguiar, porventura vitoriosos em São Vicente, pudessem ainda voltar à capital e prepararem-se para o desfecho daquela guerra.
     O Exército Imperial chegou, afinal, às portas da cidade, cujas defesas se limitavam a um padre enfermo e um engenheiro com seus 300 colonos. Foi quando o Cônego ouviu um som que ainda não conhecia, vindo de uma montanha próxima. Julgou ser algo semelhante a uma corneta, só que mais grave. Olhou para identificar de onde vinha aquele som: era um homem montado em seu cavalo, com um longo objeto curvilínio na boca – um berrante. Sacou seu monóculo para ver melhor. “Mas é um negro a cavalo que faz soar este uivo dos infernos!” E outro som semelhante veio do morro à direita, e outro do morro à esquerda. “Três demônios negros em seus cavalos, solitários, soando algum tipo de trombeta infernal”. Mas não estavam sós, logo outros cavaleiros, negros e brancos, surgiram de trás dos morros, como legiões subidas do Hades. E logo revelou-se um número espanto de peões boiadeiros em seus cavalos, com suas galochas, suas jaquetas de couro, suas luvas, suas pistolas e lanças. Como dissemos inúmeras vezes, Sorocaba era a rota final da grande artéria da pecuária araucariana. Tudo terminava ali. Prevendo aquela chance de surpreender o Exército Imperial e arregimentar um grande número de vaqueiros vindos de todas as regiões do reino, Bento Gonçalves percorreu instâncias e pradarias, cruzou rios e serras, vilas e descampados, enviando mensageiros e chefes militares, e foi formando uma cavalaria espantosa. Homens calejados, muitos com experiêncas de combate, todos crescidos na peleja, cada um deles tendo muitas vezes por teto o céu imenso dos planaltos e por pouso, a majestade da araucária. Agora Bento Gonçalves estava ali, diante dos olhos incrédulos do Cônego, a frente de uma grande cavalaria araucariana.
     Apenas no Mato Grosso houve uma divisão: enquanto os homens do norte da província se declararam fiéis ao governo central, sediado no Rio de Janeiro, uma grande assembleia de peões se formou na até então pacata vila de Campo Grande, na parte sul da província, onde se deliberou responder ao chamado dos paulistas, em troca do reconhecimento da província do Mato Grosso do Sul pelo novo governo que se formara.
     Eram dois exércitos formidáveis, uma pesada Infantaria bem municiada contra uma Cavalaria destemida. Imediatamente os corneteiros imperiais deram o toque que formação cerrada, formando uma muralha de lanças mortíferas contra os cavaleiros. O choque daquelas duas forças inimigas seria colossal e imprevisível. Bento Gonçalves animou seus cavaleiros com palavras fortes e desceu o morro bradando Moooorrtee!, sendo prontamente respondido pela cavalaria em marcha: Mooooorrtee!
     Assim que a Cavalaria lançou-se ao ataque, um grande estrondo veio da cidade: Bum! Bum! Bum! Quinze novíssimos canhões de bronze saídos dos fornos da Fundição estreavam seus trabalhos naquele momento, operados freneticamente pelos homens do eng. Blowm. Antes que a Cavalaria tivesse atingido as legiões inimigas, a canhonagem araucariana já havia disparado várias rajadas, desestruturando qualquer formação defensiva do Exército Imperial. Assim atingida e dispersa, a Infantaria imperial não teve nenhuma chance contra a carga da cavalaria inimiga. Quando o sol se pôs naquela tarde, o Império Americano já não existia mais. Restara apenas um Império do Brasil, sem exército, e uma República da Araucária, sem invasor.
     O Cônego Januário havia fugido, mas foi capturado na fronteira e levado, acorrentado, para o presídio da cidade de São Paulo. Ao passar pela igreja de Nossa Senhora Aparecida, rezou lacrimoniosamente para a santa, mas nada aconteceu. Chegou na cadeia com o punho fechado, erguido, num gesto da maçonaria vermelha que significa “a luta continua”. Para contratar os melhores advogados brasileiros, o Cônego custeou uma página semanal no Diário Fluminense, “Amigosdoconegojanuario”, que fazia campanha para arrecar fundos junto a maçons que acreditavam em sua inocência.
     Na cidade de São Paulo, encontraram-se o Comandante Geral Bento Gonçalves e o Brigadeiro Tobias Aguiar. Juntos, proclamaram a fundação da República da Araucária. Nas ruas a população aclamou outra vez o nome de Diogo Antônio Feijó para a presidência – aclamação que a Assembleia Provincial de São Paulo confirmou em caráter provisório. Ali presente, em sua cadeira de rodas, o cansado padre pediu a palavra e proclamou: “Farei apenas dois decretos presidenciais em meu mandato. O primeiro: está abolida a escravidão; O segundo: estão convocadas as eleições para a Assembleia Constituinte da Araucária” – e foi se deitar.

F I M

     -...Armínio, Armínio! Acorda, rapaz!
     - O quê? O quê foi?
     - Acorda rapaz? O jogo já tá quase acabando, tá todo mundo partindo, acorda aí mano, vai dormir em casa!
    - O jogo? Eu dormi? Mas que jogo tá passando? É a Chapecoense?
      - Chapecoense?! É o jogo do Coritiba contra o Vasco, parceiro! Tu tá dormindo ainda?
      - Vasco? Mas não jogamos ontem contra a Portuguesa?
      - Iiii, aí! A Portuguesa nem tá no campeonato, mano. Se tá é doidão!
     Armínio estava ali mesmo, na Cantina do Carioca, acordando de um sonho. Nada de Virgínia ou dos outros. Mas fora tão real! Teria ele sido abduzido outra vez? Pensando nisso, ele pagou a única cerveja que havia bebido e foi saindo.
     - Mas e o jogo?
     - Zero a zero, e já tá nos acréscimos. Tamo no buraco! Esse ano não tem escapatória...
     Chateado, ele seguiu para a calçada, quando ainda deu para ouvir: “...O corte foi do João Marques, se complicou... Olha a chance, do Evandro... gooooooool... ééé... do Coritiba... No fim do jogo o Coritiba marca com Evandro...”
     Isso!! Estamos vivos!!! E reanimado, Armínio firmou o passo. “Ainda é possível!” E aí relembra o incrível sonho que pareceu tão real. Ainda é possível... Procurou o orelhão quebrado da Telebrás, nada. Mas era tão real! E o alçapão na calçada? Nada. Eu tô ficando maluco? Será que pegaram o Seu Stanislaw, a Virgínia, o Matias, o Dr. Walblastenn? Ou foi só um sonho? Ele foi pra casa, beijou a esposa e o filho, chuveiro, janta, cama, e nada de conseguir dormir.
     No dia seguinte, domingo, ocorreram algumas manifestações contra o  governo federal, não tão importantes quanto às de 15 de março – afinal, esse marasmo que é Brasília, quem é que tem saco pra aturar? Parece até que estamos mesmo sob o efeito dos raios ultrachatoniônicos. Armínio pensou em dar uma conferida rápida nos protestos mas acabou passando a tarde com seu filho, na quadra de basquete perto da sua rua. Então no fim da tarde, após tomar um café com a esposa, ligou a TV, girou os canais: Chapecoense x Atlético Mineiro...
     “Quem sabe? Será?” E, sem saber exatamente por quê, assistiu pela primeira vez na vida um jogo da Chapecoense. “Mas tinha que ser justamente contra o segundo da tabela?” O Atlético Mineiro estava atrás apenas do Corinthians, e logo lhe ocorreu que “o Atlético é então o melhor nortista do campeonato”. Será que dá para a Chapecoense?” No fim do jogo, 2 a 1 Verdão! E Armínio foi deitar naquela noite animado por um misterioso sentimento, uma espécie de esperança, de inquietação. A vitória do time catarinense (ou da seleção araucariana?) deu-lhe como um ânimo extra, um alívio, e as lembranças do seu estranho sonho voltaram, sem deixar mais uma vez que ele dormisse.  Quantas cenas, quantos diálogos... foi quando ocorreu-lhe o caso da Lei Orgânica de Curitiba. É, aquilo não fazia sentido mesmo, o sonho já devia estar se embaralhando... ou talvez... e pensou nas palavras de Jesus na Epístola aos Atenienses: “Para reerguer a Grécia, comecem cuidando da polis”. Era esse o sentido da Lei Orgânica Municipal! Um país só pode ser reerguido a partir de seus municípios! A Máquina, uma vez instalada, não pode ser desfeita por um grande líder oposicionista, mas por uma nação inteira em movimento – é o que ele, afinal, aprendera com suas leituras. Não é uma guerra de discursos, não é um grande Polemista, não é um general salvador, não é uma única eleição geral... “Para reerguer um país, comecemos com suas cidades”. Que cada grupo demonstre na prática, à frente de prefeituras, o valor de suas ideias. Jesus sabia mesmo das coisas.
     Seu Stanislaw, Virgínia, Matias Pitanga, Dr. Trajano Walblastenn... eram todos ficções de um sonho agradável. A Araucária, o Polígono, a Epístola, tudo ficção...  Até que Armínio se lembrou de uma última personagem, talvez a mais fictícia de todas – Laura Müller: “A verdade exterior de hoje é o que desejamos ontem... Mas esse livro ainda não está terminado. Nenhum livro está... É você quem escreverá a última página... Sempre temos uma escolha, quando chegar o momento, você terá que fazer a sua...”
     Então Armínio a fez. Levantou-se, ligou o computador, “Iniciar”, “Novo documento...” E começou:

A Verdadeira História do Reino da Araucária

     Aqui é Armínio Lemos e se você está lendo esta mensagem, você faz parte da Resistência.